sábado, 28 de fevereiro de 2009

O que é Filosofia


Incorrigível mistura de Ícaro e de Fênix, a filosofia queima reiteradamente suas asas, e renasce das próprias cinzas para queimá-las de novo... Até quando? E para quê?
(Notas para uma apresentação - UnB 1991)

I) A pergunta O QUE É?

1.1 Busca da definicão: busca da essência? Compromisso com um certo tipo de metafísica: o modo como as coisas se comportam é, ou deve ser, expressão da sua natureza, que nos cabe descobrir, desvelar, refletir... Conhecimento contemplação, reflexo, espelhamento.

1.2 Como responder a essa pergunta? Definir tudo é impossível: deve-se, em cada campo, contar com certas noções primitivas cuja compreensão é pressuposta. Que noções poderíamos dar por pressupostas, a partir das quais tentaríamos definir a filosofia? Conhecimento? Verdade? Mas a filosofia não tem sido sempre um permanente questionamento de todas essas, ou outras possíveis candidatas a noções básicas pressupostas?

1.3 Outra possibilidade: o recurso à definição ostensiva . MOSTRAR alguma coisa que se considere um bom exemplo de filosofia, e apontá-la dizendo: filosofia é isso aí. É claro que nesse caso se aplicam todas as dificuldades ligadas ao problema da ostensão, tão bem evidenciados por exemplo por Quine. O nativo que aponta para um coelho e diz "gavagai" está realmente dizendo "coelho" na língua dele? Como posso ter certeza de que estamos nos referindo, com palavras diferentes, ao mesmo objeto? E se ele não estiver falando do objeto físico coelho, mas a algum estágio temporal, ou a alguma parte não destacada, desse objeto? Ou à presença, aqui e agora, do objeto abstrato "coelhice"? Ou à ocorrência de um processo ou ação de "coelhar"?

No caso que nos interessa, de "filosofia é isso aí", a coisa seria ainda mais complicada. Não se trata de "apontar" algo (seja lá o que for) fisicamente presente diante dos olhos de todos e (aberrações ótico/oftalmológicas a parte) igual para todos. É preciso supor, ou assegurar, que todos tenham compreendido (e não apenas visto ) de que filosofia se trata. É preciso ensinar e aprender filosofia, para poder mostrar o que é filosofia ! Mais uma vez Millor Fernandes, um dos maiores filósofos deste país, não está brincando quando define a filosofia: FILOSOFIA É UMA COISA QUE DISCUTE FILOSOFIA.

É a melhor definição que eu conheço.

II) Considerando que a pergunta pela definição não tem condições de nos levar muito mais longe do que isso, o que poderia ser feito então para aumentar a nossa compreensão, para enriquecer o nosso entendimento a respeito dessa atividade, com que estamos já comprometidos, de fazer filosofia ? O que é que nós andamos fazendo, aonde pretendemos chegar, com que instrumentos podemos contar?

Tradicionalmente, filosofia tem a ver com duas preocupações principais: a questão existencial do sentido da vida e da ação humanas, e a questão do conhecimento (sua verdade, certeza, justificação, natureza, modalidades, etc.). No pensamento ocidental, essas duas vertentes tenderam a se fundir, sob a égide do primado da racionalidade: a vida do filósofo - bios theoretikos - encontra seu sentido na busca da verdade, no amor ao conhecimento. "Amigo de Sócrates, mas mais amigo da verdade", teria dito Platão, o filósofo que mais importância concedeu, em seu pensamento, ao amor e à amizade... Em caso de conflito entre a vida e a verdade, o filósofo escolhe a verdade. O efeito da descoberta da incomensurabilidade entre a diagonal e o lado do quadrado foi fatal para a comunidade pitagórica: acabaram-se os pitagóricos, prevaleceu o teorema.

Este compromisso com a verdade, com o ideal de conhecimento, com o rigor das exigências impostas ao que se está disposto a considerar "conhecimento", é ao mesmo tempo o que move a filosofia para diante e o que a mantém sob permanente ameaça. O espectro do ceticismo ronda a filosofia como sua inseparável e necessária sombra. O cético não é o outro, o adversário, a negação do filósofo; é a distância, a inadequação que o filósofo é obrigado a reconhecer entre seu ideal, sua pretensão, suas exigências, de um lado, e suas possibilidades e realizações, de outro.

A filosofia está permanentemente em crise. Através dos séculos, todas as tentativas de chegar à verdade, de atingir o conhecimento, a certeza, a justificação acima de qualquer dúvida, têm fracassado. Não se vislumbra qualquer perspectiva de consenso: o conflito das opiniões é a regra entre os filósofos.

Ora, como afirma N.Goodman, "o desastre recorrente equivale a uma reductio ad absurdum da filosofia tal como ela é comumente concebida - do que é tido como sendo algumas das idéias e questões centrais da filosofia. Derrota e confusão estão embutidas nas noções de verdade e certeza e conhecimento." (RP, p.153) Uma reconcepção da filosofia se faz necessária, conclui Goodman: algumas revisões, substituições, suplementações, alguma inspeção no equipamento conceitual que vem sendo empregado.

Tenho a maior simpatia pelo projeto de Goodman, concordo com seu diagnóstico e com a maior parte das suas sugestões, mas duvido do seu resultado, porque não lhe reconheço a originalidade que ele reivindica. Pois o que ele propõe não é o que praticamente todos os filósofos vêm fazendo, através da história, ao apresentar a sua (deles) reconcepção da filosofia? Ou pelo menos, se atentarmos melhor para a especificidade das mudanças para as quais ele aponta, não seriam elas mais uma vez a voz do cético a tentar conter a desmedida pretensão filosófica, que entretanto teima em ressurgir, renovada, após cada "desastre" a que conduzem suas renitentes tentativas? Incorrigível mistura de Ícaro e de Fênix, a filosofia queima reiteradamente suas asas, e renasce das próprias cinzas para queimá-las de novo... Até quando? E para quê?

III) Não haveria aqui espaço (tempo) para desenvolver minha idéia de que esta paixão da filosofia não é inútil, embora de fato não acumule resultados. Não me incluo em nenhuma das tres categorias de filósofos que Goodman critica: os que desistem, os que continuam uma luta fútil, e os que se regozijam com a liberação, concluindo que "vale tudo" (mesmo que então "nada vale" valha também, assim como "há algumas coisas que não valem").

Mesmo se concordarmos que a filosofia, tal como tradicionalmente ela se auto-apresenta, investida das mais altas e inalcançáveis pretensões, é uma espécie de "doença infantil" do espírito humano, não penso que isso seja razão para combatê-la ou para depreciá-la. "O mundo seria triste se não houvesse doentes", disse Fernando Pessoa, e tinha razão. A desmedida filosófica tem seu aspecto rançoso e dogmático, por certo, mas também seu lado ousado e positivo, e não me parece possível conservar o bebê sem um pouco da água do banho.

Aprende-se alguma coisa, certamente, através dos fracassos da filosofia, e se os "filosofemas" são descartados uns após os outros, resta sempre algum refinamento da "sensibilidade conceitual e perceptiva, acuidade lógica, amplitude e profundidade de entendimento, e capacidade de distinguir verdades importantes e triviais" (RP, 152), o que, afinal de contas, é o mesmo que pretende Goodman com sua "reconcepção da filosofia" !

Rejane Xavier

Brasília, novembro de 1991.

UnB Depto de Filosofia

1992/2 Mesa-redonda dos Estudantes de Filosofia


terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

BATMAN e a descontinuidade temporal



"Para apreciar a maneira pagã de pensar, temos de deixar nossa própria maneira de então-e-então-e-então, de um começo até um fim, e permitir que a mente ande em círculos ou esvoace aqui e ali em volta de um agregado de imagens.
Nossa idéia do tempo como continuidade numa linha reta e eterna mutilou brutalmente nossa consciência."
D.H.LAWRENCE 



Explique a diferença da idéia de descontinuidade expressa por D.H.Lawrence no trecho citado e a que se expressa, hoje, em manifestações de cultura de massa como, por exemplo, os últimos filmes de Batman.


A citação de Lawrence em questão aparece no contexto de uma análise da noção de modernismo, e ilustra o que é visto como parte de um núcleo comum a muitas diferentes e, em certos aspectos, conflitantes, tendências dentro do mesmo. Trata-se, como esclarecem os autores dessa análise, do fato de que "as obras modernistas tendem a se ordenar não na seqüência do tempo histórico ou na seqüência progressiva da personagem histórica ou fictícia, tal como no realismo ou no naturalismo, mas sim a operar espacialmente ou através das camadas da consciência, em direção a uma lógica da metáfora ou da forma." (p.38 ) ( MALCOLM e MAC FARLANE - O Nome e a Natureza do Modernismo - IN Guia Geral do Modernismo - São Paulo - Cia das Letras - 1989 )

Sem procurar repetir ou parafrasear os comentários, extremamente pertinentes, dos referidos autores, acho interessante complementá-los através de uma vertente que tem sido pouco explorada nesse tipo de análise, e que a meu ver a reforçaria grandemente. Trata-se de apontar para a convergência dos resultados da nova física, desde os fins do século XIX, com Maxwell, mas principalmente do início de século XX (Plank, Bohr, Einstein), com essa sensibilidade moderna revelada pela arte e a literatura do mesmo período.

O tempo na física moderna
Especificamente em relação ao tempo, é imediata a referência à teoria da relatividade einsteiniana. Einstein abandona o tempo como parâmetro independente e o associa ao espaço, à matéria e à energia. Como exprime Hermann Weyl, matemático cujos trabalhos se relacionam à teoria da relatividade, "em nosso tempo, foi desencadeado um cataclisma que varreu espaço, tempo e matéria, até então vistos como os mais firmes pilares da ciência natural". Weyl lembra que a subjetividade das qualidades sensíveis já era reconhecida pela física clássica, desde Galileu e Descartes; que Kant dá o passo seguinte, reconhecendo que o espaço e o tempo não têm significado objetivo no sentido absoluto, que também eles são apenas formas da nossa percepção. "No campo da física, diz Weyl, foi talvez só a teoria da relatividade que tornou bastante claro que essas duas essências, espaço e tempo, que entram em nossa percepção, não têm lugar no mundo construído pela física matemática".

"Desrealizado" o mundo da física, para o qual não somente as qualidades (cores, sons, etc.) mas as próprias coisas se tornam "meramente uma série de valores de funções matemáticas em que ocorrem quatro parâmentros independentes, correspondendo às tres dimensões do espaço e à dimensão do tempo" (Weyl, ibidem), é natural que a linguagem da própria física renuncie a seu ancoramento realista, descritivo. É o que diz por exemplo Niels Bohr, prêmio Nobel de física de 1922 (ano da Semana de Arte Moderna de São Paulo): "quando vamos para os átomos, a linguagem só pode ser usada como na poesia. O poeta, também, não está tão preocupado com descrever os fatos quanto com criar imagens."

Se o mundo da física renuncia à solidez das coisas e das essências, o mundo do eu e o mundo da história também irão recuperar a fluidez, a contingência, as singularidades, renunciar à lógica determinista dos acontecimentos rigorosamente encadeados.
E se o determinismo ("possibilidade de previsão rigorosa dos fenômenos futuros a partir dos fenômenos atuais, possibilidade que implica que o por vir está contido no presente e não lhe acrescenta nada", como o explica Louis De Broglie, também prêmio Nobel de física) e a continuidade que ele implica são abandonados pela física, a fortiori deixarão de servir à psicologia ou à história.

A arte moderna irá expressar, por diferentes processos e canais, o novo tipo de sensibilidade que corresponde a essa nova visão do mundo.

Batman
Até hoje - lamentável lacuna em minha cultura geral - ainda não tinha assistido nenhum filme do Batman, o que me privaria de explorar a sugestão, contida no enunciado da questão desta prova, de confrontar a descontinuidade ali presente com aquela a que alude D.H.Lawrence. Recorri então à locadora mais próxima, onde consegui o vídeo do primeiro desses filmes, e dele extrairei a matéria das considerações que se seguem.

À primeira vista, chama a atenção a presença simultânea de elementos de várias épocas históricas. A casa do personagem que vira Batman (Bruce Wayne) é uma espécie de castelo medieval, mas dotada de sofisticado circuito interno de televisão; o escritório do bandido principal (representado por Jack Pallance) é decorado de modo altamente high-tech; a fábrica de produtos químicos onde atua o Coringa parece corresponder aos estereótipos das instalações industriais pesadas e sufocantes do início do século (a fábrica de Metrópolis, talvez). Os acessórios de que se serve o Coringa (seu walkie-talkie ou telefone celular, que ele usa para se comunicar com seus asseclas, os balões com que ataca com gás a multidão, o revólver comprido com que alveja o Batman, a máscara que ele dá à heroína no restaurante, a mão que sai de uma caixinha com mola) parecem brinquedos de criança, de plástico de cores berrantes.

O tempo em que transcorre a narrativa se torna assim indeterminado de múltiplas maneiras: a cidade está comemorando 200 anos, mas não se sabe a partir de quando eles são contados, e não é possível estabelecer a época através da referência à arquitetura, ou à tecnologia, ou mesmo aos trajes dos personagens, porque não fica claro o que deve ser tomado como realidade e o que pretende ser fantasia. Também não é claro se o filme é para crianças (engraçado que o personagem que mais evoca a infância é o bandido mais cruel) ou para adultos, ou ambos. Toda essa fragmentação de referências produz um clima de estranhamento, de irrealidade, que desarma as defesas lógicas que normalmente oporíamos às inverossimilhanças da narrativa: tudo se torna permissível e, portanto, possível.

Ao refletir um pouco, entretanto, sobre a relação dessa ficção assumida e mais ou menos abertamente irônica com a realidade do nosso tempo, começamos a nos surpreender com uma série de convergências. Há, por exemplo, uma espantosa semelhança do Coringa com o nosso atual presidente da República [Fernando Collor, na época], que perpetra as mais incríveis falcatruas e se exibe publicamente fantasiado...não de palhaço, mas de atleta, portando mensagens herméticas nas camisetas ("o tempo é o senhor da razão"!), fazendo caretas, dando risadinhas histéricas e cunhando frases sem sentido ("você já dançou [Besame mucho] à luz das estrelas?"...). Temos no mundo de hoje as mais diferentes épocas convivendo simultaneamente: índios munidos de gravadores e videocassetes, muçulmanas veladas nas escolas secundárias da França, guerra de alta tecnologia despejando armas de última geração sobre nômades do deserto. As noções de passado e de futuro se diluem nessa co-presença num presente que as ultrapassa e inclui.

Vanguarda e utopia
Acho que Haroldo de Campos coloca muito bem como isso se reflete na arte do nosso tempo:
"Sem a perspectiva utópica, o movimento de vanguarda perde o seu sentido. Nessa acepção, a poesia viável do presente é uma poesia da pós-vanguarda, não porque seja pós-moderna ou anti-moderna, mas porque é pós-utópica. Ao projeto totalizador da vanguarda, que, no limite, só a utopia redentora pode sustentar, sucede a pluralização das poéticas possíveis. Ao princípio-esperança, voltado para o futuro, sucede o princípio-realidade, fundamente ancorado no presente. Concordo com Octavio Paz quando expõe, nas páginas finais de Los hijos del limo, que a poesia de hoje é uma poesia do "agora" (prefiro a expressão "agoricidade"/"Jetztzeit", termo caro a Walter Benjamin): uma poesia "do outro presente" e da "história plural", que implica uma "crítica do futuro" e de seus paraísos sistemáticos. (...) O presente não conhece senão sínteses provisórias e o único resíduo utópico que nele pode e deve permanecer é a dimensão crítica e dialógica que inere à utopia. Esta poesia da presentidade, ao meu modo de ver, não deve todavia ensejar uma poética da abdicação, não deve servir de álibi ao ecletismo e à facilidade. A admissão de uma "história plural" nos incita, ao invés, à apropriação crítica de uma "pluralidade de passados", sem uma prévia determinação exclusivista do futuro." (Poesia e modernidade: o poema pós-utópico. FSP, 14/10/84)

Batman (o retorno)
Voltando, para concluir, às minhas já reiteradamente colocadas inquietações céticas, temo que a "presentidade" da cultura de massas, expressa nos filmes de Batman ou na figura emblemática de Michel Jackson (criança/adulto, homem/mulher, preto/branco, mito/realidade) tenha jogado fora o bebê junto com a água do banho: o resíduo crítico e dialético, inerente à utopia, de que fala H.de Campos, não terá escorrido pelo ralo junto com a própria utopia? O que será de Gotham City quando o último grande bandido (o último grande projeto coletivo, unificador, embora perverso) tiver sido eliminado?
O que nos reserva Batman: o retorno? Um entediado Bruce Wayne às turras com a sra.Batman, cheia de filhos e celulite, comendo pipocas e participando das festinhas de aniversário da cidade, não mais ameaçada por nenhum Grande Malfeitor? Ainda não tive tempo de assistir o segundo filme, mas aposto que vão inventar alguma nova loucura maléfica. Só o mal ainda parece ter energias suficientes para introduzir um frêmito de absoluto, uma centelha de sentido na geléia geral em que parece ter se transformado o nosso super aqui-e-agora.

Brasília, 29/7/92.

Cartão de Boas Festas 2008-2009