sábado, 21 de março de 2009

ECONOMIA E CULTURA - PRODUÇÃO E CIRCULAÇÃO DE VALORES

Palestra no Fórum Cultural Mundial - São Paulo 02/07/2004


"A crescente importância das indústrias culturais, num mercado cada vez mais globalizado, é um fato indisputado, porém ainda gera questionamentos e conflitos de interesse. Por um lado, celebra-se a capacidade dessas indústrias de gerar valor, trabalho e renda; por outro, temem-se seus efeitos sobre as culturas tradicionais, e as pressões que exercem sobre a criatividade e a liberdade dos artistas. "
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A primeira questão que se coloca, frente ao título desta conferência, é sem dúvida definir de que valores estamos falando. Valor econômico e valor cultural freqüentemente se contrapõem, e a mercantilização da cultura (tratar os valores culturais somente ou principalmente como valores econômicos) tem sido vista como uma ameaça à criação cultural autêntica. E nesta era de acelerada globalização, a produção cultural é cada vez mais tratada como mercadoria, a ser enquadrada nas mesmas regras que regem o comércio internacional de bens e serviços.
A crescente importância das indústrias culturais, num mercado cada vez mais globalizado, é um fato indisputado, porém ainda gera questionamentos e conflitos de interesse. Por um lado, celebra-se a capacidade dessas indústrias de gerar valor, trabalho e renda; por outro, temem-se seus efeitos sobre as culturas tradicionais, e as pressões que exercem sobre a criatividade e a liberdade dos artistas. Escritores, músicos, cineastas, pintores têm a justa aspiração de ver seu trabalho divulgado, reconhecido e bem remunerado, e vêem na indústria cultural a possibilidade de alcançar essas aspirações. Entretanto, recusam-se ou relutam em pautar sua arte pelas “regras do mercado”: lançar um novo disco por ano, mesmo que não tenham um novo trabalho maduro; fazer filmes que reproduzam o ritmo alucinante do cinema americano (pensemos nos maravilhosos filmes iranianos, que o público freqüentemente considera “lentos” e “tediosos”, devido aos esquemas de percepção e apreciação moldados pelas produções hollywoodianas); produzir quadros e esculturas adaptados ao gosto decorativo ocidental, escrever histórias segundo o modelo dos best sellers editoriais.
É sobre essa tensão entre valor de mercado e valor cultural que desejo refletir, ampliando se possível a abrangência da análise, de modo a superar a contradição entre ambos, sem deixar de perceber suas diferenças e mesmo os pontos em que, eventualmente, sua oposição não possa ser contornada.

Indústria cultural: a cultura como mercadoria...

O conceito de “indústria cultural” foi criado por Max Horkheimer e Theodor Adorno, pensadores da Escola de Frankfurt, nos anos 40, no bojo de sua Teoria Crítica da Sociedade, de cunho fortemente anti-capitalista.
Para aqueles teóricos da cultura e da sociedade, a produção, circulação e consumo dos bens culturais (sinteticamente, aqueles em que o significado é mais importante do que a utilidade) foram sendo submetidos de forma inexorável à lógica massificante da economia capitalista. A reprodutibilidade técnica privou a obra de arte da sua “aura”, do seu caráter único e de sua presença concreta num tempo e num lugar específicos. Reproduções, discos, gravuras passam a ser criados, vendidos e consumidos como mercadoria, e para isso precisam se tornar de fácil reconhecimento e aceitação por parte de um amplo mercado. Deixam de ter a função crítica da obra de arte, de provocar a reflexão, a inquietude, a estranheza, a emergência de novas formas de sensibilidade. Servem para distrair e entorpecer as massas, ocupando seu tempo livre com formas e conteúdos análogos aos do tempo da produção. Torna-se assim “natural”, e até aprazível, o enquadramento dos trabalhadores aos processos de massificação a que são submetidos.
Walter Benjamin, também ligado à Escola de Frankfurt, introduziu um viés levemente menos pessimista em relação ao conceito de indústria cultural, na medida em que via nessa massificação da produção e do consumo culturais também uma possibilidade de apropriação crítica da nova dinâmica cultural por parte das próprias massas. Essas não seriam apenas objetos indefesos de manipulação, mas também sujeitos potenciais de um processo crítico de libertação.
O conceito de “indústria cultural” parece hoje ter perdido muito de sua contundência crítica, embora pensadores como Hannah Arendt, Jürgen Habermas e Richard Sennet tenham retomado o tema no âmbito das investigações centradas no conceito de espaço público (ou esfera pública), em cuja constituição a dimensão cultural assume papel relevante. [1]
No sentido comum, o termo “indústria cultural” passou a ser usado para se referir ao campo da produção, difusão e fruição culturais enquanto processos econômicos, sem maiores preocupações com o que os diferencia e caracteriza como processos culturais. Geração de emprego e renda, participação no PIB, formação de mão-de-obra, financiamento, direitos autorais, acesso a mercados são os temas centrais e exclusivos de uma certa “economia da cultura” cada vez mais em voga. Se ela dá a alguns o conforto de pensar que finalmente a área cultural, e eles próprios, estão sendo admitidos à categoria das coisas e das pessoas a serem levadas a sério, por outro lado deixa escapar a especificidade do campo cultural, ela sim capaz de lhe conferir relevância social, política e, inclusive, econômica. Nesse contexto, o balanço entre o valor de uso e o valor de troca do produto cultural pende decisivamente para o lado da utilidade, da mercadoria, em detrimento do sentido.

...e a culturalização do mercado

Ao abordar a temática das “indústrias culturais”, quis pelo menos reafirmar a importância de algumas das preocupações centrais da reflexão da Escola de Frankfurt, dissociando-as embora do pessimismo radical de Adorno e Horkheimer ou do otimismo um tanto romântico de Benjamin quanto ao poder redentor das massas.
Hoje não vivemos mais os tempos em que esse dilema – cultura ou mercadoria – se colocava de forma tão contundente. A superação da contradição não veio contudo – ou não veio exclusivamente – de uma apropriação crítica, pelas massas, dos conteúdos e dos processos da indústria cultural. Na verdade, foi o próprio capitalismo que mudou muito do tempo dos frankfurtianos para o nosso. Não estamos mais no paradigma industrial da produção mecanizada e em larga escala de bens de consumo de massa de baixo valor agregado. De uma época em que a produção em massa tratava de criar, por bem ou por mal, mercado de massa para sua oferta de produtos padronizados, chegamos à era da busca dos nichos de procura, da segmentação dos mercados, das demandas específicas.
Ao mesmo tempo em que há uma mercantilização da cultura, há também uma culturalização do mercado. A tendência da economia mundial, hoje, é de que bens manufaturados se tornem rapidamente commodities,[2] cuja materialidade pouco importa: pode ser comprada, pode ser encomendada de outros que conseguem produzir numa escala melhor, mais econômica. Vende-se hoje, mais do que coisas materiais (um café, uma taça de champanha, um traje de praia ou um equipamento esportivo) as experiências simbolicamente associadas às mesmas: a sofisticação da cultura francesa, a sensualidade e a descontração cariocas, a coragem e a resistência de uma aventura na selva ou no deserto, etc.
Pela velha regra (“bem cultural é aquele em que o significado é mais importante que a utilidade”) hoje praticamente todos os bens são “bens culturais”: a marca vale mais que o tênis ou o jeans, a griffe mais do que os óculos, o design mais do que a cadeira. Associação entre significado e valor de uso que é freqüentemente remota, arbitrária ou mesmo contraditória: a publicidade associa experiências de saúde e de sedução ao cigarro que mata e envelhece, ou de competência e honestidade a candidatos corruptos e incapazes...
Que novos papéis assumem a produção e a recepção cultural nesse novo contexto? Que novas características o capitalismo busca moldar no trabalhador e no consumidor? Como se reconfigura a relação cultura/modo de vida, como se articula a dialética entre diversidade e universalidade, no mundo globalizado? Como se constróem e se veiculam os significados, na sociedade atual?

A globalização ameaçadora

Nossa época se caracteriza pelos processos acelerados de urbanização e de globalização, sob a égide do capital financeiro, no bojo de uma revolução tecnológica e gerencial que torna a produção cada vez mais incorporadora de “inteligência” e menos de matérias primas ou de energia humana não-qualificada.
A mudança do padrão tecnológico marginaliza os grandes contingentes populacionais que no modelo industrial anterior constituíam as reservas de mão-de-obra não-qualificada, agora dispensáveis e indesejadas. O Estado perde sua função econômica de grande acumulador de capital; seu caráter nacional passa a ser um obstáculo à livre circulação financeira; seu papel de compensador das desigualdades sociais um impecilho ao descarte, considerado inevitável, da velha mão-de-obra industrial.
O mercado globalizado, com seus mecanismos de produção e de distribuição cultural dominados por um pequeno grupo de atores hegemônicos, contém inegáveis ameaças à sobrevivência das culturas tradicionais. Solidárias de estilos de vida alheios à competição capitalista e aos seus agressivos mecanismos de comercialização, muitas dessas culturas correm o risco de irem aos poucos se circunscrevendo a grupos minoritários e marginalizados dentro do grande fluxo da urbanização “modernizadora”.
Os apelos do progresso, da modernidade e do consumo seduzem os jovens, e o rompimento dos laços culturais parece-lhes muitas vezes a única forma de acesso ao trabalho melhor remunerado e às oportunidades de ascensão social, de reconhecimento individual e de participação política.
Mas a rapidez da criação de novos conhecimentos e da transmissão das informações, a especialização crescente em quase todas as áreas e as movimentações das populações - do campo para as cidades, dos países pobres para os desenvolvidos - criam guetos culturais, étnicos e linguísticos no seio das grandes metrópoles, enquanto o abismo econômico e cultural se aprofunda entre as classes e as nações.
Esse imenso potencial de frustração e de desenraizamento pode levar, como tem levado, ao aumento da pobreza e da exclusão, à perda da identidade e à condenação de grandes contingentes de jovens à marginalidade, às drogas e à violência.
Uma experiência que vivi pessoalmente, ao visitar o Parque Nacional do Xingu, em 1995, dá uma idéia de como o necessário processo de inclusão no irreversível movimento de globalização econômica e cultural pode ser desconcertante para as sociedades tradicionais. Os grupos indígenas do Xingu têm as melhores condições possíveis, no mundo contemporâneo, para preservar seu modo de vida tradicional. Dispõem de um amplo território, e estão protegidos dos contatos mais predatórios com a sociedade envolvente (por exemplo: é preciso uma autorização especial da FUNAI – órgão federal encarregado da sua proteção – para ter acesso à reserva). Por outro lado, desejam e sabem que precisam conhecer a cultura “do branco”: a reserva tem postos médicos, escolas bilingües, acesso à rádio e à televisão. Entre os objetos mais valorizados para as trocas, na reserva (não se usa dinheiro, mas pode-se trocar objetos com os índios), estavam as pilhas elétricas - para as lanternas, mas sobretudo para os aparelhos de rádio. Os jovens ouvem a Rádio Nacional, e eu os assisti pedindo ao radialista que integrava o nosso grupo que colocasse anúncios em seu programa de encontros sentimentais: queriam namorar moças brancas, e davam pseudônimos brasileiros ou até mesmo americanos (Jôni, Maiquel) para os anúncios.
Takuman[3]
No meio da noite, à beira de uma fogueira, em pleno coração da selva amazônica, o cacique Takuman, lider dos kamaiurás, veio espontaneamente conversar comigo, preocupado com a educação das novas gerações do seu povo. Reconhecia a importância da escola; entretanto, tinha plena consciência do impacto dessa educação “de fora” sobre os valores e práticas culturais ancestrais. Contou que os meninos agora queriam andar calçados, e não tinham mais o mesmo interesse por aprender e treinar o huka-huka, a luta ritual tradicional.

Foto Sandra Zarur ©





E que as mulheres e as meninas hoje tinham vergonha de andar sem roupa, “não só na frente dos brancos, mas também dos próprios homens da tribo”. Pude sentir, naquele momento, toda a perplexidade de um homem de visão – um grande estadista – com o futuro do seu povo. E isto pelo viés da cultura, enquanto os líderes mais jovens tratavam, com as autoridades presentes, de questões materiais, como a demarcação das terras e as invasões dos garimpeiros.
Mutatis mutandis, não estaremos todos nós de certa forma em situação semelhante, colhidos numa onda global que nos envolve e carrega, destruindo, de forma sutil ou abrupta, os valores culturais das nossas próprias sociedades?

Uma outra história

Mas a globalização não representa apenas ameaças à diversidade cultural: ela oferece também inéditas oportunidades. Um novo horizonte de possibilidades se abre, com a afirmação do local e do regional, com a procura crescente pelo diferente, pelo singular, por produtos, bens e serviços que incorporem conceitos e valores artísticos e humanos autênticos.
Os avanços da tecnologia tornaram mais acessíveis os equipamentos, em diversas áreas da produção cultural, e mais rápidos e eficientes os canais de comunicação e divulgação. O conhecimento e a informação circulam com maior liberdade e rapidez e, graças às redes de comunicação, passa-se do local ao global com uma agilidade até então inconcebível.
No campo político, mudanças culturais positivas também podem ser apontadas [4]. Não há dúvidas de que temos assistido ao avanço da democracia: o Estado vem perdendo o monopólio do público, e a participação da sociedade na gestão da coisa pública tem sido reforçada. As empresas privadas assumem novas responsabilidades sociais, e as comunidades locais e o Terceiro Setor ganham maior peso, inclusive no controle do desempenho da função pública.
Uma nova consciência de solidariedade faz contraponto à exacerbação do individualismo. Os temas ambientais, a mobilização em torno das mais diversas questões coletivas - característica das ações das ONGs - a solidariedade ativa em relação a grupos desfavorecidos ou discriminados, mostram que existem forças capazes de assegurar um novo tipo de coesão inter-grupal não homogeneizante. O racismo, a discriminação sexual, o desrespeito ao meio ambiente, as condições desumanas de trabalho, a fome, a pobreza extrema, se ainda persistem largamente, estão se tornando não apenas objeto de condenação moral e política, mas de ações cada vez mais amplas de combate e superação.
A indústria cultural, sob esse ponto de vista, deixa de ser vista exclusivamente como ameaça, e passa a se transformar em possível aliada na busca de uma nova globalização, que não exclua a pluralidade. Uma globalização sustentável, baseada não na hegemonia e na exclusão, mas em uma rede de trocas simbólicas capazes de gerar valor econômico sem destruir os valores culturais.

Globalização, hegemonia e cultura

O processo de globalização tem sido intimamente associado à afirmação da hegemonia de um país, ou de um pequeno grupo de países, sobre o conjunto da humanidade. Considerado por alguns como um mero eufemismo para “imperialismo”, esse conceito de hegemonia significa, entretanto “mais do que mera liderança, porém menos do que simplesmente império”. “Um poder hegemônico é um estado que consegue impor seu conjunto de regras sobre o sistema internacional, e dessa forma criar temporariamente uma nova ordem política... assegurando ao mesmo tempo, para si mesmo ou os seus aliados, certas vantagens econômicas não conferidas pelo mercado, mas obtidas por meio de pressão política”.[5]
John Samuel Nye, autoridade americana em assuntos internacionais[6], distingue três tipos de poder de uma nação no contexto internacional, ou três dimensões da hegemonia: militar, econômica, e político-cultural.
A primeira camada, da hegemonia militar, é hoje claramente unipolar, com o predomínio indiscutível dos Estados Unidos sobre qualquer outro país ou grupo de países. A camada intermediária, da hegemonia econômica, é multipolar, porém extremamente concentrada: Estados Unidos, Europa e Japão representam dois terços do produto mundial.
A última camada, a mais básica, é o nível do chamado soft power[7], onde se trata, sobretudo, de “conquistar corações e mentes”, isto é, de atrair a adesão aos ideais, aos valores, comportamentos políticos e estilos de vida que praticamos e professamos[8].
Se bem que existam forte conexões entre as três dimensões do poder, e que esteja sempre presente a possibilidade de que este soft power seja buscado e exercido com a finalidade de fortalecer e legitimar os outros dois [9], ele tem certas peculiaridades que o tornam mais aberto a uma apropriação não-hegemônica.
Países que estão fora dos centros de decisão militar ou econômica dificilmente conseguem vencer a distância que os separa dos mesmos. Já o capital cultural está ainda largamente disperso, e envolve uma grande variedade de atores não-governamentais. As trocas dependem de mecanismos comunicativos e de interações que se processam em grande medida fora da esfera estatal, envolvendo atores não-governamentais (ONGs, etc.); redes formais ou informais, reais ou virtuais, de artistas, pensadores, escritores e produtores individuais; meios de comunicação tradicionais ou eletrônicos.
A hegemonia econômica ou militar é essencialmente instável. Como pitorescamente dizia Napoleão Bonaparte, “é possível fazer qualquer coisa com as baionetas, exceto sentar sobre elas”. No terreno da economia, a globalização hegemônica tem produzido tamanha destruição ambiental, concentração da riqueza e do conhecimento e exclusão social, que claramente não pode continuar se prolongando no mesmo ritmo. Já no campo da cultura e dos valores, é possível ao contrário construir alianças e redes que configurem uma "globalização sustentável" e inclusiva.
Nesse campo, podemos conceber, e em alguns casos até já identificar, o esboço de um processo de globalização não-hegemônica, capaz de operar segundo uma lógica própria. Trata-se de um movimento social com raízes muito fortes, cuja crescente integração não ameaça, mas valoriza e defende a pluralidade e a variedade culturais. Como movimento social, sua força vem do reconhecimento, pelas sociedades civis, da legitimidade de seus participantes, enquanto representantes dos valores e das culturas nacionais, e da sua capacidade, como inovadores culturais, de criar novas normas e novas instituições que permitam canalizar recursos de uma maneira diferente.[10]
É preciso conquistar e defender esse espaço de trocas simbólicas, de socialização do legado múltiplo da diversidade cultural da humanidade, contra sua instrumentalização a serviço das hegemonias militar e econômica.
A necessidade de proteger a diversidade cultural do mundo, sustentada pelo PNUD, implica em que os bens culturais tenham tratamento especial nas relações comerciais, e que culturas nacionais sejam incentivadas, como forma de proteção frente à concorrência internacional. O ministro da Cultura do Brasil, Gilberto Gil, tem defendido essa posição em diversos foros mundiais; o ministro interino, Juca Ferreira, sustenta a legitimidade da política de proteção e de favorecimento da diversidade cultural, afirmando que ela "é boa para a humanidade como um todo. Seria terrível que, depois de tanta experiência humana, quase tudo isso fosse jogado fora por uma circunstância de monopólio econômico".[11]
Avançando em relação a uma posição puramente defensiva, é preciso promover ativamente e participar da construção de espaços de encontro e de redes de trocas culturais de sentido múltiplo, não-hegemônicas e não-homogeneizantes, como está ocorrendo neste Fórum Cultural Mundial.

Aspectos pouco enfatizados da relação cultura/economia

Antes de concluir, gostaria de mencionar certos aspectos da relação entre cultura e economia que dificilmente aparecem nas estatísticas ou nas contas nacionais, mas que têm uma enorme importância e reflexos econômicos não negligenciáveis.
A cultura é o campo por excelência onde se articulam os valores individuais e sociais; onde o indivíduo encontra o repertório simbólico que lhe permite expressar-se e ser compreendido pelos demais, e onde esse patrimônio comum de signos, valores, sentimentos e experiências se enriquece e se transforma com as contribuições de cada um.
Numa sociedade culturalmente vibrante, que favorece esse trânsito crítico entre o individual e o coletivo, as pessoas são mais felizes. E a felicidade tem um alto valor econômico: ela se reflete em melhor saúde, mais educação e segurança, meio ambiente mais preservado, maior produtividade no trabalho. Um pequeno exemplo: uma das conclusões da PNAD[12]-2001, na área da educação, foi de que as crianças que vivem com a mãe (mesmo que esta trabalhe fora de casa, ou que tenha um baixo nível educacional) apresentam em média meio ano a menos de atraso escolar do que as demais[13]. Num país que tem 36 milhões de alunos no ensino fundamental, é fácil calcular a economia que representa a felicidade dessas crianças! Em sentido inverso, poderíamos considerar a situação de alguns grupos de índios guaranis[14], culturalmente desestruturados por uma “integração” predatória com a sociedade branca: o índice de suicídio é altíssimo, especialmente entre os jovens, o que representa uma perda total de possibilidades humanas e sociais[15].
No caso das campanhas de combate à AIDS/SIDA, no Brasil, o fato de se evitar a idéia de culpabilização e de se dirigirem mensagens diferenciadas a vários grupos culturais tem sido apontado como um dos grandes fatores de seu êxito. E o país tem poupado com isso bilhões de dólares em relação às previsões pessimistas, que projetavam um quadro de alastramento rápido da doença.
No terreno privado, a cultura também vem sendo cada vez mais reconhecida como um fator de sucesso empresarial e pessoal. O empreendedorismo, a disposição a assumir riscos, a habilidade social de associar competição com cooperação e associativismo, são características culturais que favorecem certos grupos e regiões, e que são altamente reforçadas por outros fatores culturais, como participação em clubes, grupos musicais e de dança, atividades religiosas, etc. Além disso, como já foi mencionado, uma forte identidade cultural se reflete em serviços e produtos diferenciados, agregando valor econômico num contexto de busca pelo que é autêntico e único.

Mais visibilidade à importância da cultura na economia

Uma tarefa importante para os gestores da área cultural, no mundo todo, é a de buscar maior visibilidade para a presença das atividades culturais na economia, como geradoras de emprego e renda.
Em grande parte dos países, as indústrias culturais e outras atividades de forte referência cultural (como o artesanato, o turismo cultural, o design) não estão claramente representadas nas contas nacionais. No Brasil, por exemplo, a indústria editorial aparece como um subsetor dentro da indústria gráfica (que inclui a produção de embalagens de papel e papelão). As indústrias audiovisuais, fonográficas e o setor de rádio e TV não aparecem explicitamente mencionados; no artesanato confundem-se arte popular e oficinas mecânicas, serralheria, confecções, etc. O resultado é que nem os responsáveis pelas contas públicas nem os próprios gestores culturais têm idéia clara do peso econômico da cultura. A instituição de uma conta satélite da cultura, dentro da contabilidade nacional, é uma aspiração do setor, que no Brasil já começa a tomar forma, graças aos entendimentos entre o Ministério da Cultura e a área econômica do governo.
Por outro lado, a articulação internacional que se busca, no campo cultural, não pode prescindir da existência de dados, estatísticas e séries históricas comparáveis entre os países e os blocos regionais. Para isso, a coleta e sistematização desses dados deve refletir um consenso conceitual – basear-se em definições e metodologias comuns – que ainda está longe de ser atingido. [16]
Mais uma vez, o artesanato pode servir como exemplo: nem mesmo no âmbito da comunidade européia se conseguiu um consenso sobre a abrangência do termo. Não existe um conceito único, nem critérios homogêneos [17]. Artesanato se confunde com, ou se inclui, freqüentemente, em conceitos mais amplos, como indústria/serviço artesanal, indústria doméstica, e até mesmo pequena empresa e empresa individual ou familiar. Em alguns países, como a França ou a Itália, “artesanal” é associado a exclusividade, acabamento de alta qualidade, design avançado: um sapato, uma jóia, uma roupa, um móvel, um instrumento musical produzido artesanalmente é um luxo, algo muito acima do que pode ser produzido industrialmente. Em outros lugares, talvez a maioria, “artesanal” é o pré-industrial, o que é produzido com métodos primitivos por comunidades carentes, ou no meio rural, ou por etnias não bem integradas à cultura nacional predominante. Isto quer dizer que quando se fala de “artesanato” cada país está falando de coisas diferentes: seus dados não são comparáveis e suas políticas não têm o mesmo objeto.

Concluindo

Na agenda dos desafios que se colocam para os agentes e gestores culturais nesta era de estreitamento das relações internacionais, incluem-se certamente alguns dos itens sobre os quais estivemos refletindo aqui hoje:
  • tirar proveito dos espaços que se abrem na economia global para a produção cultural nacional e local;
  • dar visibilidade à presença das atividades culturais na economia (criando contas-satélite nacionais da cultura, com base num consenso conceitual internacional, que conduza a comparações e à troca de experiências sobre bases comensuráveis);
  • evidenciar a centralidade da cultura nas políticas de desenvolvimento, e sua capacidade de favorecer a educação, a saúde, a segurança, a preservação do meio ambiente – além de proporcionar emprego e renda e de agregar valor a inúmeras outras áreas, como turismo e exportações;
  • orientar as políticas culturais no sentido da inclusão social e econômica, de raça e de sexo;
  • promover articulações culturais globais visando à afirmação e às trocas entre as diferentes identidades culturais;
  • defender, nos foros econômicos internacionais, o tratamento diferenciado à produção cultural, visando a preservação da sua diversidade.
Não tive a pretensão, neste Fórum, de apresentar novidades nem de apontar soluções para essas ou outras questões com as quais todos nós, trabalhadores da cultura, convivemos no nosso dia-a-dia. Nessa retomada necessariamente breve de alguns desses temas que nos empolgam, quis apenas, mantendo viva a chama da inquietação, lembrar que, pela cultura, temos ainda o poder de mudar o mundo para melhor.
Rejane Xavier [18]
julho de 2004



[1] Canclini,N.G., em Culturas Híbridas, São Paulo, EDUSP, 1997, destaca o papel das indústrias culturais na transformação do espaço público.
[2] Cf. Jeremy Rifkin, A era do acesso, São Paulo, Makron Books, 2001. O autor enfatiza a redução da materialidade da produção econômica, em benefício do crescimento da importância dos ativos intelectuais, do papel dos serviços e dos conhecimentos.
[3] Foto: Carlos Caju da Silva/Jeanette Johansen da Silva, em
www.ngo.grida.no/.../ projects/caju/bilde2.htm
[4] Ver a entrevista “Novas formas de cidadania”, com Jean-Louis Laville e Roger Sue, em http://www.ambafrance.org.br/abr/label/Label39/dossier/10acteur.html
[5] Cf Niall Ferguson, Hegemony or Empire? Foreign Affairs, September/October 2003
[6] Joseph S. Nye, Jr., Diretor da Kennedy School of Government na Universidade de Harvard, foi Presidente do National Intelligence Council e Secretário Assistente da Defesa no governo Clinton. É autor de vários livros, entre os quais The Paradox of American Power: Why the World's Only Superpower Can't Go It Alone e Bound to Lead: The Changing Nature of American Power. A editora Public Affairs publicará sua próxima obra, The Power Game, no final de 2004.
[7] Conceito desenvolvido por Nye desde o final dos anos 80, e objeto do seu último livro, Soft Power: the Means to Success in World Politics, PublicAffairs, 2004.
[8] Pierre Bourdieu, com diferente visão e motivação políticas, desenvolveu o conceito análogo de “poder simbólico” (“Symbolic power : ... an almost magical kind of power which enables one to obtain the equivalent of what is obtained through force (whether physical or economic), by virtue of the specific effect of mobilization (...)”.(Language and Symbolic Power, p. 170)
[9] O do bastão (militar) e o da cenoura (econômico). Esse é o uso que interessa a Nye, que o preconiza como a maneira mais inteligente de consolidar a hegemonia americana (“smart power”).
[10] Cf. ALEXANDER, Jeffrey C. Ação Coletiva, Cultura e Sociedade Civil: Secularização, atualização, inversão, revisão e deslocamento do modelo clássico dos movimentos sociais. Rev. bras. Ci. Soc., Junho 1998, vol.13, no.37, p.5-31. ISSN 0102-6909.
[11] Cf. Merval Pereira O vasto mundo de Gil, em O Globo – RJ, 16/07/2004 - 08:25 http://clipmail.interjornal.com.br/clipmail.kmf?clip=gl3y4ojz2f&palavra=PNUD#topo#topo
[12] Pesquisa Anual por Amostra de Domicílios, espécie de “mini-censo” amostral realizado anualmente pelo IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
[13] Ver Sérgio Guimarães Ferreira e Ricardo Montes de Moraes Desempenho Educacional no Brasil: o que nos diz a PNAD-2001, em
[14] O fenômeno atinge também outros grupos indígenas: ver Erthal, R., 2001. O suicídio Tikúna no Alto Solimões: Uma expressão de conflitos. Cadernos de Saúde Pública, 17:299-311.
[15] Ver por exemplo Pimentel, Spensy O mistério dos suicídios, em
Os resultados da escolarização entre os Kaiowá e Guarani no Mato Grosso do Sul, em
[16] Ver por exemplo o trabalho de Asta Manninen, Statistics in the Wake of Challenges Posed by Cultural Diversity in a Globalization Context, em http://www.colloque2002symposium.gouv.qc.ca/PDF/Manninen_paper_Symposium.pdf
[17] Ver o resultado do esforço da Comunidade Européia para chegar a critérios estatísticos mínimos comuns, no estudo "Methodology for the collection and grouping of statistical data on small craft businesses" (http://europa.eu.int/comm/enterprise/entrepreneurship/craft/craft-studies/documents/study-methodology-en.pdf)
[18] Doutora em Filosofia, Jornalista. E-mail rejanexavier@hotmail.com


terça-feira, 17 de março de 2009

Por uma ética do gerenciamento dos conflitos

ABSTRACT

Na “condição pós-moderna”, fragmentária e plural, da sociedade contemporânea, a gestão dos recursos em saúde tem de enfrentar conflitos inéditos. O que torna peculiar a situação da nossa época não é a falta de um corpo formal de princípios bioéticos básicos, mas a ausência de um marco comunitário universalmente compartilhado, que proporcione aos mesmos um conteúdo substantivo homogêneo. Pela primeira vez na história aceita-se a oposição, dentro da sociedade, entre pontos de vista que, embora inconciliáveis, são reconhecidos como igualmente legítimos e respeitáveis.
Sugere-se que a abertura para uma ampla participação dos diferentes grupos e agentes sociais nas decisões e na implementação das políticas de alocação de recursos seria a melhor forma de contribuir, neste campo, para recriar uma nova base comunitária, não homogeneizante, capaz de fundar uma ética do gerenciamento do conflito legítimo, única adequada e possível para o nosso tempo.


In the fragmentary and pluralistic “post-modern condition” of contemporary society, the management of resources in the field of health has to face previously unknown conflicts. What is particular to the situation of today is not the lack of a formal body of fundamental bioethical principles, but the absence of a universally acknowledged social framework that provides those principles with a common content. For the first time in history there is within society an acceptance of an opposition of points of view which, although irreconcilable, are recognised as being equally legitimate and respectable.

It is suggested that promoting a wider participation of various social groups and agencies in the decisions and implementation of policies of allocation of resources would be the best way of contributing, in this area, to the creation of a new common experience which would not be of a homogenising nature, but would be capable of founding an ethic of managing legitimate conflict, that is the only one suitable and possible for our times.


POR UMA ÉTICA DO GERENCIAMENTO DOS CONFLITOS

É cada vez mais aguda, para toda a sociedade, a consciência de que, a cada momento, médicos, enfermeiros, administradores hospitalares - mas também políticos, planejadores, economistas, empresários - homens e mulheres com formações especializadas, e com responsabilidades diferentes, estão tomando decisões que significam a vida ou a morte. Vida ou morte para uma pessoa concreta, que procura o sistema de saúde em busca de ajuda para o seu caso, ou vida ou morte para milhares de pessoas, afetadas por uma lei, por uma política, por uma medida administrativa.

Enquanto os recursos públicos forem administrados por uma elite remota, e constituirem aos olhos da sociedade uma caixa preta aparentemente inesgotável, a tendência de todos será reivindicar tudo, e não contentar-se com nada. O que constitui, em cada momento, cuidados básicos de saúde; qual o seu custo coletivo, e como deve incidir sobre os diferentes estratos sociais o seu financiamento? O que fazer diante de tendências como a do aumento mais do que proporcional dos custos das descobertas diagnósticas e terapêuticas, em relação ao poder aquisitivo dos indivíduos e à capacidade de financiamento dos estados? Ou da tendência ao adiamento da idade de entrada das novas gerações no mercado de trabalho, ao mesmo tempo em que a expectativa de vida dos idosos aumenta, lançando sobre a população economicamente ativa uma carga de responsabilidade duplamente acrescida?

O direito à vida que é devido a todo indivíduo implica o direito a ter assegurado pela sociedade todos os recursos médicos sofisticados disponíveis no mundo, a qualquer custo? Deve-se, em termos de eqüidade ou justiça distributiva, “dar a cada um conforme a sua necessidade”, ou “dar a mesma coisa para todos”? Quem define a necessidade de cada um? Diante de recursos escassos, como estabelecer critérios para a seleção de seus beneficiários? Como evitar que as preferências, valores e preconceitos do corpo médico ou dos administradores influam nessas decisões? Deve-se respeitar as prioridades das diferentes clientelas (grupos diferentes aceitam melhor a morte das crianças ou dos adultos, por exemplo), ou devem-se buscar critérios gerais? Que indicadores selecionar para o critério de “expectativa de vida qualitativamente ajustada”(qaly): o que cada grupo considera como tal, ou novamente um conjunto genérico de condições? Em nome da autonomia individual, todos deverão pagar a conta das escolhas de alguns (beber e provocar acidentes, produzir a custos mais baixos aumentando o riscos de doenças profissionais nos trabalhadores, continuar fumando, não se prevenir contra a AIDS, ignorar o planejamento familiar), ou certos comportamentos, embora não proibidos, devem onerar diretamente aqueles que os assumem?

As decisões envolvidas na alocação de recursos em saúde estarão hoje realmente mais difíceis e complicadas de tomar? Por que nos acompanha sempre uma sensação de não estar fazendo a coisa certa?


A origem do malestar
Há um corpo de princípios já bastante fortemente estabelecidos, que configuram uma espécie de received view em bioética. Os princípios da autonomia, da beneficência e da justiça ou eqüidade expressam respectivamente os pontos de vista do paciente, dos provedores de cuidados de saúde, e da sociedade. Entretanto, por menos passível de contestação que nos pareça cada um deles, o seu conjunto não parece funcionar adequadamente para orientar as decisões concretas que precisam ser tomadas. Há conflitos potenciais e reais entre eles, que parecem requerer o apelo a alguma instância superior de decisão para serem arbitrados.

A (bio)ética pode ser abordada como um sistema formal de regras, cuja utilização coloca problemas descendentes (de aplicação aos casos concretos) e ascendentes (de fundamentação em normas mais genéricas ou “de segunda ordem”: normas para escolher entre normas). Pode-se também combinar as considerações de princípio com as teleológicas ou de conseqüências: quando os princípios colidem entre si, busca-se aquela escolha entre eles que proporcione o maior benefício (ou represente o menor custo) em termos de conseqüências (1). Sob a pressão da cobrança individual, social e jurídica, os responsáveis pela alocação dos recursos muitas vezes se voltam para a bioética com a expectativa de encontrar um conjunto de orientações capazes de eliminar, ou pelo menos de reduzir ao mínimo, o elemento prudencial, visto como “subjetivo”, em suas decisões.

Mas há na ética em geral, e isso se torna muito patente na bioética, um elemento que explica porque isso é extremamente difícil, e até mesmo indesejável. Trata-se do fato de que a moralidade pressupõe um marco comunitário (2). A idéia de que a ética envolve uma forma de vida compartilhada nos leva a questionar, de um ponto de vista histórico, a nossa própria sociedade atual, e a indagar até que ponto nossas dificuldades específicas não dependem de características dessa mesma sociedade. Sugerirei que grande parte do malestar ético peculiar à nossa época em relação às políticas de alocação de recursos em saúde reflete a novidade e as contradições próprias do novo marco comunitário que caracteriza a sociedade contemporânea.

O grande problema com as nossas escolhas - no caso que nos interessa, com as decisões que tomamos frente à necessidade de alocar recursos escassos em saúde - não diz respeito à falta de princípios éticos. Tampouco nos faltam instrumentos conceituais ou dados empíricos para realizar os cálculos de benefício/custo necessários para “otimizar” teoricamente as conseqüências dessas decisões. É claro que há muitas situações em que tais considerações são suficientes para orientar as decisões, embora não de forma mecânica ou algorítmica, deixando portanto sempre uma margem para a discussão e para a consciência- e conseqüentemente para a dúvida e a angústia.

Mas os problemas mais profundos surgem sobretudo da ausência de uma instância a quem seja consensualmente conferida a autoridade de arbitrar nos casos onde a aplicação dos princípios contraria os interesses de uma ou mais de uma das partes envolvidas. Não me refiro aos cada vez mais freqüentes apelos ao poder judiciário para garantir direitos ou buscar ressarcimento por danos reais ou supostos resultantes de decisões médicas ou político-sanitárias. Trata-se antes de apontar para a ausência de uma força moral - que em outras épocas foi chamada “o destino”, “a vontade divina”, “a natureza”, ou mesmo “a razão”-, reconhecida consensualmente, que represente a última palavra e diante da qual nenhuma contestação tenha cabimento. Este vazio de autoridade última é uma característica peculiar da nossa época, e talvez seja um dos mais importantes condicionantes do malestar ético-político na área da saúde.

Ética e consenso social
O senso do dever moral pressupõe uma forma de vida comum que inclua um acordo sobre os fins. Na sociedade onde isso ocorre, a autoridade dos conceitos, dos princípios e da linguagem morais - a idéia de obrigação que eles transmitem, a valoração que eles impõem sobre a conduta, “certa”ou “errada”- é expressão e decorrência do mesmo consenso que está na base da relação social. “Nesta sociedade, há uma lista admitida de virtudes, um conjunto estabelecido de regras morais, e uma conexão institucionalizada entre a obediência às regras, a prática das virtudes e a consecução dos fins” (3). A tal ponto que seria impossível, numa sociedade idealmente coesa, permanecer dentro da relação de comunidade e rejeitar a força dos imperativos morais vigentes (embora, é claro, seja sempre possível deixar de obedecer a eles). O acordo sobre os fins se traduz, em tais sociedades, pelo reconhecimento de uma autoridade objetiva das regras morais, que as coloca acima do questionamento a partir dos interesses de indivíduos ou de grupos.

A pólis grega (com certeza bastante idealizada) costuma ser a referência quando se pensa num exemplo histórico que se aproxime do modelo de uma forma de vida caracterizada pelo consenso ético-social. O importante, nesse modelo, não é a ausência de conflitos, de injustiças ou de frustrações. O que importa é que, sejam quais forem as formas de enfrentar tais inconvenientes, essas formas são socialmente aceitas, e não geram, por sua vez, novos conflitos de mesmo nível. Na Grécia antiga, a natureza era a instância a que se remetia em último recurso, e o conhecimento a chave que permitia interpretá-la.

Assim, não era chocante que o doente fosse visto como um “incompetente físico e moral”. A base da ética como da vida social era a idéia de uma “ordem natural”, acessível ao conhecimento, ele próprio privilégio de uma elite intelectual e política. O absolutismo político - a idéia de que o povo não sabe o que é bom para si mesmo, e que o monarca esclarecido deve conduzi-lo, tornava-se moralmente justificado. Correlativamente, o paternalismo médico era aceito como uma autoridade natural, decorrente de uma percepção privilegiada da verdade, e conseqüentemente do bem, a ser imposta ao paciente mesmo contra a vontade do mesmo. O Corpus Hippocraticus contém pérolas como essa:

“De fato, é muito mais verossímil que o doente seja incapaz de obedecer às prescrições do que o médico faça más prescrições. Com efeito, o médico trabalha são de espírito e de corpo, raciocinando sobre o caso presente e, entre os casos passados, sobre aqueles que se parecem ao caso presente, de modo a poder dizer por qual tratamento eles foram superados. Mas o doente, que não conhece nem sua doença, nem as causas de sua doença, nem o que acontece nos casos semelhantes ao seu, recebe as receitas sofrendo no presente, temendo pelo futuro, cheio de seu mal, vazio de alimentos, desejando antes o que a doença lhe torna agradável do que aquilo que convém à sua cura, não desejando sem dúvida morrer, mas incapaz de firmeza. O que é mais verossímil: admitir que o doente assim disposto não executará ou executará mal as ordens do médico, ou admitir que o médico, encontrando-se nas condições descritas acima, dará más receitas?” (4)

A beneficência do médico era decorrência do seu saber, que incluía o “saber o que é bom”: o bem do paciente, com certeza, porém não como indivíduo autônomo, mas sim como parte integrante do bem maior da sociedade. Também não era chocante a idéia de que as diferenças “naturais” entre os homens determinassem uma hierarquia social, e que a esta por sua vez correspondessem diferentes formas de acesso aos cuidados de saúde.

Na sociedade moderna, a autonomia do indivíduo, e o pluralismo religioso, político e moral passaram a ser reconhecidos como ideal de sociabilidade. Através de diversos movimentos e fatores convergentes - da incorporação das idéias judaico-cristãs de dignidade da pessoa e de sentido progressivo da história à ascenção de uma burguesia que valorizava mais a iniciativa individual do que a ordem estabelecida feudal -, assistiu-se ao progressivo descobrimento e afirmação dos direitos humanos. Não se temia que o individualismo provocasse a desintegração da ordem social. Acreditava-se que os inevitáveis conflitos, gerados pela pluralidade de valores e de interesses entre os indivíduos autônomos unidos por um contrato social, seriam no limite passíveis de uma conciliação, na idéia do “bem comum”, reconhecível e aceito por todos. Otimismo fundamental, que via na natureza humana racional o denominador comum capaz de arbitrar entre os interesses legítimos. E esses, ao contrário dos interesses mesquinhos e egoístas, seriam sempre, em princípio, interesses universalizáveis. Acreditava-se, dentro de uma visão liberal do conceito de justiça¸ que, uma vez reconhecida e respeitada a autonomia dos indivíduos e assegurados seus direitos fundamentais (também chamados direitos “negativos”, pois tratava-se basicamente de assegurar que cada um pudesse conduzir seus assuntos sem interferência dos demais) o papel da coletividade, especialmente do Estado, poderia ser mínimo.

Era nesse contexto que se estabelecia o consenso básico justificador da prática médica vigente. Ricos e remediados, cujo status era considerado justa decorrência de seu próprio trabalho e competência, teriam a medicina que pudessem pagar, diretamente ou através de seguros privados. E aos pobres não era reconhecido nenhum direito à assistência médica, a qual, na melhor das hipóteses, lhes poderia ser prestada por caridade.

No século XIX, a evolução das condições da sociedade européia exigiu que fosse dado ao princípio de justiça uma determinação mais substantiva. O predomínio da produção industrial em grande escala, por um lado, esvaziou a verossimilhança da tese de que o trabalho e a iniciativa individual eram a fonte de legitimidade da riqueza. Por outro lado, também a pressão das lutas políticas dos trabalhadores organizados forçou o seu reconhecimento como sujeitos de direitos positivos, aos quais passaram a corresponder deveres por parte da sociedade, e mais especificamente, do Estado.

Diferentes “pontos de equilíbrio” foram procurados e encontrados entre os interesses dos dois grandes protagonistas históricos nesse período, a burguesia ainda fortemente responsável pelo dinamismo econômico, e a classe trabalhadora, cada vez mais consciente de seu próprio peso dentro do sistema. Nenhum dos lados consegue um predomínio nítido na disputa ideológica, e deixa de haver a aderência da sociedade como um todo a um sistema de valores compartilhados. O ideal de uma forma de vida compartilhada permanece: o conservador Augusto Comte fala da “incorporação do proletariado à sociedade industrial”, o revolucionário Marx projeta uma sociedade comunista sem classes como perspectiva da luta vitoriosa do proletariado, “classe universal”. Mas o fato é que o consenso social já não existe.

Não é de surpreender, portanto, que nessa época o campo médico reflita as inquietações, conflitos e tentativas de solução que perpassam toda a vida social. O alcance e os limites dos novos direitos positivos; as fontes de financiamento das instituições exigidas para assegurá-los, e as novas formas de gestão que elas requerem; o alcance e os limites do papel do Estado, e as bases de sua legitimidade; tudo isso são temas que agitam o debate social e se refletem na área da saúde. Comunistas, anarquistas, social-democaratas, conservadores tentam soluções diferentes, a partir de diferentes concepções do que seja o bem-comum. Mas o que ainda não está em questão é a idéia de que existe algo como o bem-comum, ao qual se deve chegar: por bem ou por mal, mais cedo ou mais tarde, a sociedade deve ser conciliada e a coesão restabelecida. Existem diferentes campos dentro da sociedade, mas cada um acredita que a sua visão, a sua ética são universais e deverão acabar predominando. O conflito é portanto entre perspectivas éticas diferentes, que não se reconhecem como eqüivalentes mas sim como rivais. Embora conflituosa, a situação não é dramática, pois dentro de cada campo há coesão suficiente para assegurar a segurança dos juízos éticos.

Por um novo tipo de consenso
Nossa condição atual, que se tornou moda chamar de “pós-moderna”, se caracteriza pelos processos acelerados de urbanização e de globalização, sob a égide do capital financeiro, no bojo de uma revolução tecnológica e gerencial que torna a produção cada vez mais incorporadora de “inteligência” e menos de matérias primas ou de energia humana não-qualificada. A mudança do padrão tecnológico marginaliza os grandes contingentes populacionais que no modelo anterior constituiam as reservas de mão-de-obra não qualificada, agora dispensáveis e indesejadas. O Estado perde sua função econômica de grande acumulador de capital; seu caráter nacional passa a ser um obstáculo à livre circulação financeira; seu papel de compensador das desigualdades sociais um impecilho ao descarte, considerado inevitável, da velha mão-de-obra industrial.

No terreno ideológico, a nossa é uma época marcada pela perda de vigência dos grandes ideais unificadores (a “falência das grandes narrativas”, de que fala F.Lyotard). Nem a Natureza, nem Deus, nem a Razão conseguem mais desempenhar o papel de recurso supremo ao qual apelar para dar um sentido global à história e à ação humanas. O mercado, a nova grande força sobre-humana a que se passou a recorrer, não tem nem de longe o mesmo potencial legitimatório de suas antecessoras.

Não mais existe, no seio das sociedades complexas e avançadas, um sentido comunitário compartilhado por todos, ou por grandes segmentos sociais. A um exacerbado individualismo correspondem identidades sociais múltiplas e flutuantes. O indivíduo transita entre vários grupos, simultânea ou sucessivamente, e sua identificação com os valores de cada um deles dificilmente o absorve de forma total ou definitiva. Proliferam as “tribos”, com experiências, linguagens e interesses tão diversos que seu diálogo se torna não apenas difícil, mas inclusive ocioso, por falta de bases ou de objetivos comuns. As movimentações das populações - do campo para as cidades, dos países pobres para os desenvolvidos - criam guetos culturais, étnicos e linguísticos no seio das grandes metrópoles, enquanto o abismo econômico e cultural se aprofunda entre as classes e as nações. A rapidez da criação de novos conhecimentos e da transmissão das informações, aliadas à especialização crescente em quase todas as áreas, produzem microcomunidades, muitas vezes virtuais, de iniciados cujo jargão é impenetrável mesmo para seus vizinhos mais próximos do espectro científico (ou literário, ou filosófico). Não é de admirar, em tais circunstâncias, que a ética tenha se transformado em um diálogo de surdos (com perdão da expressão, pois é sabido que os surdos desenvolvem sofisticadas formas de comunicação entre si e com os ouvintes, e podem dialogar tão perfeita - ou imperfeitamente - como os demais).

Mas há também fatores animadores nessa situação bastante preocupante. Não existe por parte desses grupos - religiosos fundamentalistas e neoliberais fanáticos à parte - a pretensão de fazer valer para o conjunto da sociedade seus pontos de vistas e objetivos. O pluralismo é a regra, seja por autêntico respeito à autonomia dos demais, seja por indiferença aos problemas e opções alheios. E uma nova consciência de solidariedade faz contraponto à exacerbação do individualismo. Os temas ambientais, a mobilização em torno das mais diversas questões coletivas - característica das ações das ONGs - a solidariedade ativa em relação a grupos desfavorecidos ou discriminados, mostram que se não há uma consciência ética baseada numa experiência comum aos diversos segmentos da sociedade, existem forças capazes de assegurar um novo tipo de coesão inter-grupal não homogeneizante.

O desafio para a nova (bio) ética dos novos tempos está em favorecer essas forças, que apontam para a constituição de um novo tipo de comunidade, onde o consenso não exclui a diferença e nem mesmo o conflito. Reconhecer que nem todos os conflitos legítimos são conciliáveis é renunciar ao ideal (ou ao mito) da verdade, do bem ou da razão supremos, e contentar-se com o difícil e precário equilíbrio possível.

Do ponto de vista da alocação de recursos em saúde isso pode querer dizer, antes de mais nada, a abertura a uma participação pública realmente substantiva nas decisões fundamentais. Destaco a idéia de participação, em oposição ao simples debate público, que já se tornou chavão receitar como saída para toda espécie de impasse. A idéia do debate (mesmo assorti com os adjetivos de livre, informado, racional, etc.) ainda é excessivamente tributária do velho ideal de uma razão universal, capaz de apontar, uma vez eliminados os preconceitos e a ignorância, para o velho objeto do desejo totalizante: o interesse geral, o “bem-comum”. Insisto em que uma nova forma de solidariedade só poderá resultar de uma nova forma de vida, e que isto implica, mais do que debater, em fazer coisas junto uns com os outros. Claro que o debate público é parte disso, e os países nórdicos têm dado o exemplo no sentido de procurar envolver toda a sociedade na discussão dos temas de bioética (5). Mas é tendo a responsabilidade de agir, de dar razões da ação, e de arcar com as conseqüências que se aprende a viver junto. Se isto for possível, estaremos fazendo a nossa parte no esforço de recriar a necessária base comunitária para uma ética do gerenciamento do conflito legítimo, que me parece ser a única adequada e possível para o nosso tempo.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1)Gracia, D. Qué es un sistema justo de servicios de salud? Principios para la asignación de recursos escasos. In: Boletín de la Oficina Sanitaria Panamericana, 1990; 108: 570-585.
2)MacIntyre, A. Historia de la Ética. Barcelona, Paidos, 1981. (p. 257)
3)idem .(p.255)
4)Joly, R. Hippocrate - médecine grecque. Paris, Gallimard, 1964. (p.228-9)
5)B.Andrew Lustig, ed. Bioethics Yearbook, vol 4. Regional Developments in Bioethics, 1991-1993. Kluwer Academic Publishers, Dordrecht, 1995, pp. 301-327

REJANE MARIA DE FREITAS XAVIER
POR UMA ÉTICA DO GERENCIAMENTO DOS CONFLITOS
(publicado na revista BIOÉTICA - Volume 5 - Nº 1 - 1997
do Conselho Federal de Medicina ) http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/370/470