Num ciclo de debates sobre O
que é fazer Filosofia? não poderia faltar uma discussão sobre a assim
chamada filosofia científica.
"Filosofia científica" não é
sinônimo de "positivismo lógico". Mas para dar uma idéia de um certo
estilo de discussão ainda vigente, podemos tomar a parte pelo todo, e ler o que
se diz do positivismo como típico da atitude hostil que a filosofia científica
desperta em muitos setores.
O jornal Folha de São Paulo
publicou, em 28 de setembro do ano passado, matéria em que relata uma
entrevista dada por Habermas em sua visita a Porto Alegre. Comentando o destino
de seu Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt, Habermas refere a
repressão nazista que marcou a sua história. Os enviados do jornal, não sei se
por conta própria ou relatando palavras de Habermas, continuam, amalgamando
essa repressão ao extermínio de Aushwitz, que consideram
"a
expressão máxima da lógica que atribui valor às coisas de acordo com sua eficiência,
sua operacionalidade. Esse tipo de pensamento travestido de razão, essa 'mancha
turva no horizonte da racionalidade' tem um nome: positivismo. É na
crítica ao positivismo que está o cerne do projeto filosófico de Habermas."
Zero Hora, de Porto Alegre, na
edição de 9 de dezembro do ano passado publica artigo de Luiz Pilla Vares
("Esferas da consciência: pela humanidade humana"), cuja
primeira frase transcrevo:
"A
grande tragédia do socialismo em todo o mundo foi o seu abastardamento teórico
por meio do positivismo e do economismo".
Segundo essa análise, Engels é
culpado de positivismo, "em razão de sua inclinação para o estudo das
ciências"; "verifica-se nas sua obra uma negação dialética de viés
positivista, negação esta que se deve ao positivismo que Engels vai legar a
seus herdeiros". Herdeiros esses que seriam nada mais nada menos que Eduard
Bernstein e Karl Kautski, "os arquitetos da social-democracia alemã".
"Assim, toda a teoria da social-democracia alemã acaba por se tornar
uma versão desnaturada do marxismo, e vai ser esta deformidade que
norteará as linhas fundamentais do movimento operário e socialista mundial
por várias décadas."
Se a direita marxista, social-democrata, é
vista como infectada pelo positivismo e o cientificismo (a vasta obra de Kautski, por
exemplo, "sofrerá cada vez mais uma atrofia 'positivista' e
naturalista, em detrimento da dialética"), a esquerda
tampouco estaria livre do contágio: Rosa de Luxemburgo - continua o artigo citado - , em sua obra
principal, "cede ao determinismo e ao economicismo, que acabam se tornando
o elemento decisivo de seu livro". O próprio Lênin, "a par
de seus inegáveis méritos, não estaria livre da influência positivista. Escreveu
um livro "muito ruim", Materialismo e Empiriocriticismo, excessivamente
dogmático e mecanicista", que apesar disso "influenciou
filosoficamente toda a vertente marxista que se reivindicava do
bolchevismo." Posteriormente, serviu para "sedimentar a
ideologia de dominação que se cristalizou no fenômeno stalinista".
Estranha e maléfica prole, esta do
positivismo cientificista: nazismo, social-democracia, movimento operário
mundial, bolchevismo, stalinismo... Mas isso ainda não é tudo. Ciências sociais
"positivas", behaviourismo na psicologia, controle burocrático da
sociedade, liberalismo econômico e welfare-state, cibernética e
informática, já foram apresentados como outros tantos rebentos indesejáveis
dessa "perversão profunda do pensamento contemporâneo". Que por isso mesmo deve
entretanto possuir algum charme muito especial : do contrário, como explicar
que uma tendência abominada e combatida pelo marxismo, a fenomenologia, a
hermenêutica, o existencialismo e a filosofia da linguagem ordinária tenha
conseguido influenciar tão fortemente praticamente tudo o que acontece
em nosso tempo, nos campos os mais opostos?
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Tendo rapidamente visto "no que
deu" a filosofia científica, através de seu ramo mais combatido, vejamos
de forma igualmente sumária de onde ela vem. Certamente não é por sua
valorização do conhecimento científico, por destacar suas características
lógicas, por privilegiar seus laços com a experiência, por tomá-lo como
paradigma de racionalidade a ser alcançado pela própria filosofia que o
positivismo e a filosofia científica foram abominados.
A história da filosofia é um rosário de
exemplos da cumplicidade do pensamento filosófico com o científico [ver
Schlick, PP II: 145-7]. Dos primeiros "fisiólogos", dos quais não se
pode dizer se eram filósofos ou cientistas naturais, a Aristóteles, para quem a
ciência é modelo de conhecimento, caracterizada pela necessidade e a eternidade
de seu objeto, refletidas no encadeamento necessário das proposições que o
descrevem. Seu traço distintivo e dominante, para Aristóteles, é seu caráter
lógico discursivo : ela é essencialmente demonstração, com a
universalidade que esta pressupõe e acarreta (Granger, 1976 : 24-5). Do
matematismo dos pitagóricos à divisa de Platão, inscrita no frontispício da
Academia - "Não entre aqui quem
não souber Geometria" -, ou às escolas materialistas do atomismo e do
epicurismo, que ousou pensar uma física capaz de libertar o homem "de
toda intervenção providencial dos deuses e [d]a representação angustiante da
morte" (Nizan, 1977 : 28), a filosofia antiga não hesitou em buscar
junto às ciências modelo, inspiração, métodos e resultados.
O pensamento filosófico moderno também se
constitui em profunda simbiose com o desenvolvimento científico. Descartes é
físico e matemático, Leibniz cria o cálculo infinitesimal e polemiza com Newton
sobre o espaço; Berkeley faz uma impiedosa e certeira análise dos fundamentos
do cálculo newtoniano. Kant propõe, independentemente de Laplace, uma teoria da
formação do sistema solar, e não é forçar injustificadamente as coisas ver em
sua obra, como um tema central, a preocupação epistemológica com os fundamentos
da física newtoniana (tal como o leram os neokantianos). A introdução da Crítica
da Razão Pura se preocupa em questionar por que motivos, até então, a
metafísica não teria encontrado "o seguro caminho de uma ciência",
como a lógica já o fizera desde Aristóteles, e como a Física, graças a uma
revolução recente, acabava de fazer.
Visivelmente, a admiração pelos métodos e
resultados da nova ciência vai acompanhada de uma indisfarçável impaciência
frente às altas pretensões cognitivas e à falta de justificativas da velha
filosofia. Também a esse respeito a "filosofia científica" não carece
de precedentes. No campo do empirismo, é lapidar e famosa a conclusão da Investigação
acerca do entendimento humano, de Hume:
"Quando
percorremos as bibliotecas, persuadidos destes princípios, que destruição
deveríamos fazer? Se examinarmos, por exemplo, um volume de teologia ou de
metafísica escolástica, e indagarmos" Contém algum raciocínio abstrato
acerca da quantidade ou do número? Não. Contém algum raciocínio experimental a
respeito das questões de fato e de existência? Não. Portanto, lançai-o ao fogo,
pois não contém senão sofismas e ilusões."
Menos radical, Kant se contenta (como o
farão os positivistas lógicos) em privar a metafísica de significado cognitivo.
Não há conhecimento de qualquer espécie para além do campo da experiência
possível. "Somente nossa intuição, sensível e empírica, pode
proporcionar [aos conceitos puros do entendimento] sentido e significado [Sinn
und Bedeutung] (CRP, B 149).
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Por que então tanta surpresa e indignação
quando Russell ou Carnap
"reduzem" a filosofia à análise lógica da linguagem das ciências,
ou quando Wittgenstein sustenta que "o objeto da filosofia é o
esclarecimento lógico do pensamento", que "a filosofia não é
uma teoria, mas uma atividade..." que "a filosofia não resulta
em 'proposições filosóficas', mas em tornar as proposições claras"
(Tractatus, 4.112)? Qual o escândalo se Schlick afirma que " não há
outra maneira de testar e confirmar verdades senão pela observação e pela
ciência experimental", que não há, portanto, "nenhum domínio
adicional de 'verdades filosóficas', pois a filosofia não é um sistema de
proposições" (PP, II : 157); que "o autor
filosófico,...construindo sua filosofia puramente espiritual, não se perturba
nem um pouco, pois a vasta maioria de seus leitores é igualmente incapaz de
conferir se os fatos da natureza estão de acordo com os filosofemas que lhes
são fornecidos como verdades últimas" (PP, II, 134)?
Na verdade, os defensores da
"concepção científica do mundo" não economizaram provocações, e isso
explica em parte a hostilidade e as reações. Depois de ter indicado como
proceder à "superação da metafísica através da análise lógica da
linguagem" (através de exemplos retirados de Ser e Tempo de
Heidegger), Carnap consente em lhe reservar um pequeno território:
"...a
metafísica possui um conteúdo - só que
este não é teórico. As (pseudo)proposições da metafísica não servem para a
descrição de relações objetivas, nem existentes (caso em que seriam proposições
verdadeiras), nem inexistentes (caso em que - pelo menos - seriam proposições
falsas); elas servem para a expressão de uma atitude emotiva diante da
vida".
Mas atitude emotiva não é teoria,e
expressá-la sob a forma aparente de uma teoria (como um sistema de proposições)
é um equívoco, sobretudo se, ao contrário do que ocorre na poesia, pretende
estar se movendo no terreno do verdadeiro e do falso. "Na verdade, os
metafísicos são músicos sem talento musical", que confundem ciência
com arte e criam "uma estrutura que não consegue nada no que concerne
ao conhecimento e que é insuficiente como expressão de uma atitude emotiva
perante a vida". (Carnap, 1932)
Reichenbach (segundo o qual o célebre
"Ser ou não ser!" de Hamlet não é um dilema, mas uma tautologia)
concorda com Carnap:
“Há
muitos estudantes que vêm às aulas de filosofia em busca de edificação: lêem
Platão como quem lê a Bíblia ou Shakespeare, e sentem-se desiludidos diante de
aulas de filosofia onde têm de escutar exposições de lógica simbólica ou de
teoria da relatividade. Tudo o que posso dizer dessa atitude é que os que
procuram edificação devem assistir lições sobre a Bíblia ou sobre Shakespeare,
e não devem procurar encontrá-la num lugar que não lhe corresponde." (Reichenbach, l951)
É basicamente a mesma atitude que Russell
expressava em 1914, na conferência "Sobre o método científico na
filosofia":
"Creio
que os motivos éticos e religiosos, a despeito dos sistemas esplendidamente
imaginativos a que deram origem, têm sido de modo geral um obstáculo ao
progresso da filosofia e deveriam agora ser conscientemente descartados pelos
que desejam descobrir a verdade filosófica. (...) Em minha opinião, a filosofia
deveria buscar inspiração na ciência e não na ética ou na religião."
Até aqui, estou fazendo exatamente o
contrário do que se aprende nas primeiras lições de retórica, onde nos dizem
que antes de mais nada deve-se tratar de obter a benevolência do público! O
auditório, predominantemente filosófico, deve estar a essa altura odiando a
"filosofia científica" tanto quanto a mim, que a apresento de forma
supostamente simpática, ou pelo menos sem procurar estraçalhá-la desde as primeiras
pinceladas...
Vejamos então se é possível fazer alguma
coisa para nos reconciliar com um ponto de vista prima facie tão
intransigente, e que parece não deixar lugar precisamente àquelas demandas mais
íntimas e mais fortes que fizeram com que muitos dentre nós nos aproximássemos
da filosofia. Uma busca de sentido, de valor e de racionalidade, que não exclui
por certo o interesse e o respeito pelo conhecimento empírico dos fatos e pela
validade formal dos argumentos, mas que suspeita, acredita ou espera que seja
possível resgatar alguma outra dimensão discursivamente controlável, submetida
a standards de racionalidade que não exclusivamente os da ciência
empírica ou os da lógica formal. (As recentes tentativas de explicitar o
caráter sui generis dos "argumentos transcendentais"
podem ser vistas sob esta luz.)
Sustento que a "filosofia
científica" não só não afasta uma tal possibilidade como de certo modo,
pelo rumo que tomaram suas tentativas de elucidação da linguagem da ciência,
termina por exigir a introdução de uma dimensão prático-racional no
âmago mesmo da jurisdição onde se trata da justificação de pretensões de
conhecimento de enunciados teóricos. [Ao contrário de Habermas, portanto,
vislumbro a "superação do positivismo" não pelo lado de uma
"fundamentação cognitiva da práxis", mas inversamente, por uma
"fundamentação prática do conhecimento".]
Deixemos de lado a virulência polêmica dos
primeiros manifestos da filosofia científica. Ela se explica pela conjuntura
filosófica, acadêmica e político-social da Europa no início do século. [Ver
"Viena 'Fin del Siglo' y la modernidad como proyecto histórico",
artigo de Rafael Farfán em Sociológica, 3 (1986-7)]também
[Schlick,M. Philosophical Papers, vol. II, "The turning-point in
philosophy", 154 ss] também [Russell, "A filosofia no século
XX", em Ensaios céticos]
Do ponto de vista pessoal, como grupo
acadêmico, e por suas posições políticas os "filósofos científicos"
tiveram um papel muito freqüentemente mais tolerante, democrático, e mesmo
progressista do que seus adversários teóricos. O Círculo de Viena sofreu
perseguições, dispersou-se e teve de enfrentar o exílio não apenas porque
muitos de seus membros eram judeus, mas também porque suas idéias eram
consideradas "dissolventes" (subversivas). Neurath, da sua "ala
radical", era francamente marxista, e o grupo, como um todo, afinava com o
projeto da social-democracia austríaca, de modernização de uma sociedade ainda
fortemente marcada por atavismos feudais (veja-se o corporativismo da Universidade:
exemplo da dificuldade de Freud em se tornar professor em Viena) e
aristocratizantes "a partir dos quais se organizava e dirigia sua vida
política, social e, sobretudo, a educação e a cultura" (Farfán, p.
69). Enfrentaram a hostilidade manifesta do meio universitário alemão e dos
grupos intelectuais institucionalizados que, apesar de um discurso
"crítico" elitizado e esotérico não opuseram nenhuma resistência
social e política ao crescimento do nazi-fascismo (id.,68) .
Mas o que interessa destacar para desfazer
a imagem de dogmatismo e estreiteza associada à filosofia científica é que seus
críticos costumam descrevê-la e atacá-la com base em formulações polêmicas e
simplificadas de suas posições iniciais, e desconhecem o intenso trabalho
crítico interno que ela própria, constantemente, desenvolveu. A maior parte dos
argumentos usados "contra" o positivismo, por exemplo, não passa de
resultados da própria análise crítica que os positivistas promoveram a respeito
do método científico, do significado da linguagem da ciência, da filosofia da
lógica, da aplicação da matemática à experiência, etc. Sem esse intenso e
tecnicamente preciso questionamento, talvez passássemos mais dois mil anos
repetindo os filosofemas tradicionais a respeito da ciência e da necessidade de
suas verdades.
Porto Alegre,
setembro de 1990.