sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Minha tese em e-book


Acaba de sair, publicado pela Universidade Federal de Pelotas, o e-book da minha tese de doutorado: Ciência empírica e justificação racional: Uma leitura epistemológica do Aufbau.

Link para o texto
O prof. Carlos Miraglia, da UFPel, foi o autor desse milagre: resgatar do fundo do mar uma tese perdida, sobre um trabalho perdido de um autor um tanto maldito ("positivista"!) mas que foi uma das mais profundas e influentes cabeças filosóficas do século XX.

O prefácio escrito por Miraglia é uma pequena obra prima: precisa ser lido!

Quem olhar com cuidado verá que acrescentei ao título um adjetivo: justificação racional. Ele foi omitido na versão oficial do trabalho, talvez porque o título tenha ficado meio longo, mas é importante. Uma das discussões centrais da minha tese diz respeito ao conceito mesmo de justificação, depois de Hume e Kant. O quê deve ser justificado, e como? Carnap estava apenas procurando esclarecer os conceitos das ciências empíricas, ou pretendia justificá-los? E de que forma entendia a justificação? À moda de Hume ou de Kant, ou de maneira original?

Um passo anterior

23 anos depois de apresentada, em 1990, esta tese de doutorado finalmente tornou-se disponível (sob meu nome na época) na Biblioteca Digital de Teses da USP. O atraso foi devido à minha própria trajetória de vida, na qual a academia ficou bastante de lado durante esse período.

https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-26082013-111517/pt-br.php

O problema é que esse trabalho foi escrito num computador dinossáurico, com o programa Cartacerta II, que ao passar para Word ficava cheio de erros que era preciso corrigir à mão, e eu nunca tinha paciência de fazer isso. Comecei há uns dois anos, e só agora a novela chegou ao fim.

E eu tinha colocado como fecho uma citação de "Quarta-feira de cinzas", do T.S.Eliot, que expressava bem minha sensação ao concluir aquela etapa:
"And pray that I may forget
These matters that with myself I too much discuss
Too much explain
Because I do not hope to turn again
Let these words answer
For what is done, not to be done again
May the judgement not be too heavy upon us
".
Finalmente

Enfim, para quem tiver interesse, graças ao Miraglia e à UFPel hoje está aí, numa forma bem mais elegante e acessível, um trabalho que deu muito trabalho e que, parece, ainda é capaz de fazer pensar!

https://wp.ufpel.edu.br/nepfil/files/2019/02/1-ciencia-empirica-e-justificacao.pdf

Gostaria hoje de acrescentar à bibliografia uma obra que vai muito na linha do que escrevi, mas à qual não tive acesso na época (pelo simples fato de ela só ter sido publicada quase 10 anos depois): FRIEDMAN, M. Reconsidering Logical Positivism, Cambridge University Press, 1999.

Vários novos trabalhos surgiram desde então sobre Carnap e o Positivismo Lógico, alguns dos quais estão listados na bibliografia de Oxford:
 http://www.oxfordbibliographies.com/view/document/obo-9780195396577/obo-9780195396577-0248.xml






terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

A metafísica naturalizada de Saul Kripke


RESUMO
A metafísica naturalizada de Saul Kripke 
O artigo parte do exame das posições de Saul Kripke relacionadas com a semântica da lógica modal e conclui apontando para certas consequências epistemológicas e ontológicas das mesmas que, no nosso entender, são incompatíveis com a maneira como a ciência empírica de fato funciona e progride. Em torno do problema da identificação dos objetos através de diferentes mundos possíveis, Kripke é levado a desenvolver posições originais como as teses da fixação da referência independentemente do significado (no que se opõe a Frege) e na não coincidência entre verdades necessárias e a priori (no que se opõe a Kant). Para Kripke, é um tipo particular de conhecimento, o conhecimento científico, que determina o que deve ser considerado essencial, necessário. E os enunciados representando tais descobertas cientificas a posteriori “não são
segundo ele verdades contingentes, mas verdades necessárias no sentido mais estrito possível”. Assim, para Kripke, nosso conhecimento (científico) determina, sem distorções, as propriedades essenciais do real, o que faz com que sua ontologia seja diretamente função das descobertas da ciência empírica. Essa “naturalização da ontologia” , para a qual apontamos na conclusão, é incompatível com o reconhecimento da defeasability dos nossos critérios semânticos ou científicos, e sobrecarrega a empresa científica com um peso metafísico que ela própria não reivindica nem tem condições de suportar.

PALAVRAS-CHAVE 
Fixação da referência
Necessidade a posteriori
Ontologia naturalizada

ABSTRACT
Saul Kripke’s Naturalized Metaphysics
This article starts with an examination of Saul Kripke’s views in relation to the semantics of modal logic, to conclude by pointing to some epistemological and ontological consequences of those positions which, in our view, are incompatible with the way empirical science in fact works and progresses. In dealing with the problem of identifying the same objects in different possible worlds, Kripke is led to develop his original positions on topics such as the theses of fixation of the reference independent of meaning (where he disagrees with Frege) and the non-coincidence between necessary and a priori truths (where he disagrees with Kant). In Kripke’s view, it is a certain type of knowledge - scientific knowledge - that decides what should be considered as essential or necessary. And the statements that represent these scientific discoveries a posteriori “are not” in his words “contingent truths, but truths that are necessary in the strictest possible sense”. Thus, in Kripke’s view, our (scientific) knowledge determines, without distortion, the essential properties of what is real, which makes his ontology a direct function of the discoveries of empirical science. This “naturalisation of ontology”, as shown in the conclusion of this article, is not compatible with recognition of the defeasibility of our semantic or scientific criteria, and overloads scientific endeavour with a metaphysical burden which science itself does not ask for and which it is not capable of carrying.

KEY -WORDS 
Fixation of Reference 
A Posteriori Necessity 
Naturalized Ontology

Em Naming and Necessity1 Saul Kripke enfrenta diversas questões filosóficas relacionadas com a semântica da lógica modal. O problema da identificação dos indivíduos através de diferentes mundos possíveis, que constitui urna questão central para
esse tipo de semântica, o leva a explicitar seus pontos de vista sobre propriedades essenciais, significado e referência, nomes próprios, descrições, enunciados de identidade e, sobretudo, a desenvolver um aparato teórico centrado nas noções de fixação da referência independentemente do significado (no que se opõe a Frege) e na não coincidência entre verdades necessárias e a priori (no que se opõe a Kant).
Deixarei de lado neste artigo, na medida do possivel, as questões ligadas à primeira dessas noções (fixação da referência), procurando examinar e esclarecer algumas implicações da segunda. Entre essas, a admissão de verdades necessárias a posteriori, que tem como conseqüência o que chamo de “metafísica naturalizada”, ou seja, a atribuição de pretensões ontológicas aos resultados da ciência empírica.

Necessidade a posteriori
A. CASULLO, em artigo de 1977, Kripke on the a priori and the necessary2 examina os argumentos de Kripke contra a tese tradicional, amplamente aceita entre os filósofos, de que todo o conhecimento a priori é de proposições necessárias, e de que todas as proposições necessárias são cognoscíveis a priori. Casullo divide sua análise em duas partes, a primeira ocupando-se da defesa que faz Kripke, em Identity and Necessity (1971)3, da existência de proposições necessárias a posteriori, e a segunda tratando da tese da existência de proposições contingentes a priori, acrescentada por Kripke em Naming and Necessity. Como a posição de Kripke neste segundo trabalho não é idêntica à do artigo de 1971, a análise de Casullo não esgota a questão, já que deixa sem exame a nova posição de Kripke.
Trata-se, fundamentalmente, de sustentar que o conhecimento do caráter modal de uma proposição não-matemática (se ela é necessária ou contingente) decorre não de uma “análise filosófica a priori”, como sustentava Identity and Necessity, mas de uma descoberta empírica e, mais especificamente, científica. A análise filosófica aponta para a existência de propriedades essenciais, segundo Kripke (essencialismo); se esta ou aquela propriedade, descoberta empíricamente, é ou não essencial (e portanto necessária ou contingente a proposição que a enuncia) é coisa que cabe à investigação científica determinar .

É sobre esta tese de Naming and Necessity, e sobre a atribuição de um alcance metafísico aos resultados da ciência empírica que ela envolve, que pretendo focalizar a atenção, embora seja impossível fazê-lo sem colocá-la, ainda que sumariamente, no contexto das demais posições de Kripke.
Há enunciados, segundo Kripke, cuja verdade não conhecemos a priori, mas dos quais podemos afirmar que, se forem verdadeiros, serão necessariamente verdadeiros. Pois há propriedades (propriedades essenciais) que pertencem necessariamente a certos indivíduos, espécies, substâncias ou fenômenos, mas que nós só chegamos a descobrir através de um laborioso esforço de investigação empírica. “Pode-se muito bem - sustenta ele - descobrir a essência empiricamente” (110)4.

Por outro lado, há coisas que sabemos a priori mas que são contingentes: é uma propriedade acidental da barra escolhida para servir de padrão de comprimento (o metro conservado em Paris) que ela tivesse, no momento em que foi escolhida, um comprimento igual ao da unidade abstrata de medida que queríamos marcar. Podemos entretanto afirmar a priori que “a barra S (o metro padrão) tem um metro de comprimento”, embora esta seja uma verdade contingente (56). Tal tipo de enunciado contingente não parece conter nenhuma informação a respeito do mundo (63n).

A aprioricidade, nesse caso, decorre do próprio ato linguístico de fixar uma referência introduzindo na linguagem um designador rígido (um termo que designa o mesmo objeto em qualquer mundo possível) (48), como o termo “metro”. Isto pode ser feito através de uma propriedade não-essencial, como vimos, ou até mesmo de uma propriedade que venha posteriormente a se revelar falsa do objeto assim identificado: Phosphorus, “a estrela da manhã”, não é uma estrela (80n).

Em tais casos, a “definição” não é usada para estabelecer o significado, apresentando o definiens como sinônimo do termo a definir e tornando portanto analítica (necessária em virtude do significado e a priori) a sentença que a enuncia. Ela é usada, como um expediente acessório e descartável, para fixar a referência, constituindo assim um conhecimento a priori mas não necessário. Se alguém fixasse a referência de “Aristóteles” como “o homem que foi o mestre de Alexandre”, ele saberia a priori que Aristóteles foi o mestre de Alexandre, embora Aristóteles pudesse não ter ensinado Alexandre ou sequer ter se envolvido algum dia com quaisquer atividades pedagógicas (61-63).

Kripke generaliza esse quadro da fixação da referência, dos nomes próprios aos nomes comuns: nomes de espécies naturais (vegetais, animais ou químicas), sejam eles “count nouns” (tigre, gato) ou termos de massa (ouro, água), e nomes de fenômenos naturais (luz, calor, relâmpago).

Em cada caso, a referência é fixada por uma “definição”, que muitas vezes consiste em apontar a substância como a espécie que é instanciada por (quase) todos os elementos de uma amostra, ou em mencionar as sensações que são produzidas em nós pelo fenômeno (calor, luz), ou em identificá-lo com a causa de certos efeitos experimentais (eletricidade) (136-7). Essas “definições” não expressam uma identidade necessária, embora possam expressar verdades a priori. Posteriormente, a ciência investiga os objetos (indivíduos, espécies, substâncias, fenômenos) assim identificados, procurando descobrir sua natureza ou essência, e determina características dos mesmos que são necessárias, embora não a priori.

Combinando diagramaticamente as duas distinções (a distinção metafísica necessário/contingente, e a distinção epistemológica a priori / a posteriori), teríamos as quatro possibilidades abaixo representadas:

Que espécie de enunciados encontraríamos em cada um dos lugares deste quadro? Entre os exemplos e indicações fornecidas por Kripke, temos elementos para estabelecer a seguinte distribuição:

1. as proposições analíticas (Kripke não dá exemplos)
2. as “definições” que fixam a referência (Phosphorus = a estrela da manhã)
3. as identificações teóricas (Água = H20; Calor = movimento das moléculas) e as conjeturas matemáticas (conjetura de Goldbach)
O item 4. (contingente a posteriori) não é objeto de atenção direta nas análises de Kripke; parece ficar claro que se trata do campo não problemático, no presente contexto, dos enunciados do tipo “o gato está sobre o capacho” ou “Ana comeu a maçã”.

Verdades matemáticas
Um caso importante de enunciado necessário mas não a priori é o das conjeturas matemáticas. Kripke afirma que a conjetura de Goldbach (“todo número par maior do que 2 é a soma de dois primos”) será necessariamente verdadeira ou necessariamente falsa, mas que, na ausência de uma prova matemática que decida a questão, ninguém tem nenhum conhecimento a priori sobre ela, em qualquer das duas direções (37). “Na ausência de uma prova a favor ou contra, é possível para uma conjetura matemática ser verdadeira ou falsa” (143), mas ela será necessariamente verdadeira ou necessariamente falsa, pois “o caráter peculiar das proposições matemáticas (...) é de que sabemos (a priori) que elas não podem ser contingentemente verdadeiras” (159).

A noção de prova aparece assim em Kripke como um análogo, em matemática, da noção de experiência nas ciências factuais: conhecer a priori uma verdade matemática seria conhecê-la antes ou independentemente de dispor de uma prova da mesma.

Sustentando portanto, contra Kant, que há verdades matemáticas necessarias que só chegamos a conhecer a posteriori, nesse sentido peculiar de após encontrar uma prova das mesmas, Kripke irá ainda mais longe. Se o que Kant quer dizer é que verdades necessárias só podem ser conhecidas a priori, Kripke lembra que, “ao contrário, pode-se aprender uma verdade matemática a posteriori, consultando uma máquina computadora, ou mesmo perguntando a um matemático” (159).

Kant certamente objetaria que um tal tipo de “experiência” matemática não seria capaz de assegurar a necessidade das verdades em questão: como saberíamos que o matemático não estava enganado ou mentindo, ou o computador funcionando defeituosamente? Para Kant, a necessidade de uma proposição não é consequência de nossa forma (a priori) de conhecê-la: é um indicador de que a origem de seu conhecimento não pode ser a experiência.

De qualquer forma, esse ponto não é essencial na argumentação de Kripke em defesa da tese de que há verdades necessárias que não conhecemos a priori. O caso das identificações teóricas (água = H20), como ele o apresenta, e o próprio argumento anterior, a propósito das conjeturas matemáticas, são independentes da introdução dessas novas categorias, anti-kantianas, de “experiência” matemática.

Analiticidade
Kripke confessa que não tentou “lidar com os delicados problemas relativos à analiticidade nessas conferências” (123n). Na verdade, este relativo desinteresse não é difícil de entender. A questão da analiticidade não pode deixar de ser uma questão fundamental para aqueles que colocam o significado como elemento chave no aparato conceitual que se propõem a desenvolver ou aplicar, o que não é o caso de Kripke. Ele simplesmente postula que analítico será tornado como “verdadeiro em virtude do siqnificado”, isto implicando que deverá ser, ao mesmo tempo, necessário e a priori (39), (correspondendo, portanto, ao campo de nosso diagrama indicado pelo número 1).

A preocupação de Kripke com o problema da analiticidade é sobretudo negativa, na medida em que seu interesse principal consiste exatamente em desvincular a referência do significado, para tornar independente a identificação dos indivíduos de sua descrição, a qual poderá ser diferente em diferentes mundos possíveis. Aliás, um mundo possível não é, segundo Kripke, algo que “olhamos pelo telescópio” e procuramos descrever qualitativamente. Mundos possíveis são estipulados, e não descobertos; são “dados pelas condições descritivas que associamos com eles” (44).

Alquimista
Kripke não dá, ele próprio, nenhum exemplo de verdade analítica; e o único exemplo que discute, “o ouro é um metal amarelo”, é para sustentar, contra Kant, que se trata de um enunciado que “nem mesmo é a priori, e se tiver alguma necessidade ela deve ser estabelecida por investigação científica; está portanto longe de ser analítico em qualquer sentido” (123n).

Nos enunciados analíticos, ”verdadeiros em virtude do significado”, o predicado está contido no conceito do sujeito, não há possibilidade de descolamento entre um e outro sem que se destrua o próprio conceito do sujeito. Se Kant tivesse razão, seria inconcebível qualquer mundo onde o ouro não fosse um metal amarelo, pois qualquer coisa que não fosse um metal amarelo não seria ouro, não poderia ser subsumida ao conceito de ouro. Para Kripke, ao contrário, nós poderíamos descobrir outras
propriedades, diferentes e até contrárias àquelas que usáramos inicialmente para identificar o ouro, sem que isso implicasse que tivéssemos mudado o significado do termo ouro (117-9).

A própria possibilidade de estipular mundos possíveis onde falamos das mesmas coisas com outras propriedades depende de que essas propriedades não estejam analiticamente vinculadas aos significados dos termos com que designamos tais coisas. Kripke não nega que haja propriedades necessárias, mas deixa sua determinação a cargo da investigação cientifica (a posteriori) e retira-a da competência da análise lógico- linguística dos significados (a priori).

Kripke versus Kant
Como Kant sustentara, contra a tradição, a não-coextensividade do a priori e do analítico, Kripke sustenta, de forma também polêmica, a não-coextensividade do a priori e do necessário. Para além de um mero jogo combinatório de conceitos, estamos diante de posturas alternativas face à ontologia e à epistemologia, e à maneira de conceber as relações que as articulam.

Kant, renunciando a qualquer possibilidade de acesso à coisa em si, faz passar pela estrutura de nosso aparato cognitivo toda a necessidade que puder ser encontrada em nosso conhecimento. Toda necessidade é a priori, não vem de fora, do material da experiência, mas decorre da forma imposta a este material pelo sujeito cognoscente. “Só conhecemos a priori das coisas aquilo que nós mesmos pomos nelas”; “necessidade e estrita universalidade são pois as marcas seguras de um conhecimento a priori, e estão indissoluvelmente unidas uma a outra”5 . Dentre as verdades necessárias a priori algumas poderão ser sintéticas (nos dizem algo a respeito do mundo, ampliam nosso conhecimento, e não apenas exibem relações lógicas entre nossos conceitos), porque o mundo, os objetos, os fenômenos, não são coisas em si, mas trazem constitutivamente a marca que nossa maneira de captar e organizar o dado lhes impõe.

Kant parte do factum do nosso conhecimento, e o “centrifuga”, procurando separar o que se deve à nossa estrutura cognitiva, por um lado, e o que vem de fora, do múltiplo da intuição sensível, por outro. O objeto do conhecimento empírico (os fenômenos, a natureza) será visto como a síntese desses dois aspectos. Mesmo os juízos de experiência6, que são sintéticos a posteriori, mas que devem sua objetividade (ao contrário dos juizos de percepção, que são subjetivos) à universalidade e à necessidade neles presentes, devem conter um elemento a priori, capaz de lhes assegurar essa necessidade 7.

Na perspectiva essencialista de Kripke, ao contrário, antes de qualquer conhecimento o objeto está constituído, como coisa em si, com suas propriedades essenciais e acidentais que nós iremos, aos poucos e laboriosamente, tratar de descobrir. O que confere necessidade a uma verdade é o fato de que é necessariamente assim que as coisas são, independentemente de como e se nós a conhecemos. Nada mais natural, sob esse ponto de vista, que haja verdades necessárias a posteriori. E dificilmente haverá lugar para verdades necessárias a priori: só por acaso poderíamos saber algo a priori sobre essas essências independentes de nosso conhecimento. E se, por acaso, chegássemos a priori a alguma verdade necessária, esta necessidade seria uma necessidade externa, factual, dependente da natureza da coisa em si e não da nossa maneira de conhecê-la, e portanto apenas “acidentalmente” a priori.

Nosso conhecimento (científico) é para Kripke a imagem sem distorções do real em si; e nossa imaginação nos permite construir jogos de sombra (“mundos possíveis”), fazendo variar livremente o que for acidental. A tese de que fixar a referência é independente de estabelecer o significado tem o efeito de permitir que algo seja objeto para nós sem se tornar moldado, marcado constitutivamente por sua passagem através do filtro de nosso aparato linguístico-conceitual. “Pode-se sustentar significativamente se- gundo Kripke que uma propriedade é essencial ou acidental a um objeto, independentemente de sua descrição” (41).

A coextensividade do necessário e do a priori decorre, em Kant, do idealismo transcendental e da dependência (e consequente relatividade) que ele estabelece entre ser e conhecer. Em Kripke, além da tese ontológica essencialista, há uma concepção epis- temológica, sobre a natureza e o alcance do conhecimento científico, que convém explicitar, a sustentar sua posição sobre a não coincidência do necessário e do a priori.

Ciência e essência
Ao contrário de Kant, Kripke pretende manter separadas as noções metafísicas
(essencial/acidental, necessário/possível) e epistemológicas (a priori / a posteriori) (34- 6). Mas torna-se claro, pelas análises que propõe dos diversos tipos de enunciados necessários, que é um tipo particular de conhecimento, o conhecimento científico, que determina o que deve ser considerado essencial, necessário.

Fixada a referência de um termo, em geral de maneira “fenomenológica”, através de certas características que nós associamos ao objeto (indivíduo, espécie, fenômeno), podemos descobrir, cientificamente, outras propriedades que pertencem essencialmente a este objeto, e inclusive abandonar as características que inicialmente “definiam” o objeto para nós.
O ouro, a que associávamos as propriedades metálicas (maleabilidade, dutilidade) e a cor amarela, passa a ter como propriedade essencial o número atômico 79. Não há dois conceitos de ouro ( ou dois significados da palavra “ouro”) em questão (118-9): há uma fixação da referência de um termo, de maneira independente do significado. Este termo funcionará como um designador rígido, e caberá à ciência, em particular à Fisica, determinar as propriedades essenciais desse objeto. “Dado que o ouro tem o número atômico 79, poderia alguma coisa ser ouro sem ter o número atômico 79?” (123).

A resposta de Kripke é inequívoca: supondo “que os cientistas investigaram a natureza do ouro e descobriram que é parte da própria natureza dessa substância, por assim dizer, que ela tenha o número atômico 79”, então não é possível que ela não o tenha. Em nenhum mundo possível, em nenhuma situação contrafactual nós diriamos de uma substância, mesmo que ela parecesse em tudo ao ouro e até que fosse chamada “ouro”, que ela é realmente ouro (124 ) se não tivesse o peso atômico 79. Portanto, “tais enunciados representando descobertas cientificas sobre o que esta matéria é não são verdades contingentes, mas verdades necessárias no sentido mais estrito possível” (125).

O privilégio da Fisica na determinação das propriedades essenciais não é entretanto, para Kripke, um privilégio de direito, mas apenas de fato. Propriedades “fenomenológicas”, como produzir em nós tais ou quais sensações, poderão se revelar necessárias, se uma investigação científica da nossa estrutura neurológica revelar que é essencial à natureza humana apresentar tal tipo de sensibilidade (125).

Ontologia Naturalizada?
O peso colocado por Kripke sobre as ciências empíricas, na sustentação de seu edifício conceitual, é, como vemos, muito grande. Se, como parece ser o caso, elas não tiverem condições de suportar tamanha carga, todo o restante da construção se vê fragilizado, o que pode comprometer os eventuais atrativos da proposta kripkeana em relação às questões mais específicas que a suscitaram originalmente.

Sustentar que a ciência determina as propriedades necessárias, a essência dos objetos, não é compatível com o reconhecimento do “caráter aberto e a inevitável incerteza de todo o conhecimento factual”, nem com “o reconhecimento do caráter hipotético das leis da natureza, em particular das teorias físicas”8, que já havia forçado o próprio Círculo de Viena à liberalização de seu ultra-empirismo inicial. Exige seja que se impeça por decreto que a ciência mude, congelando-a em seu estado atual, seja que sim- ples e vacuamente se convencione chamar de essência seja o que for que a investigação científica tenha estabelecido ou venha a estabelecer.

Tampouco é convincente, por outro lado, o recurso à grande condicionalização: “se a ciência estiver certa/for verdadeira, então as propriedades que ela atribui aos objetos são essenciais/necessárias”. Frente a essa hipótese, o que nos impediria de imaginar, postular ou construir mundos possíveis onde esse não fosse o caso, onde outra ciência fosse verdadeira, e onde os objetos tivessem, portanto, outras e diferentes propriedades essenciais? 

O que o modelo de Kripke não contempla (da mesma forma que outros modelos em relação aos quais ele pretende se constituir como alternativa), é a defeasability de nossos critérios, sejam eles semânticos ou científicos9.
Ao considerarmos a dinâmica das teorias científicas, vemos ressurgir um dos principais problemas a que o aparato teórico de Kripke pretendia trazer uma solução: o problema da identificação dos objetos através de diferentes mundos possíveis. A questão assume, neste caso, a forma do clássico problema da incomensurabilidade: como dar sentido à idéia de que diferentes teorias científicas estão “falando da mesma coisa”, se elas podem divergir inclusive no que diz respeito aos critérios descritivos associados aos objetos e às propriedades dos mesmos que consideram essenciais?10

A alegada independência do metafísico em relação ao epistemológico, do ser em relação ao conhecer, desaparece a partir do momento em que confiamos ao conhecimento (científico) a responsabilidade de determinar o que é essencial, necessário nos objetos
que, fora disso, apenas designamos “rigidamente” por meio de um termo cujo significado não importa. Carregar a empresa científica com tamanha responsabilidade metafísica é algo que certamente vai muito além das suas possibilidades e das suas efetivas pretensões.

Porto Alegre, setembro de 1988.

1 KRIPKE, S.A. Naming and Necessity. Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1980.
2 CASULLO, A. Kripke on the A priori and the Necessary. Analysis, Vol. 37, No. 4 , pp. 152-159, June
1977
3 KRIPKE, S. Identidad y Necesidad. México, Instituto de Investigaciones Filosóficas, 1978.
4 Todos os números entre parênteses remetem a páginas de Naming and Necessity, ed. cit.
5 KANT, E. Critique de la Raison Pure. Paris, PUF, 1968. pp.18 e 33
6 KANT, E. Pro1egomènes à toute metaphysique future. Paris, Vrin,1968. §9 18-22.
7 PERRICK, M. Kant and Kripke on Necessary Empírical Truths. Mind, Vo1 94 , N°376, pp.596-598, Oct.
85 .
8 CARNAP, R. Intellectual Autobiography, em SCHILPP, P. A. (ed.)The Philosophy of Rudolf Carnap. La
Salle, Illinois, Open Court, 1963. p. 57.
9 SHAPERE, D. Reason, Reference, and the Quest for Knowledge. Philosophy of Science, Vol 49, pp.1-23, 1982.
10 Kuhn, T.S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, Perspectiva, 1975 (cap.9) e HANSON, N.R. Patrones de descubrimiento. Madrid, Alianza, 1977 (cap.1).

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Epistemologia e Política

Revisando o material do estágio de capacitação que realizei em Portugal em 2012, encontrei as anotações abaixo, que achei que poderiam ser incluídas aqui:

Simpósio Internacional “Epistemologia, Lógica e Linguagem”


O Simpósio é um evento anual organizado pelo Centro de Filosofia da Ciência da Universidade de Lisboa (CFCUL) e do Grupo de Lógica, Linguagem e Informação da Universidade de Sevilha, no contexto do projeto internacional “Dinâmica do Conhecimento no Campo das Ciências Sociais: Abdução, Intuição e Invenção” Ações Integradas Luso-Espanholas (2010-2012).

Das diversas apresentações de trabalhos, que se estenderam por três dias (29-31/10/2012), destacam-se, do ponto de vista de seu interesse para os temas deste estágio, aquelas especialmente centradas nas dimensões dialógicas e criativas da linguagem e do conhecimento. A abdução – conceito e termo criados por Charles Sanders Pierce - refere-se à operação lógico-cognitiva da criação de novos conceitos e teorias, para dar conta de fatos e situações que não se deixam enquadrar nos instrumentos conceituais já disponíveis. Sua lógica difere das operações usuais na prática científica “normal” (no sentido de Thomas Kuhn), a dedução e a indução, na medida em que se trata da formulação de novos paradigmas, ou novas formas de encarar tanto as situações já conhecidas como aquelas novas, que desafiam as leis e teorias estabelecidas. No campo da teoria política, especialmente quando se trata das questões ligadas à criação de novos direitos (como aqueles direitos humanos de terceira ou mesmo de quarta geração), a atenção à lógica abdutiva adquire especial relevância.
Mapa da Lua

Um exemplo que evidencia como os conceitos pierceanos de abdução e raciocínio diagramático são centrais para as estratégias heurísticas da investigação científica contemporânea pode ser encontrado na

sábado, 2 de março de 2013

A PROPÓSITO DE WAYS OF WORLDMAKING


Mais uma do fundo do baú:

"The world is a tale, told by a fool..."
Shakespeare

Não por acaso, a pluralidade dos mundos de Nelson Goodman (GOODMAN, N. Ways of Worldmaking, Harvester Press, 1978) evoca os misteriosos e desconcertantes universos de Borges: labirintos e espelhos, indiscerníveis configurações de realidades, sonho e ficção, reelaboração indefinida (infinita ou circular, não importa) de mundos cuja substância ela própria é onírica e literária.

Quine, descrevendo o conteúdo do livro de Goodman, o qual, segundo ele, em poucas páginas "nos oferece uma filosofia do estilo, uma filosofia da citação, uma filosofia da arte, uma filosofia da ilusão ótica e uma filosofia da natureza" (QUINE, W.v.O. Otherworldly, New York Review of Books, Nov. 25. 1978), pretendeu provocar no leitor o malestar que produz a vertigem do heteróclito. Mas esse malestar se transforma facilmente em seu contrário: na "quase voluptuosa" satisfação que proporcionam as enumerações, devida − provavelmente − à insinuação do eterno, "immediata et lucida fruitio rerum infinitarum"... (BORGES. J.L. História da Eternidade. Porto Alegre/Rio, Globo, 1982, pp. 24.28/29).

O worldmaking seria então algo como uma "instituição imaginária da realidade", à Castoriadis, ou como a "produção desejante" do Anti-Édipo, desterritorializando territorialidades para reconstituí-las noutro lugar? Worldmaking/esquizofrenia: the world as a tale told by a fool?

A idéia de que o mundo possa ser construído já é por si mesma bastante chocante para o senso comum. Goodman lhe acrescenta um duplo pluralismo:o dos mundos construídos e o das modalidades da construção. Os mundos de Goodman não são "mundos possíveis", múltiplas alternativas para o (único) mundo real, nem constituem diferentes versões ou descrições desse (mesmo) mundo. Aos diferentes sistemas simbólicos das ciências, da filosofia, das artes, da percepção ou do discurso quotidianos correspondem diferentes mundos, que mantêm entre si as mais variadas relações. Por que, e como, privilegiar um deles com o o título de mundo real, fundamento comum e substância de todos os demais? Por que conferir a uma dada versão, seja ela a do senso comum ou a de alguma ciência, o caráter de versão canônica à qual todas as outras deveriam ser redutíveis?