sábado, 15 de outubro de 2011

O POSITIVISMO LÓGICO E A “FILOSOFIA CIENTÍFICA”


Num  ciclo de debates sobre O que é fazer Filosofia? não poderia faltar uma discussão sobre a assim chamada filosofia científica
"Filosofia científica" não é sinônimo de "positivismo lógico". Mas para dar uma idéia de um certo estilo de discussão ainda vigente, podemos tomar a parte pelo todo, e ler o que se diz do positivismo como típico da atitude hostil que a filosofia científica desperta em muitos setores.

O jornal Folha de São Paulo publicou, em 28 de setembro do ano passado, matéria em que relata uma entrevista dada por Habermas em sua visita a Porto Alegre. Comentando o destino de seu Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt, Habermas refere a repressão nazista que marcou a sua história. Os enviados do jornal, não sei se por conta própria ou relatando palavras de Habermas, continuam, amalgamando essa repressão ao extermínio de Aushwitz, que consideram
"a expressão máxima da lógica que atribui valor às coisas de acordo com sua eficiência, sua operacionalidade. Esse tipo de pensamento travestido de razão, essa 'mancha turva no horizonte da racionalidade' tem um nome: positivismo. É na crítica ao positivismo que está o cerne do projeto filosófico de Habermas."

Zero Hora, de Porto Alegre, na edição de 9 de dezembro do ano passado publica artigo de Luiz Pilla Vares ("Esferas da consciência: pela humanidade humana"), cuja primeira frase transcrevo:
"A grande tragédia do socialismo em todo o mundo foi o seu abastardamento teórico por meio do positivismo e do economismo".

Segundo essa análise, Engels é culpado de positivismo, "em razão de sua inclinação para o estudo das ciências"; "verifica-se nas sua obra uma negação dialética de viés positivista, negação esta que se deve ao positivismo que Engels vai legar a seus herdeiros". Herdeiros esses que seriam nada mais nada menos que Eduard Bernstein e Karl Kautski, "os arquitetos da social-democracia alemã". "Assim, toda a teoria da social-democracia alemã acaba por se tornar uma versão desnaturada do marxismo, e vai ser esta deformidade que norteará as linhas fundamentais do movimento operário e socialista mundial por várias décadas." 
Se a direita marxista, social-democrata, é vista como infectada pelo positivismo e o cientificismo (a vasta obra de Kautski, por exemplo, "sofrerá cada vez mais uma atrofia 'positivista' e naturalista, em detrimento da dialética"), a esquerda tampouco estaria livre do contágio: Rosa de Luxemburgo - continua o artigo citado - , em sua obra principal, "cede ao determinismo e ao economicismo, que acabam se tornando o elemento decisivo de seu livro". O próprio Lênin, "a par de seus inegáveis méritos, não estaria livre da influência positivista. Escreveu um livro "muito ruim", Materialismo e Empiriocriticismo, excessivamente dogmático e mecanicista", que apesar disso "influenciou filosoficamente toda a vertente marxista que se reivindicava do bolchevismo." Posteriormente, serviu para "sedimentar a ideologia de dominação que se cristalizou no fenômeno stalinista".

Estranha e maléfica prole, esta do positivismo cientificista: nazismo, social-democracia, movimento operário mundial, bolchevismo, stalinismo... Mas isso ainda não é tudo. Ciências sociais "positivas", behaviourismo na psicologia, controle burocrático da sociedade, liberalismo econômico e welfare-state, cibernética e informática, já foram apresentados como outros tantos rebentos indesejáveis dessa "perversão profunda do pensamento contemporâneo". Que por isso mesmo deve entretanto possuir algum charme muito especial : do contrário, como explicar que uma tendência abominada e combatida pelo marxismo, a fenomenologia, a hermenêutica, o existencialismo e a filosofia da linguagem ordinária tenha conseguido influenciar tão fortemente praticamente tudo o que acontece em nosso tempo, nos campos os mais opostos?

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Tendo rapidamente visto "no que deu" a filosofia científica, através de seu ramo mais combatido, vejamos de forma igualmente sumária de onde ela vem. Certamente não é por sua valorização do conhecimento científico, por destacar suas características lógicas, por privilegiar seus laços com a experiência, por tomá-lo como paradigma de racionalidade a ser alcançado pela própria filosofia que o positivismo e a filosofia científica foram abominados.

A história da filosofia é um rosário de exemplos da cumplicidade do pensamento filosófico com o científico [ver Schlick, PP II: 145-7]. Dos primeiros "fisiólogos", dos quais não se pode dizer se eram filósofos ou cientistas naturais, a Aristóteles, para quem a ciência é modelo de conhecimento, caracterizada pela necessidade e a eternidade de seu objeto, refletidas no encadeamento necessário das proposições que o descrevem. Seu traço distintivo e dominante, para Aristóteles, é seu caráter lógico discursivo : ela é essencialmente demonstração, com a universalidade que esta pressupõe e acarreta (Granger, 1976 : 24-5). Do matematismo dos pitagóricos à divisa de Platão, inscrita no frontispício da Academia  - "Não entre aqui quem não souber Geometria" -, ou às escolas materialistas do atomismo e do epicurismo, que ousou pensar uma física capaz de libertar o homem "de toda intervenção providencial dos deuses e [d]a representação angustiante da morte" (Nizan, 1977 : 28), a filosofia antiga não hesitou em buscar junto às ciências modelo, inspiração, métodos e resultados.

O pensamento filosófico moderno também se constitui em profunda simbiose com o desenvolvimento científico. Descartes é físico e matemático, Leibniz cria o cálculo infinitesimal e polemiza com Newton sobre o espaço; Berkeley faz uma impiedosa e certeira análise dos fundamentos do cálculo newtoniano. Kant propõe, independentemente de Laplace, uma teoria da formação do sistema solar, e não é forçar injustificadamente as coisas ver em sua obra, como um tema central, a preocupação epistemológica com os fundamentos da física newtoniana (tal como o leram os neokantianos). A introdução da Crítica da Razão Pura se preocupa em questionar por que motivos, até então, a metafísica não teria encontrado "o seguro caminho de uma ciência", como a lógica já o fizera desde Aristóteles, e como a Física, graças a uma revolução recente, acabava de fazer.

Visivelmente, a admiração pelos métodos e resultados da nova ciência vai acompanhada de uma indisfarçável impaciência frente às altas pretensões cognitivas e à falta de justificativas da velha filosofia. Também a esse respeito a "filosofia científica" não carece de precedentes. No campo do empirismo, é lapidar e famosa a conclusão da Investigação acerca do entendimento humano, de Hume:
"Quando percorremos as bibliotecas, persuadidos destes princípios, que destruição deveríamos fazer? Se examinarmos, por exemplo, um volume de teologia ou de metafísica escolástica, e indagarmos" Contém algum raciocínio abstrato acerca da quantidade ou do número? Não. Contém algum raciocínio experimental a respeito das questões de fato e de existência? Não. Portanto, lançai-o ao fogo, pois não contém senão sofismas e ilusões."

Menos radical, Kant se contenta (como o farão os positivistas lógicos) em privar a metafísica de significado cognitivo. Não há conhecimento de qualquer espécie para além do campo da experiência possível. "Somente nossa intuição, sensível e empírica, pode proporcionar [aos conceitos puros do entendimento] sentido e significado [Sinn und Bedeutung] (CRP, B 149).

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Por que então tanta surpresa e indignação quando  Russell ou Carnap "reduzem" a filosofia à análise lógica da linguagem das ciências, ou quando Wittgenstein sustenta que "o objeto da filosofia é o esclarecimento lógico do pensamento", que "a filosofia não é uma teoria, mas uma atividade..." que "a filosofia não resulta em 'proposições filosóficas', mas em tornar as proposições claras" (Tractatus, 4.112)? Qual o escândalo se Schlick afirma que " não há outra maneira de testar e confirmar verdades senão pela observação e pela ciência experimental", que não há, portanto, "nenhum domínio adicional de 'verdades filosóficas', pois a filosofia não é um sistema de proposições" (PP, II : 157); que "o autor filosófico,...construindo sua filosofia puramente espiritual, não se perturba nem um pouco, pois a vasta maioria de seus leitores é igualmente incapaz de conferir se os fatos da natureza estão de acordo com os filosofemas que lhes são fornecidos como verdades últimas" (PP, II, 134)?

Na verdade, os defensores da "concepção científica do mundo" não economizaram provocações, e isso explica em parte a hostilidade e as reações. Depois de ter indicado como proceder à "superação da metafísica através da análise lógica da linguagem" (através de exemplos retirados de Ser e Tempo de Heidegger), Carnap consente em lhe reservar um pequeno território:
"...a metafísica possui um conteúdo  - só que este não é teórico. As (pseudo)proposições da metafísica não servem para a descrição de relações objetivas, nem existentes (caso em que seriam proposições verdadeiras), nem inexistentes (caso em que - pelo menos - seriam proposições falsas); elas servem para a expressão de uma atitude emotiva diante da vida".

Mas atitude emotiva não é teoria,e expressá-la sob a forma aparente de uma teoria (como um sistema de proposições) é um equívoco, sobretudo se, ao contrário do que ocorre na poesia, pretende estar se movendo no terreno do verdadeiro e do falso. "Na verdade, os metafísicos são músicos sem talento musical", que confundem ciência com arte e criam "uma estrutura que não consegue nada no que concerne ao conhecimento e que é insuficiente como expressão de uma atitude emotiva perante a vida". (Carnap, 1932)

Reichenbach (segundo o qual o célebre "Ser ou não ser!" de Hamlet não é um dilema, mas uma tautologia) concorda com Carnap:
“Há muitos estudantes que vêm às aulas de filosofia em busca de edificação: lêem Platão como quem lê a Bíblia ou Shakespeare, e sentem-se desiludidos diante de aulas de filosofia onde têm de escutar exposições de lógica simbólica ou de teoria da relatividade. Tudo o que posso dizer dessa atitude é que os que procuram edificação devem assistir lições sobre a Bíblia ou sobre Shakespeare, e não devem procurar encontrá-la num lugar que não lhe corresponde." (Reichenbach, l951)

É basicamente a mesma atitude que Russell expressava em 1914, na conferência "Sobre o método científico na filosofia":
"Creio que os motivos éticos e religiosos, a despeito dos sistemas esplendidamente imaginativos a que deram origem, têm sido de modo geral um obstáculo ao progresso da filosofia e deveriam agora ser conscientemente descartados pelos que desejam descobrir a verdade filosófica. (...) Em minha opinião, a filosofia deveria buscar inspiração na ciência e não na ética ou na religião."
 
Até aqui, estou fazendo exatamente o contrário do que se aprende nas primeiras lições de retórica, onde nos dizem que antes de mais nada deve-se tratar de obter a benevolência do público! O auditório, predominantemente filosófico, deve estar a essa altura odiando a "filosofia científica" tanto quanto a mim, que a apresento de forma supostamente simpática, ou pelo menos sem procurar estraçalhá-la desde as primeiras pinceladas...

Vejamos então se é possível fazer alguma coisa para nos reconciliar com um ponto de vista prima facie tão intransigente, e que parece não deixar lugar precisamente àquelas demandas mais íntimas e mais fortes que fizeram com que muitos dentre nós nos aproximássemos da filosofia. Uma busca de sentido, de valor e de racionalidade, que não exclui por certo o interesse e o respeito pelo conhecimento empírico dos fatos e pela validade formal dos argumentos, mas que suspeita, acredita ou espera que seja possível resgatar alguma outra dimensão discursivamente controlável, submetida a standards de racionalidade que não exclusivamente os da ciência empírica ou os da lógica formal. (As recentes tentativas de explicitar o caráter sui generis dos "argumentos transcendentais" podem ser vistas sob esta luz.) 

Sustento que a "filosofia científica" não só não afasta uma tal possibilidade como de certo modo, pelo rumo que tomaram suas tentativas de elucidação da linguagem da ciência, termina por exigir a introdução de uma dimensão prático-racional no âmago mesmo da jurisdição onde se trata da justificação de pretensões de conhecimento de enunciados teóricos. [Ao contrário de Habermas, portanto, vislumbro a "superação do positivismo" não pelo lado de uma "fundamentação cognitiva da práxis", mas inversamente, por uma "fundamentação prática do conhecimento".]

Deixemos de lado a virulência polêmica dos primeiros manifestos da filosofia científica. Ela se explica pela conjuntura filosófica, acadêmica e político-social da Europa no início do século. [Ver "Viena 'Fin del Siglo' y la modernidad como proyecto histórico", artigo de Rafael Farfán em Sociológica, 3 (1986-7)]também [Schlick,M. Philosophical Papers, vol. II, "The turning-point in philosophy", 154 ss] também [Russell, "A filosofia no século XX", em Ensaios céticos]

Do ponto de vista pessoal, como grupo acadêmico, e por suas posições políticas os "filósofos científicos" tiveram um papel muito freqüentemente mais tolerante, democrático, e mesmo progressista do que seus adversários teóricos. O Círculo de Viena sofreu perseguições, dispersou-se e teve de enfrentar o exílio não apenas porque muitos de seus membros eram judeus, mas também porque suas idéias eram consideradas "dissolventes" (subversivas). Neurath, da sua "ala radical", era francamente marxista, e o grupo, como um todo, afinava com o projeto da social-democracia austríaca, de modernização de uma sociedade ainda fortemente marcada por atavismos feudais (veja-se o corporativismo da Universidade: exemplo da dificuldade de Freud em se tornar professor em Viena) e aristocratizantes "a partir dos quais se organizava e dirigia sua vida política, social e, sobretudo, a educação e a cultura" (Farfán, p. 69). Enfrentaram a hostilidade manifesta do meio universitário alemão e dos grupos intelectuais institucionalizados que, apesar de um discurso "crítico" elitizado e esotérico não opuseram nenhuma resistência social e política ao crescimento do nazi-fascismo (id.,68) .

Mas o que interessa destacar para desfazer a imagem de dogmatismo e estreiteza associada à filosofia científica é que seus críticos costumam descrevê-la e atacá-la com base em formulações polêmicas e simplificadas de suas posições iniciais, e desconhecem o intenso trabalho crítico interno que ela própria, constantemente, desenvolveu. A maior parte dos argumentos usados "contra" o positivismo, por exemplo, não passa de resultados da própria análise crítica que os positivistas promoveram a respeito do método científico, do significado da linguagem da ciência, da filosofia da lógica, da aplicação da matemática à experiência, etc. Sem esse intenso e tecnicamente preciso questionamento, talvez passássemos mais dois mil anos repetindo os filosofemas tradicionais a respeito da ciência e da necessidade de suas verdades.

Porto Alegre, setembro de 1990.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Einstein e Deus

religião, para Einstein, é a profunda admiração pela estrutura do Universo, 
"na medida em que conseguimos compreendê-la".


Einstein esclarece: "não acredito num Deus pessoal, antropomórfico". 

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

A ética importa, sim

Para Marx, “justiça, liberdade, igualdade, fraternidade, independência” são categorias que " soam bem, é certo, mas não têm nenhum sentido no domínio histórico e político”.


Causam tristeza e preocupação as tentativas canhestras de alguns setores da esquerda de minimizar a gravidade dos desmandos éticos que têm marcado nossa política. Segundo esses defensores da máxima de que “os fins justificam os meios”, vale tudo, desde que seja feito em nome dos excluídos, dos historicamente explorados, dos trabalhadores, enfim, desse amálgama histórico e político comodamente reunido sob o rótulo de “o povo”.

O raciocínio é intelectualmente simplista: a moral seria um conjunto de normas criadas pelas elites ­­– que não acreditam nelas nem as praticam­­ – para melhor manter “o povo” na passividade e na submissão. Portanto, ao chegar ao poder, nada mais justo que “o povo” se desembarace dessas regras e passe a prescindir de qualquer freio ético no projeto de afirmação de seus próprios interesses e de consolidação de sua hegemonia política.

A ética deve valer também para os "amigos do povo"
Acontece que, como toda simplificação, essa passa por cima de aspectos importantes e, neste caso, essenciais para a própria idéia de democracia. Sem os valores éticos que a fundamentam − como os ideais de igualdade, de justiça, de liberdade − o que sustenta ainda a democracia? As instituições sobre as quais ela assenta a sua existência, como o Estado de direito ou a autonomia e o sistema de freios e compensações entre os poderes, pressupõem um princípio ético fundamental: o reconhecimento do outro − qualquer outro − como merecedor do mesmo respeito e da mesma consideração que eu reivindico para mim, para minha família e para os meus amigos.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Ética e Política-resumos

Pequena síntese da idéia central de alguns dos autores propostos num curso sobre Ética e Política realizado em 2008 no Cefor da Câmara dos Deputados.

PLATAO
Para Platão, a razão deve governar a conduta, do indivíduo ou da sociedade. Por instinto (ou segundo simplesmente a sua vontade), todo homem seria injusto (prepotente, egoísta). A justiça não é uma qualidade individual: depende da educação e do controle social.(cf. O anel de Giges (República, 359b-360a)).
Dos três tipos de homem – o que busca a riqueza, o que busca o poder e o que busca o conhecimento – é o último, que Platão chama “o filósofo”, o que tem mais “experiência, sabedoria e raciocínio”, e é portanto o que deve governar. A razão (representada pela educação e pela sociedade) deve portanto se sobrepor ao instinto, no que concerne à moral.

MAQUIAVEL
A ética individual, judaico-cristã, não se aplica à esfera da política, onde vale o espírito público: um conjunto de valores greco-romanos voltados à conquista do poder e à promoção da grandeza e da ordem do Estado. Para Maquiavel, a ética política é uma “ética da responsabilidade” (conceito introduzido por Max Weber, séculos mais tarde), em que os resultados da ação (à luz dos interesses do Estado) pesam mais do que os princípios que conduzem à salvação da alma individual.

KANT
O conceito central da ética kantiana é o de dever, formalmente concebido, isto é, Kant não nos diz o que fazer em cada situação, mas nos dá um princípio geral segundo o qual nós, como homens livres, devemos determinar a nossa ação. Esse princípio é o imperativo categórico: “age sempre de forma tal que possas querer que a regra da tua ação possa se tornar uma lei universal”. Ou seja: pensa se aceitarias que todos agissem da mesma forma.

Nesse princípio aparece claramente o vínculo entre a liberdade individual e a esfera coletiva. Kant concebe a política em estreita vinculação com a ética. Ele propõe a república como a forma de organização social melhor equipada para conciliar as tendências antagônicas dos indivíduos: isolar-se, ou associar-se em comunidades. O conceito de república pressupõe três condições ou critérios: a liberdade, a igualdade e a submissão de todos a uma legislação única. No quadro da sociedade republicana, os conflitos, as diferenças e oposições não são sufocados nem eliminados, mas encontram espaço para se neutralizar e equilibrar.

LEIA MAIS: Freud, Kohlberg, Pinker, Rejane...

terça-feira, 14 de junho de 2011

PARADOXOS DA DEMOCRACIA


 PARADOXOS DA DEMOCRACIA[1]


A democracia não é meramente um mecanismo de tomada de decisões por meio do voto: é uma forma de vida, um progresso moral em relação ao puro e simples jogo de forças. 
Rejane Xavier

 Dificilmente se encontrará, hoje, quem esteja disposto a contraditar a tese de que , na busca da solução dos conflitos sociais, a prevalência da vontade da maioria, aferida através do voto, é a forma democrática por excelência de decisão.  O bom senso parece indicar que, onde não é possível que todos fiquem satisfeitos, o voto majoritário é o instrumento que permite assegurar que pelo menos a maioria estará satisfeita, por ver seu ponto de vista prevalecer.

Entretanto, se isto é perfeitamente válido para cada controvérsia específica, a análise lógica mostrará resultados inesperados e surpreendentes, ao tomarmos como universo o conjunto dos interesses entre os quais uma dada sociedade se vê levada a arbitrar, em determinado momento. 

Não estamos falando simplesmente da faceta potencialmente perversa da democracia, de permitir que as minorias sejam massacradas e excluídas pelas maiorias. Na verdade, é possível mostrar que o processo democrático do voto pode promover a exclusão e a frustração das próprias maiorias, já que o domínio da maioria não garante que a maioria das pessoas consiga o que deseja.
Consideremos o exemplo abaixo, em que cinco votantes expressam as suas preferências em relação a cinco proposições em pauta:


Votantes
Resultado

A
B
C
D
E

Proposições
1
1
1
0
0
0
Rejeitada
2
0
0
1
0
1
Rejeitada
3
0
0
1
1
1
Aprovada
4
1
0
0
1
1
Aprovada
5
0
1
0
1
1
Aprovada

Perd
Perd
Perd
Ven
Ven




















1 -  Aprova              Perd: perdedor líquido
0 -  Rejeita              Venc: vencedor líquido
Marcador  rosa: quando o resultado saiu de acordo com a preferência do votante

O exemplo mostra que, neste caso, a maioria dos votantes teve a maioria das suas preferências derrotadas!

O que mostra esse paradoxo, apontado por Elizabeth Anscombe[2], é que pode ocorrer que a maioria dos participantes de um conjunto de escolhas decididas por maioria simples tenha rejeitadas não só a sua própria proposta, como a maioria das propostas que apoiou. Analisando o exemplo de Anscombe, a conclusão de Peter Geach[3] é de que "este modelo em pequena escala mostra muito claramente como um governo democrático pode causar aguda frustração à maioria de seus cidadãos através de uma série de medidas, cada uma das quais poderia com propriedade ser descrita como sendo rejeitada apenas por uma minoria, por um 'interesse setorial'; na verdade, a menos que um bom número de 'interesses setoriais' prevaleça, o país será profundamente infeliz".


sexta-feira, 20 de maio de 2011

Supresa: eu concordo com Sarney!

Sem preconceito, por favor!
Nada mais representativo da burrice do que essa teoria do falar errado. Foi quando fui presidente da República que universalizei o programa do livro gratuito nas escolas, e o grande problema era a qualidade do livro.

Eu mesmo, nesta coluna, tive a oportunidade de reclamar de um livro de história distribuído nas escolas, chegado às minhas mãos pela minha neta, um verdadeiro horror pelos erros que ensinava.

Hoje todos estão de acordo que a educação é um problema universal. Sem ela, ninguém caminha. E esta começa pela língua. O mundo do futuro não será de países grandes ou pequenos, mas dos que dominarem tecnologia e ciência.

Para isso, não estão dispensados de falar corretamente.

A língua é instrumento de unidade e político. É a primeira identidade. Não é por acaso que a Alemanha e a França gastam quantias fabulosas para manter, inclusive mundo afora, o ensino do alemão e do francês. É impossível pensar em matar as suas línguas, deformando-as, sem regras e sem falantes.

É nesse quadro que o Brasil resolve criminalizar quem fala corretamente e quer ensinar a que os outros também o façam. Isto, dizem, é discriminação. Ensinar não é discriminar, a função do professor é ensinar e corrigir.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Em defesa da tradição


Depoimento - ou desabafo do Théo, primeiro presidente do CTG Estância da Amizade
(levemente editado por mim, RX)

Théo-1953
TRADICIONALISTA
Theodomiro Xavier

Acho que a intolerância se deve ao fato de que ninguém aceita ou entende o hobby do outro

Sou tradicionalista e "gauchista", de há muito tempo. Isto é público e notório e por causa disto sou alvo de frequentes ataques de iconoclastas que nunca soube porque detestam as tradições. Por que isto?

O tradicionalismo é aceito na França, Inglaterra, Rússia, Polônia etc. Grupos se formam para cultuar as danças, roupas, músicas de seus antepassados . No Brasil cada região tem o seu folklore e tradição. Mas aqui no Rio Grande do Sul há quem ache isto abominável.

Temos exageros ? temos ! mas isto é comum em qualquer atividade. Voltemos para o normal. Eu acho que a intolerância se deva ao fato de que ninguém aceita ou entende o hobby do outro!

Por que um cirurgião renomado, do meu hospital, sai no inverno, com chuva e se esconde atrás de uns galhos verdes para dar tiros nuns patos que não fizeram nada para ele? Por que uma pessoa fica horas de pé num festival para ouvir uma música que pode ouvir no Youtube? Eu tenho um vizinho que montou uma parafernália na garagem, gasta uma fortuna para trazer trenzinhos e sinaleiras da Europa – porque ele é ferroviarista!

Agora gostar de músicas, história e estórias dos gaúchos causa um incômodo a alguém, por que? Consultem um psiquiatra!

O Demétrio de novo

O artigo que ele (não) menciona abaixo já foi transcrito aqui. O que aparece a seguir é um comentário via e-mail, que achei que valia a pena compartilhar.Quando desapareceu o "gaúcho de verdade"? "O gaúcho é uma figura libertária ou um servil?" - questões que o Demétrio coloca e responde à luz das suas vivências e leituras. (RX)
Vou então jogar umas coisas. Não no ventilador, por supuesto, porque, como se diz no Passo da Tigra, noblesse oblige. Espargindo, para futuro acolheramento, se quadrar. Mais como quem lança... búzios!
Antes de mais tudo, recomendo vivamente um artigo meu, que esgota esse assunto com precisão e estilo invejáveis. Faço-o sem nenhum pudor, por uma razão até simples: nunca o escrevi.
Se intitula (rá; ria...) “Gauchismo: seus detratores, seu gauchismo.”
O Bioy Casares diz um troço muito legal: que, de uma maneira geral, a desaparição ou a derradeira presença do gaúcho “de verdade” (porque sempre se afirma que no presente ele não existe e o que há são representações fantasiosas) se localiza setenta anos antes do discurso que ora se estiver fazendo.
Isso permite um monte de chutes bonitos. O primeiro é que esse lapso coincide com a possibilidade de interlocução pessoal de avô com neto, tanto quanto com a expectativa de vida.
Quanta gente vinha dizendo que o Verdadeiro Gaúcho (doravante chamado neste instrumento VG) morreu na época da Revolução de 30?

Muitos bandos

Os comentários dos sobrinhos têm produzido textos tão legais que resolvi colocá-los como posts independentes. Então, não fiquem tristes se os textos que enviaram "não têm comentários" - cada um deles faz parte de uma rede de comentários recíprocos, OK?  (RX)
Borges tem um conto em que fala de um gaucho andando a cavalo pelos pampas que me causa arrepios.
É tão forte que dá prá sentir frio, cheiro de pasto e sobretudo melancolia, muita melancolia. Se essa melancolia toma cores diferente segundo se esteja deste ou daquele lado da fronteira eu não saberia dizer. Se o fato de sermos gaúchos com acento explica a razão de termos essas manifestações "folclóricas" tão exacerbadas é algo interessante de estudar.


Apesar de ser totalmente portoalegrense, venho de uma família com fortes valores gauchescos. Mesmo a geração mais jovem dos primos (somos 40 e poucos) encarna a figura do gaudério.


segunda-feira, 16 de maio de 2011

O discurso da legitimidade


Artigo do músico Demétrio Xavier, violonista e cantor porto-alegrense, especializado na pesquisa e interpretação da música crioula uruguaia e argentina, há 25 anos. Compositor eventual, venceu ao lado de Marco Aurélio Vasconcelos, a Califórnia da Canção Nativa de 2009, com a composição "A Sanga do Pedro Lira". Publicado originalmente na seção Fórum do CTG Inhanduí, de Porto Alegre.
 
“Preguntan de donde soy
y no sé qué responder.
De tanto no tener nada,
No tengo de adonde ser.”

E como perguntam, neste Rio Grande de Deus! De onde és? Bagé? Alegrete? Paleteias, laças, tranças? Leste estes ou aqueles textos, para mim fundamentais? Perguntas. Nem sempre foi assim…

Numa terra onde a instituição era tão rara e rala; onde o ilícito das atividades e o partidarismo das guerras poderiam criar constrangimentos e sobretudo onde sempre se precisava de algum braço destro… é assunto sabido que quem chegasse em qualquer galpão era bem recebido, comia, tomava mate e trago, se provisionava de alguma coisa; mudava cavalo, secava roupa e aperos. Sem perguntas.

Gosto particularmente de lembrar de algo que meu pai deixou escrito, sobre o fascínio que o cheiro de fogo exercia sobre ele (e que também sempre senti, sem fazer a associação, por falta da experiência): isso lhe vinha dos tempos de viajar só a cavalo, guri, cansado, sem recursos, às vezes molhado, voltando de entregar uma vacagem ou andando de escoteiro, mesmo. O cheiro do fogo era conforto, bóia, trago, conversa, quem sabe o flerte de alguma guriazinha…

Hoje, essa identidade gaúcha, emocionar-se com ela e cultivar os traços que a fazem ser identificável – os “sinais diacríticos” da Antropologia – passa por uma pergunta, lamentavelmente insistente: “tu podes ser gaúcho?” Subentendido aí “…sendo quem és?”

E aí eu morro de inveja dos negros e dos meus bisnetos.


sábado, 14 de maio de 2011

Tradicionalismo gaúcho

Este é um assunto que talvez vá parecer muito paroquial - para não dizer familiar - mas que eu acho que pode servir para provocar alguma reflexão sobre as tradições culturais: sua invenção, sua conservação, sua transmissão, sua transformação, sua convivência com a cultura urbana cada vez mais globalizada.

Existem, na minha turma de sobrinhos, duas "tribos" opostas em relação ao gauchismo. Os que o cultivam com fervor - coloco aqui o João Pedro e o Demétrio - e os que detestam a coisa. Estes, casualmente ou não, irmãos dos primeiros: o Ernesto Neto e o Guilherme.

O Ernesto, professor de francês, para implicar com o irmão pajador, declara detestar os "3 Pês" ( pago, prenda, pingo) que infestam a linguagem crioula.O Guilherme, oficial dentista da Brigada Militar, é mais complicado. Curte o gauchismo "autêntico", mas abomina as formas "deturpadas" que ele vem assumindo na sociedade do espetáculo e do consumo.

O assunto vem de longe, na família.


sexta-feira, 13 de maio de 2011

CONTRA O ‘GAUCHISMO” IDIOTA


CONTRA O ‘GAUCHISMO” IDIOTA 

(Do meu sobrinho Guilherme de Freitas Xavier)

Quem vem a Porto Alegre e passa em frente ao acampamento farroupilha, vindo de fora do Rio Grande do Sul, não deve entender nada. Não basta permitir que se instalem as malocas da Vila do Chocolatão: os tradicionalistas brindam a cidade com um visual que rivaliza com os desvalidos e excluídos urbanos. É um imenso malocão (favela é termo carioca, considerado menos pejorativo – caiu no gosto da terra e está em franca substituição pelo politicamente correto comunidade; aqui é maloca mesmo e nada saudosa).
Não tenho mais paciência com este gauchismo idiota, com estas representações de farrapos usando bombacha em desacordo com a história. Os ‘’pantalones turcos’’ excedentes da guerra da Criméia só foram desovados pelos ingleses no Prata e caíram no gosto campeiro após as nossas façanhas. Não aguento aqueles que se transformam e passam a usar impostação vocal de Paixão Cortes quando setembro chega com barro e bosta de cavalo na mui leal e valerosa.
Esta cultura de CTG é muito esquisita mesmo. O alicerce de tudo, CTG com patrão, capataz, sota e primeira prenda, reproduz o modelo estancieiro de exploração do homem do campo. A grande virtude do gaúcho modelar é a lealdade à terra, entendida aí como propriedade do patrão ao qual o gaúcho devota uma fidelidade canina. Outro fato curioso é o grande numero de patrões de CTG com nome italiano, mesmo na campanha. O gringo trabalhador após descer a serra e prosperar no pampa está assumindo o seu lugar na ordem social nativista. Não vou nem comentar as primeira prendas Jeniffer anunciadas no sistema de som, deve ser a tal globalização no gauchismo.
Na minha geração fomos invadidos pelo Fogaço-Crioulismo (não é meu o conceito), movimento tradicionalista que trouxe para a juventude dos anos 80 o orgulho de tomar mate em público. Misturava, numa miríade de festivais quase semanais, gauchismo com Woodstock; bombacha e alpargatas com maconha e bebedeira. Aumentou o consumo de erva mate, o preço subiu e salvamos nossos ervais que estavam sendo dizimadas pela monocultura.
Voltando ao acampamento, aquilo que era alma popular está virando negocio pelas beiradas. O gauchinho da volta, que fazia do setembro seu carnaval de um mês, tirando férias do emprego para passar acampado com os amigos, de fordunço, já não tem mais espaço. Agora temos piquetes de empresas, entidades e associações de aquinhoados funcionários públicos. Estes senhores desvestem-se de gente e fantasiados a caráter botam o pé no barro (duplo sentido:lama e bosta). Mas eles não montam piquete, não fazem comida e não zelam pelo espaço nas madrugadas vazias. Aí o pobre gauchinho agora excluído do seu antigo piquete se emprega com os ‘’doutores’’ por algum cobre, voltando a reproduzir num círculo trágico o modelo de exploração pampeano que tão bem representa.
Antes que me sentem o mango devo dizer que tenho alguma vivência campeira e muita simpatia pelo modo de vida lá de fora. Seguidamente me perguntam de onde eu sou pois devo ter adotado sem saber modos que são estranhos a um porto alegrense urbano. Conheci o gaúcho campeiro da região central, aquele do modelo estancieiro do CTG. Tive contato com o gaúcho missioneiro da Bossoroca, os homens mais primitivos e rústicos que vi lá nos anos 70. Estive muito próximo do gaúcho da região sul dos banhados pra baixo da Quinta. Tenho alguma deficiência no gauchismo dos campos de cima da serra. Conheço de ouvir falar, de rica tradição tropeira.
Então senhores, cultivem suas tradições, não deixem tudo virar um carnaval espetaculoso com assessores cariocas e cavalos de isopor ridículos. Moralizem o acampamento, talvez reduzindo a densidade da costaneira, com mais coletividade associativa cultural e menos individualidades piqueteiras, empresas e associações. O Rio Grande Gaúcho é maior que isso, mais Rio Grande Castilhista positivista sem ode ao modelo oligárquico, que se vigesse ainda nos faria mais parecidos com os coronéis que criticamos para além do Mambituba.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Observações sobre a teoria dos atos de fala


Com Searle, em Berkeley - 1982

Assistindo recentemente a uma defesa de tese de doutorado ouvi algumas referências à teoria dos atos de fala que me levaram a alinhavar as observações a seguir. Não se trata de apresentar ou resumir essa teoria, apenas de destacar alguns pontos básicos que me parecem requerer consideração mais detida.


1.      A teoria dos atos de fala não se restringe às situações de trocas linguísticas orais, como parecem entender alguns leitores. Speech acts, em inglês, significa atos discursivos, sejam eles efetivados por escrito ou verbalmente.
Austin apresenta inclusive, ao explicar seu conceito de enunciado performativo, o que ele chama de uma “forma normal” própria dos performativos formulados por escrito (um verbo na voz passiva na segunda ou terceira pessoa do presente do indicativo: “os visitantes são convidados a usar a passarela”, por exemplo). Mesmo orações escritas sob outras formas gramaticais, como simplesmente “cuidado com o cachorro” ou “favor manter a porta fechada” podem ser performativos, para Austin. Igualmente, ao afirmar: “Quando considero um ruído ou uma marca feita sobre um pedaço de papel (grifo meu) como uma instância de comunicação linguística”... Searle está claramente incluindo a comunicação escrita dentro da teoria.

2.      A teoria dos atos de fala não constitui um corpo fixo de doutrina. Ela evoluiu a partir das primeiras intuições de Austin, e foi tomando forma cada vez mais sistemática nos trabalhos de Searle. Em particular, há um deslocamento de uma distinção entre tipos de enunciado, proposta inicialmente por Austin, para uma distinção entre dimensões de um ato de fala (à qual chegou Austin posteriormente, e que foi desenvolvida por Searle).

A.    Os tipos de enunciado distinguidos inicialmente por Austin eram
a.      constatativos (simples declarações)  e
b.     performativos
Os primeiros seriam apenas relatos de situações que são ou que se acredita ser o caso: “a grama é verde”, “Napoleão venceu a batalha de Waterloo”, etc. Sua característica é que eles podem ser verdadeiros ou falsos.
Os segundos - que se tornaram famosos - seriam um tipo peculiar de enunciado: mais do que apenas relatos, eles seriam atos. Pelo simples fato de proferi-los, realizamos a ação expressa em seu conteúdo proposicional. Assim, ao dizer “eu te batizo” ou “eu te absolvo”, o padre está de fato batizando ou absolvendo o fiel. Ao dizer “prometo que pago”, eu estou já comprometido com o referido pagamento.