quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Discurso de paraninfo - Paulo Faria

Incluo aqui o texto do discurso de paraninfo proferido por meu querido amigo e colega Paulo Faria na formatura dos cursos do IFCH da Universidade Fedaral do Rio Grande do Sul, em janeiro de 2010. Muitas pessoas me pedem para lê-lo, e o melhor caminho que conheço para divulgá-lo é este blog, dedicado às reflexões filosóficas. As minhas, pálidas e eventuais, e outras como esta, onde brilha a clareza da mente e a autenticidade da experiência de vida e de magistério do Faria.
 (Tomei a liberdade de acrescentar uns subtítulos)
Paulo Faria



Magnífico Reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Prof. Carlos Alexandre Netto;
Ilma. Sra. Vice-Diretora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Profa. Sílvia Altmann;
Professores e funcionários homenageados;
Demais autoridades presentes;
Formandos dos Cursos de Graduação (Licenciatura e Filosofia) em Filosofia;
Formandos dos Cursos de Graduação em Ciências Sociais;
Senhoras e Senhores.

No ano 399 antes de Cristo, provavelmente nos primeiros dias do mês de Targélion (vale dizer, aí por meados de maio no calendário gregoriano), um tribunal ateniense condenou à morte, por maioria de votos dos mais de quinhentos membros do júri popular que o integrava, um homem que alegava – como ele teria dito em sua defesa – não ter feito outra coisa de sua vida que ‘submeter a exame’ a si mesmo e aos outros (em discussões travadas em toda sorte de ocasiões, privadas e públicas; nas ruas de Atenas; não raro, na praça do mercado), na convicção de que ‘uma vida não examinada não vale a pena de ser vivida’.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

INQUIETAÇÕES PÓS-CÉTICAS

DEPOIS DO CETICISMO(*)
Sexto Empírico
O ceticismo põe em dúvida, de forma extremamente rigorosa e conseqüente, nossa capacidade de chegar a crenças verdadeiras justificadas. Para salvar, contudo, a comunicação e a ação, impossíveis sem uma base de crenças compartilhadas, o cético apela a uma linguagem destituída da força ilocucionária da asserção, ou a um domínio natural ou prático, capaz de fornecer certezas ao mesmo tempo não fundadas e não sujeitas a dúvida. Procura-se mostrar que um cetidsmo contemporâneo encontra bloqueadas ambas essas saídas, o que o obriga, pelo menos, a se tornar muito mais radical.

Scepticism casts doubt - in a very rigorous and consequential way - on our ability to reach true justifiable beliefs. In order to preserve the possibility of communication and action (which depends upon shared beliefs), the sceptic appeals either to a language devoid of assertive illocutionary force or else to a natural or practical domain. The latter provides certainties which are neither grounded nor subject to doubt. In this paper an attempt is made to show that both ways are blocked for a contemporary sceptic. This fact forces him, at the very least, to become much more radical.

Em diversas discussões atuais, as expressões cético e ceticismo não são usadas para designar uma escola ou doutrina filosófica historicamente determinada, ou seus adeptos ou representantes. Servem antes como conceitos-valise, dentro dos quais se abrigam por certo algumas características do ceticismo antigo, mas que expressam sobretudo o resultado de uma estilização. O Cético, herói ou vilão de tantas controvérsias, não será nenhuma figura de carne e osso, seja ela Sexto Empírico, Descartes, Hume ou Goodman, mas algo como um tipo ideal weberiano, ou um personagem estereotipado da Comédia dell'Arte. A recorrência deste personagem no cenário filosófico, sua persistente resistência às reiteradas refutações de que é incansavelmente alvo, devem ter algo a nos ensinar.

Vencer o cético é uma obsessão da filosofia, tanto mais curiosa quanto parece ser o caso que ele é antes de mais nada uma criação dela mesma. A literatura filosófica recente nos fornece exemplos muito mais abundantes de céticos criados pelos filósofos para serem refutados do que daqueles que, motu proprio e sponte sua, tenham se apresentado para desafiá-los. Real ou estilizado, contudo, o cético aparece como o avesso do filósofo; refutá-lo, vencê-lo, significa para o filósofo afirmar-se. De quanto tiver de ceder ao ceticismo resultarão os contornos do espaço que lhe restará. Decifrar com maior clareza os traços desse outro é para a filosofia uma tarefa de autoconhecimento, e não um simples passatempo analítico.

Por isso, neste trabalho, além de tentar sistematizar os traços mais marcantes desse personagem que freqüenta as discussões contemporâneas, evocando pari passu as contestações que lhe são mais comumente dirigidas e suas maneiras de escapar das mesmas, procurarei, ao final, encaminhar algumas considerações críticas. Não anti-céticas, o que seria certamente inútil; algo talvez no sentido de um pós-ceticismo, mais à feição desse tempo fragmentado e desencantado que é o nosso.
O ceticismo que irei (re)construir a seguir comporta variantes, que se deixam contudo organizar em torno de quatro pontos, ou momentos de um hipotético itinerário clínico: (i) sintomas, (ii) diagnóstico, (iii) terapia, (iv) recuperação.

sábado, 10 de março de 2012

A verdade é sempre relativa? (1)

Um bom começo para essa questão é tentar ter bem clara a diferença entre relatividade e relativismo.


Quem está "de cabeça para baixo"?
Relatividade a gente encontra desde a vida quotidiana até a ciência mais sofisticada. Jorge, que tem um metro e oitenta, é alto ou baixo? A maioria de nós, brasileiros comuns, o consideraria alto. Nos países nórdicos ou entre os Watusi da África, talvez ele fosse visto como médio, ou até baixo. A altura de uma pessoa é um conceito relativo. Minha casa está do lado direito ou esquerdo de quem passa pela rua? Depende da direção em que o passante vai (se ele está subindo ou descendo a rua).  Quem está “de cabeça para baixo”: nós, ou os japoneses? Direita, esquerda; para cima, para baixo – outros tantos conceitos relativos. Assim como rico/pobre, feliz/infeliz, gordo/magro. 
Mas na ciência, pelo menos, não temos verdades objetivas, que não dependem de pontos de vista? 
Bem, podemos dizer que temos verdades objetivas, mas isso não é o mesmo que dizer que elas “não dependem de pontos de vista”. Na Física, Einstein desenvolveu a teoria da relatividade, segundo a qual comprimento, massa e tempo não são grandezas independentes: tornam-se relativas quando as velocidades são extremamente grandes (próximas da velocidade da luz). Mas na nossa experiência comum do mundo físico, elas podem ser tratadas como independentes, e é isso o que faz a Mecânica clássica. Duas teorias científicas incompatíveis, mas que nós aceitamos como formas diferentes de descrição do mundo físico a ser usadas em situações diferentes. 
Isso quer dizer, então, que não existe uma verdade absoluta? 
Sim: nenhuma dessas verdades é absoluta. 
E quer dizer, então, que vale tudo? Cada um pode ter a sua verdade, ninguém pode ser considerado errado? 
Não; talvez até “infelizmente” não. Pois é neste momento, com este aparentemente pequeno passo, que saímos da relatividade e entramos no relativismo.
Na relatividade, aceitamos que é possível e às vezes bastante útil ter mais de um marco teórico para lidar com os fenômenos. Alguma dessas molduras conceituais pode ser mais precisa, outra mais prática, outra mais intuitiva, e assim por diante. Podemos usar o sistema decimal para dividir nossas moedas: um real, dez (vinte, trinta, cinquenta) centavos – pois isso facilita nossas contas. Mas os ingleses preferiram durante muito tempo (da conquista Normanda em 1066 até 1971) dividir a sua moeda, a libra (pound) em 20 shillings ou 240 pennies. Duzentos e quarenta é facilmente divisível por doze, por seis, por quatro, por três ou por dois, e isso tornava mais prática a manipulação das frações, ou seja, do troco. 
Até aí, estamos falando de relatividade: sistemas alternativos para lidar com a moeda. Mas daí a dizer que a metade de um real é 120 centavos, porque os ingleses dividiam a moeda em 240 partes é simplesmente um erro! Eles não estavam errados em dividir por 240; nós não estamos errados em dividir por 100: errado está quem mistura os dois sistemas, de forma incoerente. 
Podemos considerar Jorge alto ou baixo, mas se estivermos usando o sistema métrico decimal ele mede um metro e oitenta centímetros. Qualquer outra medida estará errada, dentro desse sistema. Se estivermos usando outra escala (temos todo o direito de fazê-lo) ele poderá ter outra medida de altura, por exemplo em pés ou em polegadas fracionárias ou milesimais, mas em cada sistema ele terá uma e apenas uma medida correta. 
Relatividade, sim – relativismo não!
(talvez eu continue este assunto, para falar das "verdades matemáticas". Só para dar um gostinho, Bertrand Russell - grande lógico, matemático e filósofo - dizia que a matemática é uma ciência "na qual não sabemos do que falamos nem se o que dizemos é verdade"...)