segunda-feira, 4 de junho de 2012

INQUIETAÇÕES PÓS-CÉTICAS

DEPOIS DO CETICISMO(*)
Sexto Empírico
O ceticismo põe em dúvida, de forma extremamente rigorosa e conseqüente, nossa capacidade de chegar a crenças verdadeiras justificadas. Para salvar, contudo, a comunicação e a ação, impossíveis sem uma base de crenças compartilhadas, o cético apela a uma linguagem destituída da força ilocucionária da asserção, ou a um domínio natural ou prático, capaz de fornecer certezas ao mesmo tempo não fundadas e não sujeitas a dúvida. Procura-se mostrar que um cetidsmo contemporâneo encontra bloqueadas ambas essas saídas, o que o obriga, pelo menos, a se tornar muito mais radical.

Scepticism casts doubt - in a very rigorous and consequential way - on our ability to reach true justifiable beliefs. In order to preserve the possibility of communication and action (which depends upon shared beliefs), the sceptic appeals either to a language devoid of assertive illocutionary force or else to a natural or practical domain. The latter provides certainties which are neither grounded nor subject to doubt. In this paper an attempt is made to show that both ways are blocked for a contemporary sceptic. This fact forces him, at the very least, to become much more radical.

Em diversas discussões atuais, as expressões cético e ceticismo não são usadas para designar uma escola ou doutrina filosófica historicamente determinada, ou seus adeptos ou representantes. Servem antes como conceitos-valise, dentro dos quais se abrigam por certo algumas características do ceticismo antigo, mas que expressam sobretudo o resultado de uma estilização. O Cético, herói ou vilão de tantas controvérsias, não será nenhuma figura de carne e osso, seja ela Sexto Empírico, Descartes, Hume ou Goodman, mas algo como um tipo ideal weberiano, ou um personagem estereotipado da Comédia dell'Arte. A recorrência deste personagem no cenário filosófico, sua persistente resistência às reiteradas refutações de que é incansavelmente alvo, devem ter algo a nos ensinar.

Vencer o cético é uma obsessão da filosofia, tanto mais curiosa quanto parece ser o caso que ele é antes de mais nada uma criação dela mesma. A literatura filosófica recente nos fornece exemplos muito mais abundantes de céticos criados pelos filósofos para serem refutados do que daqueles que, motu proprio e sponte sua, tenham se apresentado para desafiá-los. Real ou estilizado, contudo, o cético aparece como o avesso do filósofo; refutá-lo, vencê-lo, significa para o filósofo afirmar-se. De quanto tiver de ceder ao ceticismo resultarão os contornos do espaço que lhe restará. Decifrar com maior clareza os traços desse outro é para a filosofia uma tarefa de autoconhecimento, e não um simples passatempo analítico.

Por isso, neste trabalho, além de tentar sistematizar os traços mais marcantes desse personagem que freqüenta as discussões contemporâneas, evocando pari passu as contestações que lhe são mais comumente dirigidas e suas maneiras de escapar das mesmas, procurarei, ao final, encaminhar algumas considerações críticas. Não anti-céticas, o que seria certamente inútil; algo talvez no sentido de um pós-ceticismo, mais à feição desse tempo fragmentado e desencantado que é o nosso.
O ceticismo que irei (re)construir a seguir comporta variantes, que se deixam contudo organizar em torno de quatro pontos, ou momentos de um hipotético itinerário clínico: (i) sintomas, (ii) diagnóstico, (iii) terapia, (iv) recuperação.

Sintomas

O ceticismo pode aparecer relacionado à discussão dos mais diferentes problemas: da existência do mundo exterior à realidade do passado, do conhecimento das outras mentes à justificação da indução, da teologia à matemática, passando pela ética. Não é o tipo de questão de que se ocupa que nos permitirá identificar o cético. Tampouco o serão suas motivações: o escândalo frente à indecidibilidade dos conflitos entre as opiniões, a preocupação de evitar o erro e a ilusão, a busca da certeza podem indistintamente desencadear respostas céticas. Além disso, o cético não é, como tantas vezes se afirma, aquele que nega seja a existência de certo tipo de entidades, seja a validade de certo tipo de crenças. Ele não nega a existência, digamos, de objetos materiais (aliás, "pior para ele" se o fizesse, diriam Carlyle e Searle, 1980, p. 112n). ou a existência de Deus, ou de outras mentes. Ele não é também, acrescenta Strawson (1985, p. 2), "alguém que nega a validade de certos tipos de crença, mas alguém que questiona, mesmo que seja inicialmente e por razões metodológicas, a adequação de nossos fundamentos para sustentá-las". Até aí, continuamos sem qualquer sintoma próprio do ceticismo: não apenas os filósofos, mas os cientistas e as pessoas em geral costumam questionar, em maior ou menor grau, a adequação dos fundamentos para sustentar suas crenças.

Este sintoma característico do ceticismo, que estamos procurando, é a dúvida. Não qualquer dúvida, mas uma forma especial - e no entender de muitos, perversa - de dúvida. O que lhe é próprio é que ela se apresenta sempre como um radical e generalizado pedido de justificação.

Peter Bieri (1979, p. 305) caracteriza com inteira felicidade o essencial do questionamento cético. Partindo do pressuposto que a melhor análise do que seja o conhecimento leve a entendê-lo como crença verdadeira justificada, o cético de Bieri "concentra-se diretamente no conceito de conhecimento, perguntando: Que condições devem ser satisfeitas para que possamos usar justificadamente o conceito de conhecimento? Podem essas condições alguma vez serem satisfeitas?".

O cético não começa, portanto, negando o que quer que seja. Ele "procura, duvida, está indeciso", e entra em crise "ante a impossibilidade de preferir uma entre várias opiniões (próprias ou alheias) a respeito de um mesmo assunto", pois não encontra "um sinal, um critério que (lhe) permita distinguir a opinião verdadeira da que não o é" (Olaso 1981, pp.22-26). Nesta fase o cético - que Olaso, seguindo Naess, chama de cético imaturo ainda se encontra no âmbito da atitude judicativa (de que se libertará depois, se seguir a trajetória típica). Na verdade, o uso que venho fazendo de expressões temporais (fase, momento, trajetória) pode mascarar o essencial, que não é a sucessão cronológica ou existencial, mas a conexão conceitual, analítica: o cético não é alguém afetado por uma congênita cegueira epistêmica, alguém que se posiciona de saída fora e contra o conhecimento e com quem se torna portanto impossível qualquer diálogo nesse plano. O cético questiona a possibilidade de conhecimento em nome das condições e das exigências internas do próprio conhecimento, de forma perfeitamente coerente e racional. Se as conseqüências são desastrosas, deve haver algo de errado com o próprio conceito de conhecimento de que se partiu.

Aqui seria o momento de descartar uma forma comum de pretensa refutação do ceticismo, sob a alegação de que ele seria contraditório: pede razões e justificações, por um lado (supondo portanto que estas existam); nega, por outro, sua própria suposição, ao rejeitar a possibilidade de qualquer justificação. A objeção, além de confundir suposição com afirmação, não capta o movimento cético, da pergunta pela justificação e pelo critério, à decepção quanto à possibilidade de obter uma resposta e, conseqüentemente, quanto à própria "atitude judicativa" que gerou a pergunta.

Cavell (1979, p. 46) também caracteriza o ceticismo como uma certa forma de levantar a questão do conhecimento, independentemente da forma, positiva ou negativa, de como essa questão será depois respondida. Considerar, como estou fazendo, esta forma de levantar a questão do conhecimento o principal "sintoma" do ceticismo, traz entretanto uma dificuldade: como distinguir o cético do filósofo tout court?

Na filosofia, ao contrário do que se passa na vida quotidiana ou na ciência, não se pedem razões ou explicações apenas daquilo que parece insólito ou fora de lugar no quadro da experiência usual ou das previsões teóricas. Austin (1964, p.10-12 e passim; 1975, p. 100), que não tem muita paciência com os céticos, procura mostrar que o ônus da justificação deve ser suportado, antes de mais nada, por quem levanta a dúvida: antes de cobrar as razões de quem alega conhecer alguma coisa, o inquiridor deve dar conta de suas razões para duvidar. Mas esta não é a forma como a filosofia tradicionalmente procede. Ao contrário, ela tem se posto como tarefa questionar "os primeiros princípios", investigar os sistemas de razões, perguntar pelos fundamentos, aspirar à verdade não como uma dádiva gratuita (o "afortunado acaso", de que fala Carnap, de que nossas teorias correspondam à realidade) mas como um resultado passível de ser justificado.

“Os seres humanos não apenas procuram erros de impressão ou vão ao tribunal ou realizam experiências ou desvendam assassinatos; eles também buscam alguma compreensão geral sobre como o seu conhecimento é possível" - lembra Stroud (1984, p. 129), a propósito de Kant. Portanto, se a dúvida cética é perversa ou extravagante, porque excessiva, se o questionamento da legitimidade do conhecimento só é razoável se acompanhado da aceitação explícita ou tácita do que pode contar como critério de justificação, então isto coloca, antes de mais nada, ao filósofo que quiser se distinguir do cético, o desafio e a obrigação de explicitar os limites e a natureza da sua própria dúvida.

O diagnóstico

Se o ceticismo latu sensu pode ser identificado com "uma certa forma, um certo espírito em que se levanta a questão do conhecimento", em sentido mais estrito ele inclui também a maneira de responder a essa questão. A resposta - negativa - que o cético strictu sensu dá à questão sobre a possibilidade do conhecimento é fundada em uma análise conceitual do que significa dizer de alguém que ele sabe ou conhece alguma coisa, e numa avaliação, também conceitual, da relação de forças entre a capacidade de nossas fontes de conhecimento e o cometimento a que nos lançamos com base nelas.

O diagnóstico do cético conclui pela manifesta inadequação de nossas capacidades à tarefa que delas se espera; em outras palavras, conclui pela nossa impossibilidade de conhecer, de chegar a crenças verdadeiras justificadas.

Na verdade, o cético não desenvolve uma argumentação visando demonstrar, positivamente, que é impossível conhecer. Neste caso, ele estaria sendo contraditório, procurando provar a tese de que nenhuma tese pode ser provada. Sua estratégia é outra: limita-se a apontar as lacunas, falhas e dificuldades dos argumentos de seu opositor, defendendo seu direito de não se deixar convencer, de não se sentir obrigado a aceitar as pretenções do oponente. E o resultado confirma seu diagnóstico: se não há nenhuma necessidade irrecusável na justificação de um pretendido conhecimento. então não se trata de conhedmento, mas de uma convicção ou crença a que se chega com base na fé, no hábito, na convenção, no interesse ou seja lá o que for.

As duas linhas de fraqueza na argumentação cognitivista, que o cético explora com habilidade, são simples: (i) a existência de um hiato entre a evidência de que dispomos e qualquer afirmação factual que pretendamos fazer com base nela (hiato este que só é negado pelo verificacionismo extremo), e (ii) o caráter condicional de toda demonstração formal, sempre relativa a um sistema de princípios e regras, cuja consistência e completude não podem ser formalmente demonstradas pelo sistema ele próprio.

Voltando ao exemplo concreto preferido da literatura, o cético não nega a existência do mundo exterior: para isso, ele teria de demonstrar a sua não-existência, coisa que de forma alguma está entre as suas pretensões. O mundo exterior poderá até existir, admite o cético; apenas, nós não temos como saber se ele existe ou não. Temos sensações, expectativas, crenças, pensamentos; podemos até comunicá-los, e nossa linguagem "fala de objetos" como a linguagem de todo o mundo, admite o cético. Apenas, não podemos alegar ter conhedmento objetivo do mundo exterior, dos objetos materiais, de suas propriedades e comportamentos. Enquanto considerarmos nossa linguagem meramente subjetiva, fenomenológica, orientada para as aparências, tudo estará em ordem, não estaremos transgredindo nossos limites. Ao pretender saber é que passamos a reinvindicar um crédito para o qual não temos garantias.

E aqui fracassa mais uma tentativa de refutação do ceticismo. Os "argumentos trancendentais" pretendem que a existência do mundo exterior é uma condição de possibilidade de qualquer experiência (mesmo desta que o cético não contesta ter, mas à qual não atribui alcance objetivo), ou que, para empregar significativamente os conceitos da linguagem em que se expressa e formula suas dúvidas o cético precisa aceitar a verdade de algum conjunto de proposições, Como afirma Davidson (1984, p. 199) "compartilhar uma língua, no sentido requerido para a comunicação, é compartilhar também uma imagem do mundo que deve ser verdadeira em suas grandes linhas". Mas a teoria da verdade de Davidson não é uma teoria do conhecimento, e o que o cético põe em dúvida não é que muitas das coisas que dizemos ou aceitamos são verdadeiras, mas sim que nós tenhamos condições de sabê-lo. E Stroud mostra que "o máximo que tais argumentos podem estabelecer é que para que a formulação inteligível das dúvidas céticas seja possível ou, de modo geral, para que o pensamento consciente e a experiência sejam possíveis, nós devemos aceitar, ou acreditar, que temos conhecimento, digamos, de objetos físicos externos ou de outras mentes; mas estabelecer isto está muito longe de estabelecer que tais crenças são, ou devem ser, verdadeiras", como resume Strawson (1985, p. 9).

O que eu estou chamando o diagnóstico do cético - aquilo que explica seu sintoma (a dúvida) e justifica a sua terapia (que já se verá qual é) - consiste em apontar para a possibilidade lógica de que "em geral, nossa experiência total fosse exatamente como é, mesmo que o mundo fosse completamente diferente do que nós acreditamos que ele é como resultado dessa experiência" (Bieri 1979, p. 301). Ou seja, traduzindo para o modo formal: nós devemos usar e aplicar nossos conceitos nas condições experimentais requeridas para garantir ou justificar sua aplicação, mas o preenchimento dessas condições é consistente com a falsidade de todas as proposições que afirmamos, e não há argumento capaz de nos assegurar de que qualquer uma dessas proposições é verdadeira.

Seria bizarro, é certo, que estivéssemos sendo sistematicamente enganados por um gênio maligno, como sugeriu Descartes, ou que Deus produzisse em nós por ação imediata o que acreditamos ser normalmente produzido pelas coisas criadas, como imaginou G. de Ockham; mas estas são possibilidades lógicas que nenhuma experiência ou argumento, formal ou transcendental, poderá excluir.

Em relação ao diagnóstico, não vejo como o filósofo possa deixar de coincidir com o cético. Não temos possibilidade de obter a justificação radical, que o conceito de conhecimento parece requerer. O "trilema de Albert" (toda justificação é circular, infinita ou arbitrária) já se encontra formulado em Sexto Empírico, e a incompletude de Gödel, os paradoxos de Clavius/Leibniz e de Kripke/Wittgenstein aí estão para nos lembrar disso, se porventura o esquecêssemos.

A terapia

A terapia cética, conseqüente com o sintoma e com o diagnóstico, será cirúrgica: extirpando-se a sede do problema, este desaparecerá, e nada de essencial ou de importante se terá perdido.
Decepcionado face à impossibilidade de distinguir, entre as opiniões conflitantes, aquela que seria verdadeiro conhecimento (com perdão da redundância), o cético abandona sua atitude inicial. Renuncia à procura do conhecimento, suspende o juízo, limita-se à "crônica das aparências"; não afirma nada (na versão radical do ceticismo), ou não se compromete totalmente com o que afirma (na versão moderada).

É importante enfatizar a diferença entre as duas versões do ceticismo, que Olaso (1981, p. 42), com inteira razão, considera incomensuráveis. Não se trata de uma diferença de grau. O cético radical ou pirrônico sai fora do campo epistemológico, abandona a dimensão judicativa, e não procura encontrar-lhe um sucedâneo. Prescinde tão completamente da dimensão epistêmica que chega ao ponto de rejeitar, na linguagem ordinária, as formas de expressão assertivas, capazes de comprometê-lo, a ele que renunciou a toda pretensão de saber, com a problemática do verdadeiro e do falso.

A outra vertente do ceticismo também passa pela cirurgia da suspensão do juízo: se não se encontram critérios para decidir com certeza entre diferentes opiniões, não podemos pretender conhecer qual é a verdadeira. Mas, à diferença do cético radical, o moderado ou acadêmico não irá, a partir deste ponto, abandonar todo e qualquer interesse pelo conhecimento. Reformulará, ao contrário, o conceito de conhecimento original, procurando-lhe um substitutivo.

O cético radical considera que a cirurgia não o privou de algo essencial, e que se a parte extirpada de fato não servia para nada, não há que se preocupar em substituí-la. Já o cético moderado irá procurar desenvolver uma prótese, capaz de realizar com proveito funções reais em lugar dos desempenhos ideais inatingíveis a que foi levado a renunciar.

A readaptação

Concedamos que, ao passar pela cirurgia da suspensão do juizo, o cético atinge a maturidade e ganha a tranqüilidade. Mas a que preço, perguntaríamos? Esta "suspensão do juízo", no caso de ser possível, não equivaleria a uma espécie de lobotomia, privando o paciente de vida intelectual, incapacitando-o para a comunicação e para a ação?

Antes de embarcarmos, apressadamente, nessas "novas" (entre aspas, porque Sexto Empírico já teve de responder a várias delas) refutações do ceticismo, vejamos como vive o cético - o radical e o moderado - após a cirurgia.

Tornado imune, alheio à tentação de "fazer filosofia", a readaptação do pirrônico consistirá em reconhecer, para a comunicação, a ação, a vida afetiva e social, outras bases que não as cognitivas. Sexto Empírico arrola, entre essas, a natureza, os instintos e paixões, a tradição dos costumes e leis e, talvez um pouco surpreendentemente, a instrução nas artes. O que há de comum entre os termos dessa enumeração um tanto borgiana é que nada disso pretende ser conhecimento.

Já a adaptação do cético moderado consistirá em abandonar o ideal absoluto e radical de conhecimento de que partira, e substituí-lo por algo mais modesto. Se não há nenhum critério que nos permita preferir uma opinião por absolutamente fundada, haveria em contrapartida, a cada momento, inúmeros critérios razoáveis para preferir certas opiniões por melhor fundadas que outras. Por que não chamar a isto de conhecimento, substituindo a busca do melhor argumento, da opinião mais provável à desesperançada procura da certeza e da verdade? Neste caso a diferença entre conhecimento e crença passa a ser de grau, e a fronteira entre ambos torna-se não só fluida como móvel.

Inquietações pós-céticas

"O ceticismo universal, conquanto logicamente irrefutável, é praticamente estéril; a única coisa que ele nos consegue dar é a vacilação quanto às nossas convicções, e não pode, obviamente, substituir essas por outras" (Russell 1966, p. 49).

As distinções que procurei traçar entre os diversos momentos ou aspectos do ceticismo parecem-me úteis para introduzir uma certa ordem nas discussões sobre o assunto. Um argumento anti-cético destinado a apontar, por exemplo, para a dificuldade ou a impossibilidade da suspensão do juizo, não poderá, mesmo se bem sucedido, ser considerado uma refutação do ceticismo, pois deixará de atingir dois aspectos anteriores e independentes: a dúvida cética e a decepção quanto à nossa capacidade de chegar a crenças verdadeiras justificadas. Considerações práticas podem ser relevantes para discutir as estratégias de readaptação dos dois tipos de cético; mas o diagnóstico deve ser objeto de uma análise conceitual. O ceticismo deixa de ser, dessa forma, o pivot de um paradoxo ou escândalo modal: logicamente necessário, e praticamente impossível. . .

Por um lado, o ceticismo é logicamente irrecusável, do sintoma ao diagnóstico, porque se apóia numa irretocável análise conceitual da noção de conhecimento reinvindicada pela filosofia tradicional. É esta última que, em contrapartida, se torna insustentável, se não se dispuser a abrir mão daquela noção.

Por outro lado, a terapia proposta ou praticada pelo cético, e suas alternativas de readaptação oferecem o flanco a inúmeros questionamentos de diversas ordens. Não está no escopo deste trabalho avaliá-los ou mesmo enumerá-los. Tratarei brevemente, contudo, de dois pontos que me parecem oferecer sérias dificuldades à posição cética aqui delineada, sem depender entretanto da posição cognitivista oposta, incapaz de resistir, no meu entender, ao questionamento cético.

A primeira dessas dificuldades diz respeito à suspensão do juizo que o cético se propõe a praticar. Ocorre que abster-se do juízo não consiste em negar o assentimento psicológico a uma proposição, o que poderia estar, eventualmente, sob o comando do indivíduo, mediante um treinamento adequado. A abstenção do juízo, se pretende consistir em privar as proposições de sua força ilocucionária de asserção, mantendo a comunicação exclusivamente ao nível do conteúdo proposicional, não pode ser objeto de uma decisão individual nem de um pacto coletivo. A relação força ilocucionária/conteúdo proposicional é constitutiva do ato de fala, e regulada pelo contexto de comunicação (Searle 1980, capítulos 3 e 5). Se não cabe ao filósofo decidir que suas promessas não o comprometem, da mesma forma não lhe é possível estatuir que seus proferimentos assertivos não asserem. "É difícil ver - diz Rescher - como uma linguagem poderia ser formada e ensinada e (sobretudo) usada, na qual a asserção não desempenhasse nenhum papel e a declaração não trouxesse consigo pretensão à veracidade. Mesmo se (per impossibile) alguém dispusesse de tal "linguagem", qual seria o propósito de usá.la em contextos comunicativos?" (Rescher 1980. pp. 208.209).

O segundo ponto que me parece oferecer uma séria dificuldade à postura cética diz respeito às estratégias de recuperação, tanto dos radicais quanto dos moderados.

A readaptação do cético moderado, na medida em que se propõe a substituir a certeza pela probabilidade, considerando esta, contudo, como uma questão de grau na mesma escala que vai da falsidade à verdade, irá depender da possibilidade de fazer assentar a probabilidade em bases não-cognitivas. Pois se o ponto máximo da escala cognitiva, a certeza, é inatingível, não se pode medir a maior ou menor probabilidade pela maior ou menor proximidade da certeza (que não se sabe onde está). Considerações pragmáticas, estéticas, e até morais devem intervir portanto para que se possa qualificar uma teoria ou opinião como melhor fundada que outra, e assim merecedora de nossa preferência cognitiva. Há, entretanto, mais dificuldades do que se poderia, à primeira vista, esperar, quando se remetem dessa forma as questões teóricas para o âmbito das questões práticas.

As bases não cognitivas que fornecem indiretamente o quadro de referência cognitiva do cético moderado são aquelas mesmas que, para o pirrônico, fornecem diretamente o pano de fundo para a comunicação e a ação, dispensando qualquer necessidade de conhecimento. Tais bases serão procuradas na natureza, no instinto, no costume e nas leis da comunidade, ou até mesmo nas artes, segundo Sexto Empírico.

O ponto que desejo questionar, e que é fundamental para a crítica cética do conhecimento, é o da possibilidade de preservar uma distinção essencial, um verdadeiro dualismo entre esses domínios e o campo do conhecimento, rejeitado pelo cético.

O cético reconhece (e por isso os "argumentos transcendentais" não o atingem) que precisamos de um pano de fundo, de um quadro de referência para pensar e agir, e que deve haver portanto algum domínio onde nossas crenças possam ser, ao mesmo tempo, não fundadas e não sujeitas à dúvida. Este é o sentido da distinção pirrônica entre o evitável e o que foge à nossa alçada, entre o que é matéria de opinião especulativa e o que são "perturbações inevitáveis" impostas pela natureza. Este é também o sentido da estratégia "anti-cética" de Hume: se a razão é incapaz de dissipar as nuvens da incerteza, "felizmente a natureza se basta a si mesma para isso" (Hume 1980, p. 269, Treatise 1.4.7). Este parece ser, igualmente, o sentido das colocações de Wittgenstein (1972, §§94-99; p. 359), enfatizando o papel essencial, em nossa vida e em nosso pensamento, de um quadro de referência, de um background que está fora das questões da justificação, que é algo herdado (§ 94), e de uma certeza que "está além de ser justificada ou injustificada; algo como se fosse qualquer coisa de animal." (§ 359). O que distinguiria, dessa forma, o plano natural e prático (moral, jurídico, estético, político) do plano cognitivo seria que, naquele, a pergunta pela justificação parece ter um limite definido e indisputado, quando se chega a poder apelar para um "é assim que nós fazemos", capaz de decidir, simultaneamente, as questões do quid facti e do quid juris.

A dificuldade que me parece residir aqui diz respeito à pretendida solidez e indisputabilidade desta "reserva de mercado" de crenças, implantadas em nós pela natureza ou nos envolvendo como uma imperceptível atmosfera, uma "forma de vida" ou um "jogo de linguagem" sobre os quais não nos cabe qualquer ingerência, controle ou decisão. Wittgenstein, na verdade, reconhece que este quadro de referêcia indisputado pode sofrer mudanças, mas parece conceber essas mudanças como alterações geológicas, que custamos a perceber e que acontecem em grande parte sem participação consciente nossa.

"Poderíamos representar-nos certas proposições com forma de proposições empíricas como solidificadas e funcionando como canais para as proposições empíricas fluidas, não solidificadas; e que esta relação se modificasse com o tempo, que proposições fluidas se solidificassem e proposições endurecidas se liquefizessem". (§ 96). "A Mitologia pode voltar a um estado de fluxo, o leito do rio onde correm os pensamentos pode se deslocar" (§ 97). "E o banco desse rio consiste parcialmente de rocha dura, não sujeita a alteração, ou apenas a uma alteração imperceptível; e parcialmente de areia que, ora num lugar ora noutro, é levada embora ou depositada". (§ 99).

Que uma tal visão das coisas pudesse satisfazer um grego antigo talvez não seja surpreendente. Mas nós já não temos hoje, depois de Marx e Freud, a mesma confiança nos conteúdos dos conceitos de "natureza" e de "instinto" que se nos oferecem de modo imediato, e somos, pelo contrário, levados a submetê-los a um escrutínio epistemológico. E quanto à arte, ao direito, à moral, à política? Pertence analiticamente ao conceito de "nossa forma de vida" que a consideremos inevitável, a ponto de que se torne para nós impossível não apenas compartilhar, mas inclusive conceber outras formas de vida? O que se vê em nosso mundo contemporâneo é que os acordos básicos são muito mais instáveis, frágeis e limitados, e que a possibilidade de colapso na comunicação não é apenas uma hipótese a ser descartada per absurdum.

Ver esboroarem-se as barrancas e bancos de nossos rios se torna hoje uma realidade quase quotidiana, a ser superada pelo exercício de uma difícil capacidade de transitar entre paradigmas, e às vezes de se manter simultaneamente em vários deles, sem que nenhuma "super-forma de vida" venha a dar sentido global ao conjunto. Colocam-se hoje para nós, com assustadora premência, questões "externas" de escolha, de decisão - teóricas, morais, políticas - que não podemos simplesmente remeter "à natureza" ou ao enfumaçado horizonte de uma comunidade de vida que já não logramos divisar. Se essa instabilidade das nossas referências básicas deve nos assustar ou nos animar, não sei; o certo é que já não podemos continuar tranqüilamente céticos.

(*) publicado originalmente em Manuscrito, XI, 2 (1988), pp. 113-123, como Rejane Carrion.
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REFERÊNCIAS

Austin, J. L. (1964), Sense and Sensibilia. Oxford: Oxford University Press.
_________ (1975), "Outras mentes". In: Os Pensadores, vol. 11. São Paulo: Abril: 93-119.
Bieri, P. (1979), "Scepticism and How to Take It. Comment on Stroud", in Bieri, Horstmann, Krüger (eds) Transcencental Arguments and Science. Dordrecht, Reidel.
Cavell, S. (1979), The Claim of Reason. Oxford: Clarendon Press. Davidson, D. (1984), "The Method of Truth in Metaphysics", in Inquiries into Truth & Interpretation. Oxford, Clarendon Press.
Hume, D. (1980), A Treatise of Human Nature (Selby-Bigge, 2nd. ed.). Oxford: Clarendon Press.
Olaso, E. (1981). Escepticisma e Ilustración. Valência: Oficina Latinoamericana de Investigaciones Jurídicas y Sociales.
Rescher, N. (1980). Scepticism. Oxford: Blackwell.
Searle, J. R. (1980). Speech Acts. Cambridge: Cambridge University Press.
Strawson, P. F. (1985). Skepticism and Naturalism: some Varieties. New York: Columbia University Press.
Stroud, B. (1984). The Significance aI Philosophical Scepticism. Oxford: Clarendon Press.
Wittgenstein, L. (1972). On Certainty. New York: Harper and Row.
Rejane Xavier, a partir de 1994.

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