sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

COMO CAIU O MUNDO QUE CARNAP CONSTRUIU EM 1928


Rejane Xavier

RESUMO

Neste artigo[1] proponho uma interpretação não-standard das razões que levaram Carnap a abandonar seu projeto de construção lógica do mundo, formulado no Aufbau[2]. Pretendo acrescentar elementos para uma leitura dessa obra que podem lançar nova luz sobre sua apreciação filosófica. A construção lógica do mundo de Carnap é tratada a partir de três pontos de vista: sua sintonia com a mentalidade da época; seu objetivo de justificar a ciência empírica; e o formalismo com que o comprometem seus pressupostos racionalistas e seu uso do instrumental lógico-matemático. À luz desses três pontos de vista busco explicitar por que o projeto encontrou limites ou conduziu a resultados que levaram o próprio Carnap a rejeitá-lo e abandoná-lo.

ABSTRACT
This text argues for a nonstandard interpretation of Carnap´s reasons to abandon his project of a logical construction of the world, built up in the Aufbau. It is suggested that there are reasons to believe that under new elements the reading of the Aufbau would lead to a different appraisal of it as a philosophical work. Carnap´s logical construction of the world is treated from three points of view: its being in tune with the mindset of his time, its intention to justify empirical science, and the formalism with which it is committed under its rationalist assumptions and its use of the logical-mathematical instruments. In the light of these three viewpoints it is explored the question of explaining why the project found limitations and produced results that led Carnap to the point of rejecting and abandoning it.

Qualquer pessoa que já passou os olhos pelo Aufbau, ou teve alguma notícia do que se trata nessa obra, sabe que Carnap, aí, pretendeu "definir todos os conceitos empíricos sobre uma base fenomenista" (o que é certo) e conclui, provavelmente, que Carnap é portanto um empirista humeano (o que é falso). Mas não era exatamente isso o que sustentava Hume, que todas as nossas ideias são feixes de impressões, e que devíamos procurar, para cada ideia, a impressão ou impressões de que provém? Perfeitamente. O leitor ligeiramente mais sofisticado acrescentará que, por certo, Carnap é um empirista lógico, para quem conceitos não são "feixes" de impressões, mas "complexos lógicos" (classes e extensões de relações de diversos tipos lógicos, construídas a partir de certos elementos básicos), e que a definição que ele busca dos conceitos empíricos em termos de conceitos básicos não é uma tradução termo a termo, mas uma regra que permita transformar enunciados sobre os primeiros em enunciados sobre os últimos.

Se este leitor imaginário acrescentar, ao fim do período anterior, a expressão salva veritate, já podemos começar a conversar seriamente com ele sobre Carnap e o Aufbau. Mas antes, vejamos qual a sua opinião sobre o balanço dessa obra. Se ele nos disser que tudo não passou de um projeto ambicioso e cuidadoso, que entretanto teve de ser abandonado ("pois não é possível definir nem mesmo os conceitos empíricos mais elementares, como mostrou Goodman"; "a construção dos objetos físicos é defeituosa, como mostrou Quine"; "a lógica utilizada tinha limitações que Carnap na época não podia avaliar, como mostraram Godel e Church"), podemos estar certos de que, embora cuidadosa, sua leitura não chegou a questionar a received view a propósito de Aufbau.

A interpretação não-standard que proponho não se contrapõe cabalmente a essa que acaba de ser rapidamente evocada. Quase tudo o que acaba de ser dito é verdadeiro, com exceção da conclusão sobre o "empirismo" de Carnap. e sobre as razões que o levaram a abandonar o projeto. Minha contribuição pretende ser a de acrescentar elementos à versão usual sobre o Aufbau, lançando alguma nova luz sobre sua apreciação filosófica. Entender o objetivo do Aufbau como o de justificar ou legitimar os conceitos empíricos, comuns e científicos, e não simplesmente como o de "definir todos os conceitos empíricos a partir do dado" (o que não passa do meio para chegar àquele objetivo).

É esta a (talvez pequena) mudança de ênfase que proponho, mas que ao final fará toda a diferença. De projeto "empirista", o Aufbau passará a projeto "neotranscendental"; de tentativa fracassada, ele se tornará uma redução ao absurdo dos pressupostos racionalistas e da démarche transcendental a que recorre para dar conta da demanda de justificação, da quaestio juris frente à ciência empírica, da qual quis validar a pretensão de objetividade. "Redução ao absurdo" não por ter vindo a manifestar uma contradição interna dentro do caminho racionalista e formalista que trilhou, mas por levar a resultados inaceitáveis à luz de concepções independentes, essas sim empiristas, sobre "o caráter aberto e a inevitável incerteza de todo o conhecimento factual", cuja revisabilidade precisamente, para Carnap, importava acima de tudo assegurar ao final: mesmo ao preço de abandonar o paradigma de justificação inicialmente adotado.