quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Discurso de paraninfo - Paulo Faria

Incluo aqui o texto do discurso de paraninfo proferido por meu querido amigo e colega Paulo Faria na formatura dos cursos do IFCH da Universidade Fedaral do Rio Grande do Sul, em janeiro de 2010. Muitas pessoas me pedem para lê-lo, e o melhor caminho que conheço para divulgá-lo é este blog, dedicado às reflexões filosóficas. As minhas, pálidas e eventuais, e outras como esta, onde brilha a clareza da mente e a autenticidade da experiência de vida e de magistério do Faria.
 (Tomei a liberdade de acrescentar uns subtítulos)
Paulo Faria



Magnífico Reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Prof. Carlos Alexandre Netto;
Ilma. Sra. Vice-Diretora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Profa. Sílvia Altmann;
Professores e funcionários homenageados;
Demais autoridades presentes;
Formandos dos Cursos de Graduação (Licenciatura e Filosofia) em Filosofia;
Formandos dos Cursos de Graduação em Ciências Sociais;
Senhoras e Senhores.

No ano 399 antes de Cristo, provavelmente nos primeiros dias do mês de Targélion (vale dizer, aí por meados de maio no calendário gregoriano), um tribunal ateniense condenou à morte, por maioria de votos dos mais de quinhentos membros do júri popular que o integrava, um homem que alegava – como ele teria dito em sua defesa – não ter feito outra coisa de sua vida que ‘submeter a exame’ a si mesmo e aos outros (em discussões travadas em toda sorte de ocasiões, privadas e públicas; nas ruas de Atenas; não raro, na praça do mercado), na convicção de que ‘uma vida não examinada não vale a pena de ser vivida’.
Dois mil quatrocentos e oito anos depois, os formandos do Curso de Graduação em Filosofia honram com o convite para estar aqui nesta tarde como seu paraninfo um homem que, ao tomar a decisão de dedicar sua vida à filosofia, não correu outro risco, até onde alcança perceber, que o de resignar-se à comparativa modéstia de um salário de professor universitário ­– com estabilidade no emprego, aposentadoria assegurada e essa dádiva inestimável: a liberdade de cátedra.
Esta tarde é uma ocasião muito feliz para mim, e por nada neste mundo eu gostaria de diminuir a alegria da celebração que nos reúne fazendo uso da palavra para evocar assuntos penosos.
Mas por nada neste mundo, tampouco, eu me permitiria diminuir a dignidade desta ocasião falando sobre outra coisa que aquilo que mais me importa como indivíduo, como educador, como membro desta comunidade acadêmica, como cidadão do meu país. Eu me refiro ao dever de perseverar sem falta nessa tarefa que há 2.408 anos valeu a Sócrates a condenação à morte – e a tantos outros, antes e depois, a perseguição e o exílio, o desamparo e a solidão.
Eu tive a sorte de chegar à filosofia numa época em que se iniciava a reconquista da democracia e a reconstrução de uma universidade livre; de ter sido aluno da primeira turma do Programa de Pós-Graduação em Filosofia que se criou nesta Universidade após a reintegração, pela Anistia, dos professores que dela haviam sido expulsos pela ditadura militar. E se eu evoco esses privilégios é, em primeiro lugar, para lembrar que está próxima de nós, no exemplo vivo de homens que temos a felicidade de ter ainda entre nós, como João Carlos Brum Torres e Gabriel de Britto Velho, a advertência de que a fidelidade à filosofia – a disposição de dar testemunho, por palavras e ações, do reconhecimento de que uma vida não examinada não é vida digna da nossa humanidade – não deixou nunca de comportar sua margem de risco; em segundo lugar, que essa margem é sumamente variável, mas só poderia ser inteiramente eliminada ao preço da mais aviltante torpeza que, como filósofos, poderíamos cometer: a traição à filosofia. Enfim, e em terceiro lugar, é para lembrar que, antes de chegar a essa indignidade, é preciso já ter começado a perder – como somos todos (os filósofos nem mais nem menos que quaisquer outros seres humanos) capazes de perder, um pouco a cada dia se disso não cuidarmos, como quem cuida de uma planta frágil e única – o que temos de melhor em cada um de nós: a capacidade de sentir, e de expressar, gratidão.
O privilégio de cultivar a filosofia numa universidade livre – numa universidade que foi preciso reconstruir pedra por pedra depois da devastação infligida pela barbárie; e seguir mantendo viva, ao longo já de três décadas, contra vento e maré, antes que pudéssemos chegar a este dia de festa; o privilégio de poder escolher fazer da filosofia um ofício, num país em que (mesmo se quase tudo ainda resta por fazer) já não se pode ser preso por delito de opinião, nós o devemos, inteiro, aos que nos precederam. E se eu evoco, neste dia de festa, a história das relações difíceis da filosofia com o seu tempo – emblematizada nessa narrativa inaugural da tradição de que somos herdeiros: o relato, por Platão, do julgamento de Sócrates – é porque nenhuma palavra poderia expressar de maneira mais direta, exata e justa a atitude da qual depende inteiramente que sejamos capazes de manter acesa a chama da filosofia (onde quer que a vida nos conduza) que a palavra ‘gratidão’.
Essa palavra não pertence ao vocabulário técnico da filosofia. Mas tampouco pertence a algum vocabulário técnico qualquer das palavras pelas quais, a cada vez, e renovadamente, a filosofia começa e volta a começar: ‘verdade’, ‘justiça’, ‘tempo’, ‘coisa’, ‘causa’, ‘um’, ‘muitos’, ‘tudo’, ‘algum’, ‘eu’, ‘nós’, ‘o mesmo’, ‘outro’, ‘pensar’, ‘sentir’, ‘querer’, ‘saber’, ‘acreditar’. Nossas palavras não nos pertencem; pertencem a todo mundo. E era na linguagem dos homens comuns, com as palavras da vida comum, que Sócrates interrogava seus contemporâneos.
Ele não sabia nada; não tinha nenhuma doutrina a ensinar, nenhuma novidade a transmitir, nenhum segredo a guardar. Na melhor das hipóteses, ele buscava a sabedoria – isso era tudo o que significava a palavra ‘filósofo’; isso é ainda, feitas todas as contas, o que ela pode significar. Toda sua arte consistia em interrogar a si mesmo e aos outros, perguntando se sabiam o que estavam dizendo e fazendo, se eram capazes de justificar (para si mesmos, em primeiro lugar) o modo como vinham conduzindo suas vidas.
E se isso lhe trouxe a animosidade de tantos (dos Ânitos e dos Meletos que o acusariam perante o tribunal), a atividade de Sócrates também foi motivo de escárnio para tantos a quem não parecia atividade própria de quem teria coisa mais séria a fazer, como homem e cidadão: basta lembrar o discurso de Cálicles no Górgias – evocado não faz muito tempo, por ocasião de outra formatura, por nosso mestre João Carlos Brum Torres.
Na opinião de Cálicles, a filosofia estava muito bem (ao lado da gramática e da retórica, da geometria e da música) no elenco das disciplinas em que deviam ser exercitados os jovens que se preparavam para a vida pública na Cidade. Mas quando, chegado à idade adulta, um homem teimava, como Sócrates, em ocupar todo seu tempo discutindo filosofia com adolescentes, esse homem não podia ser levado a sério – e de fato precisava, no juízo de Cálicles, de uma boa surra.
Nisso Sócrates se mostrava, mais uma vez, um paradigma da filosofia. Não contam de Tales que, meditando sobre alguma questão de alta indagação, caiu num poço, pois não enxergava o que tinha diante do nariz e sob os pés? E uma criada trácia, testemunha do infausto acontecimento, teria rido muito dele.
Mas, observa Platão, a quem devemos o relato, ‘o mesmo escárnio aplica-se, com propriedade, a todos os que se dedicam à filosofia’. E o usualmente sisudo professor Martin Heidegger, comentando essa passagem de Platão, define: filosofia é ‘aquele pensar com o qual, essencialmente, nada se pode começar, e do qual as criadas necessariamente se riem’. E ainda acrescenta: ‘E uma boa criada deve ter sempre algo de que se possa rir’.
            Estamos em terreno familiar. Quem de nós, meus afilhados, nunca experimentou o sentimento de que, ao menos de vez em quando, era preciso rir da filosofia? Quando perguntávamos se o tempo era real sem deixar por isso de marcar a hora no relógio, não parecíamos estar entregues a uma brincadeira, fazendo de conta que perguntávamos, como uma criança que luta bravamente contra os invasores extraterrestres sem deixar de saber, o tempo todo – porque está brincando e não alucinando – que os monstros que combate são outras crianças do prédio, e o deserto vermelho de Marte é a caixa de areia no ‘playground’ do condomínio? Não merecemos a censura de Cálicles? Os que perseveramos na filosofia, não somos apenas crianças grandes?
A resposta é: não. Pois, se não deixamos de confiar em nossos relógios e calendários enquanto perguntávamos pela realidade do tempo, não foi porque estivéssemos brincando de perguntar; foi, bem ao contrário, cientes de que uma resposta possível àquela pergunta importaria, se devêssemos finalmente aceitá-la, em uma reinterpretação radical de tudo o que vínhamos fazendo ao consultar relógios e calendários, contar as horas e assinalar datas e prazos – como a Revolução Copernicana na astronomia importou em uma reinterpretação radical, com a qual até hoje não terminamos de nos acostumar, do que estávamos pensando e dizendo ao usar (por exemplo) – como continuamos a usar, 500 anos depois – expressões como ‘o nascer do sol’ ou ‘o por do sol’.
Estamos no terreno familiar em que transcorreram nossos encontros em sala de     aula. Nunca falamos senão do que nos era mais próximo: do que, à força de estar o tempo todo diante de nossos olhos, tendia a passar despercebido. “Nossos problemas não são abstratos, mas talvez os mais concretos que há”, notava Wittgenstein nas páginas abstrusas do Tractatus Logico-Philosophicus.
O que foi, num breve olhar retrospectivo, um curso de graduação em filosofia?

 A lógica

Pela lição de lógica começamos – pelo que significa dizer, de um pensamento, que é verdadeiro ou falso, e pelo que a verdade ou falsidade de um pensamento pode ter a ver com a verdade ou falsidade de outros pensamentos.
A primeira lição que aprendemos foi, como todas a que se seguiriam, uma lição de humildade: uma lição a ser lembrada a cada dia como um corretivo à arrogância e à precipitação a que somos todos, e muito facilmente, tentados a sucumbir: a verdade ou falsidade dos nossos pensamentos depende inteiramente de como as coisas sejam; mas como as coisas são é, o mais das vezes, inteiramente independente de como pensamos, ou queremos, ou esperamos que sejam, ou gostaríamos, ou mesmo precisaríamos, que fossem. Aprendemos assim a reconhecer, como condição da racionalidade (da capacidade de dar e pedir razões, para os outros e para si mesmo), a distinção entre o que é verdadeiro e o que pensamos (ou preferimos ou desejamos) que o seja. O mundo não nos pertence; tampouco nos pertence, em conseqüência, a verdade.
            E descobrimos assim a diferença entre algo ser tido por verdadeiro e ser verdadeiro. Ainda que todos os antigos, do mais humilde dos servos ao maior dos filósofos, da criada trácia que riu de Tales a Aristóteles, tenham universalmente concordado que a Terra era o centro imóvel do universo, em torno do qual giravam o sol e as outras estrelas; e tivessem pilhas de razões para pensar assim (pois isso concordava com todos os fatos da experiência comum e científica), e nenhuma razão para pensar outra coisa (pois ninguém atinara com alguma razão para supor, por exemplo, que a Terra girava em torno do sol); nem por isso era verdade o que pensavam. Se eu dissesse que para os antigos era verdade que o Sol girava ao redor da Terra, tudo que estaria dizendo era, na melhor das hipóteses, que isso era o que eles pensavam.[1] Mesmo assim, era falso. A verdade não é “para” os antigos nem “para” os modernos”, nem “para” os colonizadores nem “para” os colonizados, nem “para” os europeus nem “para” os Nhambiquara, porque a verdade não é “para” ninguém – a ninguém pertence.
E foi assim que nos reconhecemos guardiões da objetividade da verdade, e missionários dessa divisa que é o imperativo de olhar para fora de si, para além dos próprios desejos, interesses e necessidades, e abrir-se ao mundo e aos outros, e à aventura que é a vida do espírito, a descoberta do mundo.
Mas, para embarcar nessa aventura, muito antes de poder-se estar de acordo, ou em desacordo, com os outros, é preciso poder estar de acordo consigo mesmo. Se um filósofo, suponhamos, de Éfeso, sustentasse que cada coisa, a todo tempo, é a mesma e no entanto não é a mesma, a primeira pergunta a fazer não é se estamos ou podemos estar de acordo com o homem de Éfeso, mas se esse homem está de acordo consigo mesmo: se ele sabe (e, portanto, é capaz de explicar) o que está dizendo.

A metafísica

Mas, ao investigar assim a estrutura do pensamento, e dos modos como a verdade de um pensamento afeta a verdade ou a falsidade de outros pensamentos (ao fazer lógica), descobrimos que a possibilidade do acordo ou do desacordo dos pensamentos – de quaisquer pensamentos – com a realidade implica em restrições sobre como o modo como as coisas, como quer que afinal sejam, devem ser (sobre como elas não podem não ser): e assim é que embarcamos na mais audaciosa de nossas aventuras, a metafísica. Mas a metafísica não era outra coisa que o esforço obstinado de enxergar claramente o mundo, e nosso lugar nele. Nossos problemas não são abstratos, são os mais concretos.

A epistemologia

A próxima, a lição de epistemologia: uma coisa é ter a opinião verdadeira sobre o caminho que leva a Larissa, outra é conhecer o caminho de Larissa. Se eu passasse por um relógio quebrado cujo mostrador indicava, talvez há muitos dias, semanas ou meses, as 3 da tarde, e se acontecesse de eu estar passando por aí exatamente às 3 da tarde, e à vista do relógio, viesse a pensar ‘Então são 3 da tarde’, nem por isso saberia que horas eram. A verdade de minha crença era mera sorte, dádiva do destino, coincidência feliz.
É por isso que perguntamos “Por que você acredita nisso?” – mas, se a outra pessoa alega saber, o que perguntamos não é ‘por que’ mas ‘como’: “Como você sabe?” E essa pergunta exorta o ouvinte a desincumbir-se do ônus de dar razões: o ônus de um animal racional.
E isso importa em exibir as credenciais de nossa pretensão de saber: a correção de nossos raciocínios, a confiabilidade (conforme o caso) de nossos experimentos, percepções e memórias, e do testemunho dos outros. (E, com o testemunho dos outros, tomamos a medida da confiança sem a qual nenhum conhecimento pode ser adquirido. A maior e melhor parte do que sabemos, é a outros que a devemos.) Se não estivermos autorizados a confiar, tampouco estaremos autorizados a dizer que sabemos: no melhor dos casos, teremos – como o homem que consultara um relógio parado – uma opinião verdadeira.
E assim como podemos ser chamados, e cedo ou tarde somos, se vivemos como homens e entre os homens, a justificar nossas opiniões – e justificar a opinião de que as coisas são assim ou assim é dar razões, razões que outros podem fazer suas, para pensar que as coisas são realmente assim; em outras palavras: que isso não é mera opinião – do mesmo modo podemos ser chamados (e cedo ou tarde somos, se vivemos como homens e entre os homens) a justificar nossas ações, o modo como vivemos nossas vidas.

A ética

E assim chegamos à lição de ética: a mais difícil, não porque nos custe entendê-la, mas pelo que nos custa viver de acordo com essa lição.  
Pois aqui está a primeira e – feitas todas as contas, e recontados todos os deves e haveres no labirinto dos argumentos – também a última lição da ética filosófica: que há uma diferença objetiva, que também não nos pertence, que também não depende de nós, que não é convenção, costume, imposição da lei ou da polícia ou força do hábito; que pode afrontar, e não raro afronta, o costume, a lei, a polícia e o hábito; e que mesmo assim não precisa ser o comando de alguma divindade (pois não precisa estar além do horizonte da vida humana): a diferença, pela qual Sócrates deu a vida, entre o que preferimos, ou estamos inclinados, ou desejamos, ou nos é conveniente ou vantajoso fazer, e o que é, pura e simplesmente, a coisa certa a fazer.
A lição mais difícil, eu disse. Um lance d’olhos ao panorama conturbado desta primeira década do terceiro milênio é suficiente para dar a medida da dificuldade.
Pensem, por exemplo, no conflito – em que está enredada a meritória e benfazeja ação da Organização das Nações Unidas, e de tantos outros organismos internacionais – entre, por um lado, essa idéia, que herdamos da Revolução Francesa, e do longo trabalho de crítica radical dos fundamentos das instituições políticas e sociais que é o legado permanente da filosofia política moderna à humanidade: a idéia de direitos universais do homem e do cidadão (para abreviar, a idéia de direitos humanos, direitos que cada homem tem pelo simples fato da sua humanidade, sem distinção de nacionalidade, classe, credo, cor, ocupação, gênero, orientação sexual) e por outro lado esta outra idéia, que herdamos de outra crítica radical, a da etnografia do século passado, à arrogância do olhar lançado pelos colonizadores sobre os colonizados, e nomeadamente pela cultura conquistadora, européia, branca e em larga medida ainda patriarcal, sobre as instituições, práticas, valores, e formas de vida do que convenientemente se costumava chamar as “sociedades primitivas”. Essa crítica radical deu origem a um ideal, concorrente com o dos direitos humanos, fundado na idéia do valor igual, e da igual dignidade, das diferentes culturas e formas de vida. Para abreviar, eu vou chamá-lo o ideal multiculturalista.
Pois bem, os esforços de tantos devotados servidores da humanidade que dedicaram suas vidas e seus talentos a promover o direito das gentes e a lançar as bases de uma ordem jurídica internacional não lograram contornar o fato que (se não tivéssemos tido advertências suficientes desde muito antes) foi exposto a céu aberto, na forma uma catástrofe sem precedentes da qual tantos de nós guardam a mais viva e penosa lembrança, nos acontecimentos de 11 de setembro de 2001: aqueles dois ideais – direitos humanos e multiculturalismo – não são inteiramente compatíveis, e aqui temos um problema em que ainda não pensamos suficientemente.

 Conflito entre os direitos humanos e o multiculturalismo

Para não deixar dúvidas: eu estou dizendo que há um conflito entre o postulado de que todos os homens têm igual valor e dignidade, e o postulado de que todas as culturas e tradições nacionais e religiosas têm igual valor e dignidade – pois o segundo é seguidamente um obstáculo à consecução do primeiro; e que começamos a reconhecê-lo ao abrir os olhos para o fato elementar de que as culturas e tradições nacionais e religiosas distinguem-se, entre outras coisas, pelo critério de que algumas fizeram seu o ideal da igualdade universal dos seres humanos, enquanto outras continuam a repudiá-lo ativamente, por palavras e pensamentos, atos e omissões cuja atrocidade nenhuma racionalização alcança mitigar.
Reencontramos aqui, na forma de um conflito moral, a distinção mais fundamental de que nos fizéramos guardiões: a distinção entre o que não os pertence, por pertencer a todos e a ninguém em particular, e o ponto de vista, a perspectiva, o que é verdade “para” os gregos e o que é verdade “para” os troianos. Quando o repúdio à mutilação genital feminina ritualmente praticada e sancionada por culturas tradicionais africanas e (lamento dizê-lo) por certas correntes do islamismo deve enfrentar a objeção de que, afinal, trata-se de outra cultura, cujas valores devem ser respeitados, todo homem ou mulher que não tenha sido embrutecido pela indiferença com que nos acostumamos a responder à banalização da violência e da injustiça, deveria poder reconhecer aí um limite que não estamos autorizados a transpor – e, na racionalização relativista, que inspira o multiculturalismo, uma imoralidade objetiva.
Esse impasse, eu disse, é o da ONU, e de muitas organizações dedicadas à melhoria das condições de vida e saúde, trabalho e habitação, ao combate à pobreza e à fome, ao saneamento básico, à prevenção e controle de epidemias, à escolarização e à promoção da cidadania em tantas partes do mundo. E esse impasse só vai se resolver quando for conquistada, e compartilhada, a consciência de que ainda não temos, e continuaremos a não ter, direitos universais do homem e do cidadão enquanto tolerarmos que prevaleça sobre eles a ideologia relativista que paralisa a ação humanitária e civilizatória dos organismos internacionais. Esse anúncio incômodo, toca ainda uma vez aos filósofos fazê-lo; nem é de esperar que muitos se encarreguem de fazê-lo por nós.
Para a maioria dos que estamos reunidos aqui nesta tarde de festa, este é um tópico do noticiário internacional, de ínfima (se é que de alguma) consequência para o modo como conduzimos cotidianamente nossas vidas.
Para nós, o direito à vida e à liberdade, à educação e à saúde, são direitos de todo ser humano, e é preciso fazer um esforço de imaginação para compreender um argumento que parece estar dizendo: ‘Pobre canibal, ainda não comeu carne humana hoje!’
O tratamento aos animais
Não comemos carne humana; estamos muito longe da humanidade que o fazia sem culpa ou desgosto. Mas detenhamo-nos, um instante que seja, a considerar o tratamento que dispensamos aos outros animais.
 Se parássemos para pensar, se por instante observássemos a exortação a olhar para fora de nós e contemplar como as coisas são, deveria ser óbvio para todo mundo que há algo gravemente errado nas relações entre os seres humanos e os animais de cuja vida e morte depende a nossa dieta cotidiana; e, que nos últimos 150 anos, o que havia de errado adquiriu uma escala descomunal, à medida que as técnicas de criação de gado e outros animais destinados ao consumo humano deram lugar a uma indústria, e a métodos industriais de produção.
Há outras maneiras em que nossas atitudes para com outros animais são insuficientemente justificadas, ou simplesmente carentes de justificação racional (por exemplo, o comércio de peles; a experimentação com animais em laboratórios); mas a indústria de alimentos da nossa época, com seus métodos de criação e abate de seres vivos a que é infligida uma vida de tormentos ininterruptos para geração do que chamamos eufemisticamente ‘produtos animais’, suplanta todas as outras no número de vidas individuais que afeta.
Diante desses fatos, que não desconhecemos inteiramente, escolhemos a duplicidade: sabemos, mas preferimos não pensar nisso. Como escreveu, em meados do século XIX, o filósofo norteamericano Ralph Waldo Emerson, somos ciosos de que nossas mesas fiquem bem longe dos abatedouros. E, não contentes em levar a vida fingindo, por conveniência e auto-complacência, ignorar o que sabemos, à duplicidade acrescentamos o engodo, quando nos empenhamos ativamente em esconder das crianças como chegou até a mesa o prato que lhes servimos. Pois crianças não foram ainda embrutecidas pela indiferença e a impostura publicitária: os franguinhos felizes que alegremente se transformam, sem dor, em suculentos nuggets; a vaquinha sorridente que nos entrega sem desconforto a dádiva do seu leite. Como observou o escritor sul-africano John Maxwell Coetzee, cujo argumento venho parafraseando, bastaria uma visita a um matadouro para converter uma criança num vegetariano pelo resto da vida.
Filósofos não são pregadores: nem lhes toca dizer aos outros como devem conduzir suas vidas. Neste caso, como em outros, toca-lhes, em troca, perguntar: aqui, especificamente, toca-lhes reiterar, enquanto não for respondida, a pergunta do neoplatônico Porfírio, no terceiro século da era cristã, em seu tratado Sobre a abstinência de comida animal: se somos capazes de justificar (para nós mesmos, em primeiro lugar) o modo como tratamos outros animais; de onde tiramos, e com que direito, a convicção de que a natureza, e os outros animais, existem para serem usados pelos homens; por fim, como explicamos a duplicidade em que vivemos, todos os que, por um lado, amamos e cuidamos dos bichos com que escolhemos viver, a que damos nomes e tratamos como uma extensão da própria família, e por outro conseguimos manter a impávida indiferença que só preservamos à força de não pensar nas vidas atrozes e no sofrimento sem fim que infligimos a tantos milhões de seres vivos.

Mas não só os outros animais, a natureza não nos pertence. 

Ainda não examinamos seriamente os argumentos pelos quais pessoas de boa-vontade nos têm exortado a preservar o mundo natural da destruição imposta pela ação humana, e perguntar se são bons argumentos. Pois, se não estou enganado, o mais comum, e compreensivelmente o mais eficaz, desses argumentos é um apelo à sobrevivência da espécie humana: se não soubermos deter o aquecimento global, e a escalada de calamidades naturais (da fusão das calotas polares à desertificação das porções de terra que não submergirem no novo dilúvio que viemos preparando), não haverá mais humanidade. Que esse seja um poderoso e sensato argumento, que pode e deve ser repetido até ser escutado, está fora de dúvida. Que seja o mais importante é menos certo. Pois talvez a pergunta mais importante seja a que nunca fazemos: a pergunta sobre o direito que nos arrogamos de tratar a natureza como um entreposto para a conveniência humana. 

A estética             

 Ainda havia uma lição de estética, em que, mesmo aí, tocava ao filósofo assinalar, contra a complacência de cada um de nós, a diferença entre o prazer que um objeto ou acontecimento nos propicia e seu valor intrínseco. 

 ‘Minha vida, nossas vidas'

Mas essa última aula de graduação em Filosofia já se alongou, como tantas que tivemos, além do horário, e é hora trazê-la à conclusão assinalando que, ao pensar e trabalhar sobre esses, e tantos outros, problemas, tudo o que estivemos fazendo, o tempo todo, foi atender ao apelo a examinar o que nos era mais próximo; a recordar detidamente, e avaliar com paciência e sem prevenção, o que vínhamos fazendo de nossas vidas.
E é assim que, como Sócrates, não fizemos outra coisa que examinar a vida que vínhamos vivendo. Não a minha, a de cada um de vocês, não cada vida na primeira pessoa do singular: ‘Minha vida, nossas vidas / formam um só diamante’, escreveu Carlos Drummond de Andrade. Ou, em palavras que eu não me atrevo a macular traduzindo-as sem arte, o grande poeta mexicano Octavio Paz: ‘para que pueda ser he de ser outro, / salir de mí, buscarme entre los otros, / los otros que no son si yo no existo, / los otros que me dan plena existencia’
E em cada caso, o que poderia parecer mais íntimo, mais pessoal – o conhecimento de si, que o oráculo de Delos exortara Sócrates a perseguir – era em verdade o patrimônio comum, compartilhado por todos: era o que nos fazia participar de uma mesma humanidade.
            Esse conhecimento não é inocente. Há dois mil quatrocentos e oito anos, Sócrates foi condenado à morte, acusado de corromper a juventude ateniense e não reconhecer os deuses da cidade. Mas se esse evento é simbólico da relação incômoda da filosofia com seu tempo, não foi o primeiro nem o último. A condenação de Sócrates foi precedida pela perseguição e exílio de Anaxágoras; e, ao longo da história da filosofia, seria reiterada de muitas formas: na perseguição e exílio de Santo Anselmo; na excomunhão e no isolamento de Espinosa; no encarceramento de Bertrand Russell pelo governo britânico, por desobediência civil em objeção de consciência à Primeira Guerra Mundial, e no processo judicial que, vinte anos depois, lhe moveria a Municipalidade de Nova York para impedir a investidura, como professor da universidade pública daquela cidade, de um homem acusado, como Sócrates, de corromper a juventude.
E é assim que chegamos, como sempre incumbe à filosofia chegar, de volta à casa: a este Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, outrora Faculdade de Filosofia, que foi preciso reconstruir dos escombros a que o reduzira a brutalidade da ditadura; e, nomeadamente, aos oito professores do Departamento de Filosofia que, entre setembro de 1964 e outubro de 1969, foram expulsos da Universidade, ou dela se desligaram espontaneamente em solidariedade aos colegas perseguidos.

A universidade pública

Se eu evoco a lembrança desses homens de bem, muitos dos quais viriam a ser, vinte anos mais tarde, os mestres da minha geração de estudantes de filosofia, é para assinalar, no exemplo de integridade, de retidão moral que é o legado de cada um deles a todos nós, a fidelidade ao chamado da filosofia. Para eles, o nosso ofício não era apenas uma profissão – eles preferiram arriscar ganhar seu pão de outra forma, ou mesmo serem dele privados, a traírem a filosofia.
Pensem neles com gratidão. Fazer-se um guardião da objetividade – o dever supremo para nós (“nós, cuja tarefa é precisamente a vigília”, como escreveu Nietzsche) – abrir-se para o mundo e para os outros, é reconhecer-se devedor.
E guardem em seus corações que foi numa universidade pública que estudaram:  uma universidade mantida pelo Estado de um país em que a imensa maioria está privada das coisas mais elementares, as mais simples: as coisas que mantêm um homem vivo. E, também, uma universidade em que a chama é mantida acesa pelo esforço pessoal dos que a ela se dedicam – não raro, nas condições mais adversas.
É preciso ganhar sua vida: ganhá-la por inteiro e não pela metade. Eu desejo a cada um vocês, meus afilhados, uma vida plena de realizações e satisfação pessoal e profissional.

Profissão e tarefa

Mas, hoje, não é mais como professor que eu lhes falo; é, pela primeira vez, como um colega mais velho. E é por isso que eu me permito concluir invocando essa prerrogativa (ou cacoete) dos mais velhos que é aconselhar, para exortá-los (e a isso, finalmente, se resume tudo o que eu queria dizer esta tarde) a não perderem nunca de vista que, muito antes de se haver tornado uma profissão na qual podemos ganhar nossas vidas (pelo menos enquanto nos é permitido praticá-la; e que nos seja permitido praticá-la não é o menor dos motivos que temos de gratidão), muito antes de se converter na profissão de professor ou pesquisador remunerado, a filosofia foi, e essencialmente continua sendo, uma tarefa – e que, no cumprimento dessa tarefa, somos guardiões de uma dádiva que não nos pertence, que fomos chamados a preservar e transmitir aos que, por sua vez, nos seguirão.
Guardem pela vida afora essa lembrança; honrem o ofício a que escolherem dedicar seus talentos; e sejam felizes.

Porto Alegre, 16 de janeiro de 2010


[1] Erratum. Na versão que durante dois anos e meio, circulou deste escrito, eu escrevera (ato-falho pós copernicano) 'Terra' onde, agora, se lê 'Sol' ; e ninguém, a começar (é claro) por mim , nunca tinha dado por isso. Devo à atenção e à solicitude de Rejane Xavier a advertência (antes tarde do que nunca!) e a correção.

Nenhum comentário: