(Tomei a liberdade de acrescentar uns subtítulos)
Paulo Faria |
Magnífico Reitor da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Prof. Carlos Alexandre Netto;
Ilma. Sra. Vice-Diretora
do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Profa. Sílvia Altmann;
Professores e
funcionários homenageados;
Demais autoridades
presentes;
Formandos dos Cursos de
Graduação (Licenciatura e Filosofia) em Filosofia;
Formandos dos Cursos de Graduação
em Ciências Sociais;
Senhoras e Senhores.
No ano 399 antes de Cristo, provavelmente nos primeiros dias do mês de
Targélion (vale dizer, aí por meados de maio no calendário gregoriano), um
tribunal ateniense condenou à morte, por maioria de votos dos mais de
quinhentos membros do júri popular que o integrava, um homem que alegava – como
ele teria dito em sua defesa – não ter feito outra coisa de sua vida que
‘submeter a exame’ a si mesmo e aos outros (em discussões travadas em toda
sorte de ocasiões, privadas e públicas; nas ruas de Atenas; não raro, na praça
do mercado), na convicção de que ‘uma vida não examinada não vale a pena de ser
vivida’.
Dois mil quatrocentos e oito
anos depois, os formandos do Curso de Graduação em Filosofia honram com o convite
para estar aqui nesta tarde como seu paraninfo um homem que, ao tomar a decisão
de dedicar sua vida à filosofia, não correu outro risco, até onde alcança
perceber, que o de resignar-se à comparativa modéstia de um salário de
professor universitário – com estabilidade no emprego, aposentadoria
assegurada e essa dádiva inestimável: a liberdade de cátedra.
Esta tarde é uma ocasião muito feliz para mim, e por nada neste mundo eu
gostaria de diminuir a alegria da celebração que nos reúne fazendo uso da
palavra para evocar assuntos penosos.
Mas por nada neste mundo, tampouco, eu me permitiria diminuir a dignidade
desta ocasião falando sobre outra coisa que aquilo que mais me importa como
indivíduo, como educador, como membro desta comunidade acadêmica, como cidadão
do meu país. Eu me refiro ao dever de perseverar sem falta nessa tarefa que há
2.408 anos valeu a Sócrates a condenação à morte – e a tantos outros, antes e
depois, a perseguição e o exílio, o desamparo e a solidão.
Eu tive a sorte de chegar à filosofia numa época em que se iniciava a
reconquista da democracia e a reconstrução de uma universidade livre; de ter
sido aluno da primeira turma do Programa de Pós-Graduação em Filosofia que se
criou nesta Universidade após a reintegração, pela Anistia, dos professores que
dela haviam sido expulsos pela ditadura militar. E se eu evoco esses
privilégios é, em primeiro lugar, para lembrar que está próxima de nós, no
exemplo vivo de homens que temos a felicidade de ter ainda entre nós, como João
Carlos Brum Torres e Gabriel de Britto Velho, a advertência de que a fidelidade
à filosofia – a disposição de dar testemunho, por palavras e ações, do
reconhecimento de que uma vida não examinada não é vida digna da nossa
humanidade – não deixou nunca de comportar sua margem de risco; em segundo
lugar, que essa margem é sumamente variável, mas só poderia ser inteiramente
eliminada ao preço da mais aviltante torpeza que, como filósofos, poderíamos
cometer: a traição à filosofia. Enfim, e em terceiro lugar, é para lembrar que,
antes de chegar a essa indignidade, é preciso já ter começado a perder – como
somos todos (os filósofos nem mais nem menos que quaisquer outros seres
humanos) capazes de perder, um pouco a cada dia se disso não cuidarmos, como
quem cuida de uma planta frágil e única – o que temos de melhor em cada um de
nós: a capacidade de sentir, e de expressar, gratidão.
O privilégio de cultivar a filosofia numa universidade livre – numa
universidade que foi preciso reconstruir pedra por pedra depois da devastação
infligida pela barbárie; e seguir mantendo viva, ao longo já de três décadas,
contra vento e maré, antes que pudéssemos chegar a este dia de festa; o privilégio
de poder escolher fazer da filosofia um ofício, num país em que (mesmo se quase
tudo ainda resta por fazer) já não se pode ser preso por delito de opinião, nós
o devemos, inteiro, aos que nos precederam. E se eu evoco, neste dia de festa,
a história das relações difíceis da filosofia com o seu tempo – emblematizada
nessa narrativa inaugural da tradição de que somos herdeiros: o relato, por
Platão, do julgamento de Sócrates – é porque nenhuma palavra poderia expressar
de maneira mais direta, exata e justa a atitude da qual depende inteiramente
que sejamos capazes de manter acesa a chama da filosofia (onde quer que a vida
nos conduza) que a palavra ‘gratidão’.
Essa palavra não pertence ao vocabulário técnico da filosofia. Mas
tampouco pertence a algum vocabulário técnico qualquer das palavras pelas quais, a cada vez, e renovadamente, a
filosofia começa e volta a começar: ‘verdade’, ‘justiça’, ‘tempo’, ‘coisa’,
‘causa’, ‘um’, ‘muitos’, ‘tudo’, ‘algum’, ‘eu’, ‘nós’, ‘o mesmo’, ‘outro’, ‘pensar’,
‘sentir’, ‘querer’, ‘saber’, ‘acreditar’. Nossas palavras não nos pertencem;
pertencem a todo mundo. E era na linguagem dos homens comuns, com as palavras
da vida comum, que Sócrates interrogava seus contemporâneos.
Ele não sabia nada; não tinha nenhuma doutrina a ensinar, nenhuma
novidade a transmitir, nenhum segredo a guardar. Na melhor das hipóteses, ele
buscava a sabedoria – isso era tudo o que significava a palavra ‘filósofo’;
isso é ainda, feitas todas as contas, o que ela pode significar. Toda sua arte
consistia em interrogar a si mesmo e aos outros, perguntando se sabiam o que estavam
dizendo e fazendo, se eram capazes de justificar (para si mesmos, em primeiro
lugar) o modo como vinham conduzindo suas vidas.
E se isso lhe trouxe
a animosidade de tantos (dos Ânitos e dos Meletos que o acusariam perante o
tribunal), a atividade de Sócrates também foi motivo de escárnio para tantos a
quem não parecia atividade própria de quem teria coisa mais séria a fazer, como
homem e cidadão: basta lembrar o discurso de Cálicles no Górgias – evocado não faz muito tempo, por ocasião de outra
formatura, por nosso mestre João Carlos Brum Torres.
Na opinião de Cálicles,
a filosofia estava muito bem (ao lado da gramática e da retórica, da geometria
e da música) no elenco das disciplinas em que deviam ser exercitados os jovens
que se preparavam para a vida pública na Cidade. Mas quando, chegado à idade
adulta, um homem teimava, como Sócrates, em ocupar todo seu tempo discutindo
filosofia com adolescentes, esse homem não podia ser levado a sério – e de fato
precisava, no juízo de Cálicles, de uma boa surra.
Nisso Sócrates se
mostrava, mais uma vez, um paradigma da filosofia. Não contam de Tales que,
meditando sobre alguma questão de alta indagação, caiu num poço, pois não
enxergava o que tinha diante do nariz e sob os pés? E uma criada trácia,
testemunha do infausto acontecimento, teria rido muito dele.
Mas, observa Platão,
a quem devemos o relato, ‘o mesmo escárnio aplica-se, com propriedade, a todos
os que se dedicam à filosofia’. E o usualmente sisudo professor Martin Heidegger,
comentando essa passagem de Platão, define: filosofia é ‘aquele pensar com o qual,
essencialmente, nada se pode começar, e do qual as criadas necessariamente se
riem’. E ainda acrescenta: ‘E uma boa criada deve ter sempre algo de que se
possa rir’.
Estamos em terreno
familiar. Quem de nós, meus afilhados, nunca experimentou o sentimento de que,
ao menos de vez em quando, era preciso rir da filosofia? Quando perguntávamos
se o tempo era real sem deixar por isso de marcar a hora no relógio, não
parecíamos estar entregues a uma brincadeira, fazendo de conta que perguntávamos, como uma criança que luta
bravamente contra os invasores extraterrestres sem deixar de saber, o tempo
todo – porque está brincando e não alucinando – que os monstros que combate são
outras crianças do prédio, e o deserto vermelho de Marte é a caixa de areia no
‘playground’ do condomínio? Não merecemos a censura de Cálicles? Os que
perseveramos na filosofia, não somos apenas crianças grandes?
A resposta é: não. Pois, se não deixamos de
confiar em nossos relógios e calendários enquanto perguntávamos pela realidade
do tempo, não foi porque estivéssemos brincando de perguntar; foi, bem ao
contrário, cientes de que uma resposta possível àquela pergunta importaria, se
devêssemos finalmente aceitá-la, em uma reinterpretação radical de tudo o que vínhamos fazendo ao consultar
relógios e calendários, contar as horas e assinalar datas e prazos – como a
Revolução Copernicana na astronomia importou em uma reinterpretação radical,
com a qual até hoje não terminamos de nos acostumar, do que estávamos pensando e
dizendo ao usar (por exemplo) – como continuamos a usar, 500 anos depois –
expressões como ‘o nascer do sol’ ou ‘o por do sol’.
Estamos no terreno
familiar em que transcorreram nossos encontros em sala de aula. Nunca falamos senão do que nos era
mais próximo: do que, à força de estar o tempo todo diante de nossos olhos,
tendia a passar despercebido. “Nossos problemas não são abstratos, mas talvez
os mais concretos que há”, notava Wittgenstein nas páginas abstrusas do Tractatus Logico-Philosophicus.
O que foi, num breve
olhar retrospectivo, um curso de graduação em filosofia?
A lógica
Pela lição de lógica começamos – pelo que significa
dizer, de um pensamento, que é verdadeiro ou falso, e pelo que a verdade ou
falsidade de um pensamento pode ter a ver com a verdade ou falsidade de outros pensamentos.
A primeira lição que
aprendemos foi, como todas a que se seguiriam, uma lição de humildade: uma lição a ser lembrada a
cada dia como um corretivo à arrogância e à precipitação a que somos todos, e
muito facilmente, tentados a sucumbir: a verdade ou falsidade dos nossos
pensamentos depende inteiramente de como as coisas sejam; mas como as coisas são é, o mais das vezes, inteiramente independente de como
pensamos, ou queremos, ou esperamos que sejam, ou gostaríamos, ou mesmo
precisaríamos, que fossem. Aprendemos assim a reconhecer, como condição da
racionalidade (da capacidade de dar e pedir razões, para os outros e para si
mesmo), a distinção entre o que é verdadeiro e o que pensamos (ou preferimos ou
desejamos) que o seja. O mundo não nos pertence; tampouco nos pertence, em
conseqüência, a verdade.
E
descobrimos assim a diferença entre algo ser
tido por verdadeiro e ser verdadeiro.
Ainda que todos os antigos, do mais humilde dos servos ao maior dos filósofos,
da criada trácia que riu de Tales a Aristóteles, tenham universalmente
concordado que a Terra era o centro imóvel do universo, em torno do qual giravam
o sol e as outras estrelas; e tivessem pilhas de razões para pensar assim (pois
isso concordava com todos os fatos da experiência comum e científica), e
nenhuma razão para pensar outra coisa (pois ninguém atinara com alguma razão
para supor, por exemplo, que a Terra girava em torno do sol); nem por isso era
verdade o que pensavam. Se eu dissesse que para
os antigos era verdade que o Sol girava ao redor da Terra, tudo que estaria
dizendo era, na melhor das hipóteses, que isso era o que eles pensavam.[1]
Mesmo assim, era falso. A verdade não é “para” os antigos nem “para” os
modernos”, nem “para” os colonizadores nem “para” os colonizados, nem “para” os
europeus nem “para” os Nhambiquara, porque a verdade não é “para” ninguém – a
ninguém pertence.
E foi assim que nos reconhecemos
guardiões da objetividade da verdade, e missionários dessa divisa que é o
imperativo de olhar para fora de si, para além dos próprios desejos, interesses
e necessidades, e abrir-se ao mundo e aos outros, e à aventura que é a vida do
espírito, a descoberta do mundo.
Mas, para embarcar
nessa aventura, muito antes de poder-se estar de acordo, ou em desacordo, com
os outros, é preciso poder estar de acordo consigo mesmo. Se um filósofo,
suponhamos, de Éfeso, sustentasse que cada coisa, a todo tempo, é a mesma e no
entanto não é a mesma, a primeira pergunta a fazer não é se estamos ou podemos
estar de acordo com o homem de Éfeso, mas se esse homem está de acordo consigo
mesmo: se ele sabe (e, portanto, é capaz de explicar) o que está dizendo.
A metafísica
Mas, ao investigar
assim a estrutura do pensamento, e dos modos como a verdade de um pensamento
afeta a verdade ou a falsidade de outros pensamentos (ao fazer lógica), descobrimos
que a possibilidade do acordo ou do
desacordo dos pensamentos – de quaisquer
pensamentos – com a realidade implica em restrições sobre como o modo como as
coisas, como quer que afinal sejam, devem
ser (sobre como elas não podem não ser):
e assim é que embarcamos na mais audaciosa de nossas aventuras, a metafísica. Mas a metafísica não era
outra coisa que o esforço obstinado de enxergar claramente o mundo, e nosso
lugar nele. Nossos problemas não são abstratos, são os mais concretos.
A epistemologia
A próxima, a lição
de epistemologia: uma coisa é ter a
opinião verdadeira sobre o caminho que leva a Larissa, outra é conhecer o caminho de Larissa. Se eu
passasse por um relógio quebrado cujo mostrador indicava, talvez há muitos
dias, semanas ou meses, as 3 da tarde, e se acontecesse de eu estar passando
por aí exatamente às 3 da tarde, e à vista do relógio, viesse a pensar ‘Então
são 3 da tarde’, nem por isso saberia
que horas eram. A verdade de minha crença era mera sorte, dádiva do destino,
coincidência feliz.
É por isso que
perguntamos “Por que você acredita nisso?” – mas, se a outra pessoa alega saber, o que perguntamos não é ‘por que’ mas ‘como’: “Como você sabe?”
E essa pergunta exorta o ouvinte a desincumbir-se do ônus de dar razões: o ônus de um animal
racional.
E isso importa em
exibir as credenciais de nossa pretensão de saber: a correção de nossos
raciocínios, a confiabilidade (conforme o caso) de nossos experimentos, percepções
e memórias, e do testemunho dos outros. (E, com o testemunho dos outros,
tomamos a medida da confiança sem a
qual nenhum conhecimento pode ser adquirido. A maior e melhor parte do que
sabemos, é a outros que a devemos.) Se não estivermos autorizados a confiar,
tampouco estaremos autorizados a dizer que sabemos: no melhor dos casos, teremos
– como o homem que consultara um relógio parado – uma opinião verdadeira.
E assim como podemos
ser chamados, e cedo ou tarde somos, se vivemos como homens e entre os homens,
a justificar nossas opiniões – e justificar a opinião de que as coisas são
assim ou assim é dar razões, razões que outros podem fazer suas, para pensar
que as coisas são realmente assim; em outras palavras: que isso não é mera opinião – do mesmo modo podemos ser
chamados (e cedo ou tarde somos, se vivemos como homens e entre os homens) a justificar
nossas ações, o modo como vivemos nossas vidas.
A ética
E assim chegamos à
lição de ética: a mais difícil, não
porque nos custe entendê-la, mas pelo que nos custa viver de acordo com essa lição.
Pois aqui está a primeira e –
feitas todas as contas, e recontados todos os deves e haveres no labirinto dos
argumentos – também a última lição da ética filosófica: que há uma diferença
objetiva, que também não nos pertence, que também não depende de nós, que não é
convenção, costume, imposição da lei ou da polícia ou força do hábito; que pode
afrontar, e não raro afronta, o costume, a lei, a polícia e o hábito; e que
mesmo assim não precisa ser o comando de alguma divindade (pois não precisa estar
além do horizonte da vida humana): a diferença, pela qual Sócrates deu a vida,
entre o que preferimos, ou estamos inclinados, ou desejamos, ou nos é conveniente
ou vantajoso fazer, e o que é, pura e simplesmente, a coisa certa a fazer.
A lição mais
difícil, eu disse. Um lance d’olhos ao panorama conturbado desta primeira
década do terceiro milênio é suficiente para dar a medida da dificuldade.
Pensem, por exemplo,
no conflito – em que está enredada a meritória e benfazeja ação da Organização
das Nações Unidas, e de tantos outros organismos internacionais – entre, por um lado, essa idéia, que herdamos da
Revolução Francesa, e do longo trabalho de crítica radical dos fundamentos das
instituições políticas e sociais que é o legado permanente da filosofia
política moderna à humanidade: a idéia de direitos universais do homem e do
cidadão (para abreviar, a idéia de direitos
humanos, direitos que cada homem tem
pelo simples fato da sua humanidade, sem distinção de nacionalidade, classe,
credo, cor, ocupação, gênero, orientação sexual) e por outro lado esta outra idéia, que herdamos de outra crítica
radical, a da etnografia do século passado, à arrogância do olhar lançado pelos
colonizadores sobre os colonizados, e nomeadamente pela cultura conquistadora,
européia, branca e em larga medida ainda patriarcal, sobre as instituições,
práticas, valores, e formas de vida do que convenientemente se costumava chamar
as “sociedades primitivas”. Essa crítica radical deu origem a um ideal,
concorrente com o dos direitos humanos, fundado na idéia do valor igual, e da
igual dignidade, das diferentes culturas e formas de vida. Para abreviar, eu
vou chamá-lo o ideal multiculturalista.
Pois bem, os
esforços de tantos devotados servidores da humanidade que dedicaram suas vidas
e seus talentos a promover o direito das gentes e a lançar as bases de uma
ordem jurídica internacional não lograram contornar o fato que (se não tivéssemos
tido advertências suficientes desde muito antes) foi exposto a céu aberto, na
forma uma catástrofe sem precedentes da qual tantos de nós guardam a mais viva
e penosa lembrança, nos acontecimentos de 11 de setembro de 2001: aqueles dois
ideais – direitos humanos e multiculturalismo – não são inteiramente
compatíveis, e aqui temos um problema em que ainda não pensamos
suficientemente.
Conflito entre os direitos humanos e o multiculturalismo
Para não deixar
dúvidas: eu estou dizendo que há um conflito entre o postulado de que todos os
homens têm igual valor e dignidade, e o postulado de que todas as culturas e
tradições nacionais e religiosas têm igual valor e dignidade – pois o segundo é
seguidamente um obstáculo à consecução do primeiro; e que começamos a
reconhecê-lo ao abrir os olhos para o fato elementar de que as culturas e
tradições nacionais e religiosas distinguem-se, entre outras coisas, pelo
critério de que algumas fizeram seu o ideal da igualdade universal dos seres
humanos, enquanto outras continuam a repudiá-lo ativamente, por palavras e
pensamentos, atos e omissões cuja atrocidade nenhuma racionalização alcança mitigar.
Reencontramos aqui,
na forma de um conflito moral, a distinção mais fundamental de que nos
fizéramos guardiões: a distinção entre o que não os pertence, por pertencer a
todos e a ninguém em particular, e o ponto de vista, a perspectiva, o que é
verdade “para” os gregos e o que é verdade “para” os troianos. Quando o repúdio
à mutilação genital feminina ritualmente praticada e sancionada por culturas
tradicionais africanas e (lamento dizê-lo) por certas correntes do islamismo deve
enfrentar a objeção de que, afinal, trata-se de outra cultura, cujas valores devem
ser respeitados, todo homem ou mulher que não tenha sido embrutecido pela
indiferença com que nos acostumamos a responder à banalização da violência e da
injustiça, deveria poder reconhecer aí um limite que não estamos autorizados a
transpor – e, na racionalização relativista, que inspira o multiculturalismo,
uma imoralidade objetiva.
Esse impasse, eu
disse, é o da ONU, e de muitas organizações dedicadas à melhoria das condições
de vida e saúde, trabalho e habitação, ao combate à pobreza e à fome, ao
saneamento básico, à prevenção e controle de epidemias, à escolarização e à
promoção da cidadania em tantas partes do mundo. E esse impasse só vai se
resolver quando for conquistada, e compartilhada, a consciência de que ainda
não temos, e continuaremos a não ter, direitos universais do homem e do cidadão enquanto tolerarmos que prevaleça
sobre eles a ideologia relativista que paralisa a ação humanitária e
civilizatória dos organismos internacionais. Esse anúncio incômodo, toca ainda
uma vez aos filósofos fazê-lo; nem é de esperar que muitos se encarreguem de
fazê-lo por nós.
Para a maioria dos
que estamos reunidos aqui nesta tarde de festa, este é um tópico do noticiário
internacional, de ínfima (se é que de alguma) consequência para o modo como
conduzimos cotidianamente nossas vidas.
Para nós, o direito
à vida e à liberdade, à educação e à saúde, são direitos de todo ser humano, e
é preciso fazer um esforço de imaginação para compreender um argumento que
parece estar dizendo: ‘Pobre canibal, ainda não comeu carne humana hoje!’
O tratamento aos animais
Não comemos carne
humana; estamos muito longe da humanidade que o fazia sem culpa ou desgosto. Mas
detenhamo-nos, um instante que seja, a considerar o tratamento que dispensamos
aos outros animais.
Se parássemos para pensar, se por instante
observássemos a exortação a olhar para fora de nós e contemplar como as coisas
são, deveria ser óbvio para todo mundo que há algo gravemente errado nas
relações entre os seres humanos e os animais de cuja vida e morte depende a
nossa dieta cotidiana; e, que nos últimos 150 anos, o que havia de errado
adquiriu uma escala descomunal, à medida que as técnicas de criação de gado e
outros animais destinados ao consumo humano deram lugar a uma indústria, e a
métodos industriais de produção.
Há outras maneiras
em que nossas atitudes para com outros animais são insuficientemente
justificadas, ou simplesmente carentes de justificação racional (por exemplo, o
comércio de peles; a experimentação com animais em laboratórios); mas a
indústria de alimentos da nossa época, com seus métodos de criação e abate de
seres vivos a que é infligida uma vida de tormentos ininterruptos para geração
do que chamamos eufemisticamente ‘produtos animais’, suplanta todas as outras
no número de vidas individuais que afeta.
Diante desses fatos,
que não desconhecemos inteiramente, escolhemos a duplicidade: sabemos, mas
preferimos não pensar nisso. Como escreveu, em meados do século XIX, o filósofo
norteamericano Ralph Waldo Emerson, somos ciosos de que nossas mesas fiquem bem
longe dos abatedouros. E, não contentes em levar a vida fingindo, por
conveniência e auto-complacência, ignorar o que sabemos, à duplicidade acrescentamos
o engodo, quando nos empenhamos ativamente em esconder das crianças como chegou
até a mesa o prato que lhes servimos. Pois crianças não foram ainda
embrutecidas pela indiferença e a impostura publicitária: os franguinhos
felizes que alegremente se transformam, sem dor, em suculentos nuggets; a
vaquinha sorridente que nos entrega sem desconforto a dádiva do seu leite. Como
observou o escritor sul-africano John Maxwell Coetzee, cujo argumento venho
parafraseando, bastaria uma visita a um matadouro para converter uma criança
num vegetariano pelo resto da vida.
Filósofos não são pregadores:
nem lhes toca dizer aos outros como devem conduzir suas vidas. Neste caso, como
em outros, toca-lhes, em troca, perguntar: aqui, especificamente, toca-lhes reiterar,
enquanto não for respondida, a pergunta do neoplatônico Porfírio, no terceiro
século da era cristã, em seu tratado Sobre
a abstinência de comida animal: se somos capazes de justificar (para nós
mesmos, em primeiro lugar) o modo como tratamos outros animais; de onde
tiramos, e com que direito, a convicção de que a natureza, e os outros animais,
existem para serem usados pelos homens; por fim, como explicamos a duplicidade
em que vivemos, todos os que, por um lado, amamos e cuidamos dos bichos com que
escolhemos viver, a que damos nomes e tratamos como uma extensão da própria
família, e por outro conseguimos manter a impávida indiferença que só preservamos
à força de não pensar nas vidas atrozes e no sofrimento sem fim que infligimos
a tantos milhões de seres vivos.
Mas não só os outros animais, a natureza não nos pertence.
Ainda não examinamos seriamente os
argumentos pelos quais pessoas de boa-vontade nos têm exortado a preservar o
mundo natural da destruição imposta pela ação humana, e perguntar se são bons
argumentos. Pois, se não estou enganado, o mais comum, e compreensivelmente o
mais eficaz, desses argumentos é um apelo à sobrevivência da espécie humana: se
não soubermos deter o aquecimento global, e a escalada de calamidades naturais
(da fusão das calotas polares à desertificação das porções de terra que não
submergirem no novo dilúvio que viemos preparando), não haverá mais humanidade.
Que esse seja um poderoso e sensato argumento, que pode e deve ser repetido até
ser escutado, está fora de dúvida. Que seja o mais importante é menos certo.
Pois talvez a pergunta mais importante seja a que nunca fazemos: a pergunta
sobre o direito que nos arrogamos de tratar a natureza como um entreposto para
a conveniência humana.
A estética
Ainda havia uma lição
de estética, em que, mesmo aí, tocava
ao filósofo assinalar, contra a complacência de cada um de nós, a diferença
entre o prazer que um objeto ou acontecimento nos propicia e seu valor
intrínseco.
‘Minha vida, nossas vidas'
Mas essa última aula de graduação em Filosofia
já se alongou, como tantas que tivemos, além do horário, e é hora trazê-la à
conclusão assinalando que, ao pensar e trabalhar sobre esses, e tantos outros,
problemas, tudo o que estivemos fazendo, o tempo todo, foi atender ao apelo a
examinar o que nos era mais próximo; a recordar
detidamente, e avaliar com paciência e sem prevenção, o que vínhamos fazendo de
nossas vidas.
E é assim que, como
Sócrates, não fizemos outra coisa que examinar a vida que vínhamos vivendo. Não
a minha, a de cada um de vocês, não cada vida na primeira pessoa do singular:
‘Minha vida, nossas vidas / formam um só diamante’, escreveu Carlos Drummond de
Andrade. Ou, em palavras que eu não me atrevo a macular traduzindo-as sem arte,
o grande poeta mexicano Octavio Paz: ‘para que pueda ser he de ser outro, / salir
de mí, buscarme entre los otros, / los otros que no son si yo no existo, / los
otros que me dan plena existencia’
E em cada caso, o
que poderia parecer mais íntimo, mais pessoal – o conhecimento de si, que o
oráculo de Delos exortara Sócrates a perseguir – era em verdade o patrimônio comum,
compartilhado por todos: era o que nos fazia participar de uma mesma
humanidade.
Esse conhecimento não é inocente. Há
dois mil quatrocentos e oito anos, Sócrates foi condenado à morte, acusado de
corromper a juventude ateniense e não reconhecer os deuses da cidade. Mas se
esse evento é simbólico da relação incômoda da filosofia com seu tempo, não foi
o primeiro nem o último. A condenação de Sócrates foi precedida pela
perseguição e exílio de Anaxágoras; e, ao longo da história da filosofia, seria
reiterada de muitas formas: na perseguição e exílio de Santo Anselmo; na
excomunhão e no isolamento de Espinosa; no encarceramento de Bertrand Russell
pelo governo britânico, por desobediência civil em objeção de consciência à Primeira
Guerra Mundial, e no processo judicial que, vinte anos depois, lhe moveria a
Municipalidade de Nova York para impedir a investidura, como professor da
universidade pública daquela cidade, de um homem acusado, como Sócrates, de
corromper a juventude.
E é assim que
chegamos, como sempre incumbe à filosofia chegar, de volta à casa: a este
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, outrora Faculdade de Filosofia, que
foi preciso reconstruir dos escombros a que o reduzira a brutalidade da
ditadura; e, nomeadamente, aos oito professores do Departamento de Filosofia
que, entre setembro de 1964 e outubro de 1969, foram expulsos da Universidade,
ou dela se desligaram espontaneamente em solidariedade aos colegas perseguidos.
A universidade pública
Se eu evoco a lembrança desses homens de bem, muitos dos quais viriam a
ser, vinte anos mais tarde, os mestres da minha geração de estudantes de
filosofia, é para assinalar, no exemplo de integridade, de retidão moral que é
o legado de cada um deles a todos nós, a fidelidade ao chamado da filosofia.
Para eles, o nosso ofício não era apenas uma profissão – eles preferiram
arriscar ganhar seu pão de outra forma, ou mesmo serem dele privados, a traírem
a filosofia.
Pensem neles com gratidão. Fazer-se um guardião da objetividade – o dever
supremo para nós (“nós, cuja tarefa é precisamente a vigília”, como escreveu
Nietzsche) – abrir-se para o mundo e para os outros, é reconhecer-se devedor.
E guardem em seus corações que foi numa universidade pública que
estudaram: uma universidade mantida pelo
Estado de um país em que a imensa maioria está privada das coisas mais
elementares, as mais simples: as coisas que mantêm um homem vivo. E, também,
uma universidade em que a chama é mantida acesa pelo esforço pessoal dos que a
ela se dedicam – não raro, nas condições mais adversas.
É preciso ganhar sua
vida: ganhá-la por inteiro e não pela metade. Eu desejo a cada um vocês, meus
afilhados, uma vida plena de realizações e satisfação pessoal e profissional.
Profissão e tarefa
Mas, hoje, não é mais como professor que eu lhes falo; é, pela primeira
vez, como um colega mais velho. E é por isso que eu me permito concluir
invocando essa prerrogativa (ou cacoete) dos mais velhos que é aconselhar, para
exortá-los (e a isso, finalmente, se resume tudo o que eu queria dizer esta
tarde) a não perderem nunca de
vista que, muito antes de se haver tornado uma profissão na qual podemos ganhar
nossas vidas (pelo menos enquanto nos é permitido praticá-la; e que nos seja
permitido praticá-la não é o menor dos motivos que temos de gratidão), muito
antes de se converter na profissão de professor ou pesquisador remunerado, a
filosofia foi, e essencialmente continua
sendo, uma tarefa – e que, no cumprimento dessa tarefa, somos guardiões de
uma dádiva que não nos pertence, que fomos chamados a preservar e transmitir
aos que, por sua vez, nos seguirão.
Guardem pela vida afora essa lembrança; honrem o ofício a que escolherem
dedicar seus talentos; e sejam felizes.
Porto Alegre, 16 de janeiro de 2010
[1] Erratum. Na versão que durante dois anos e meio, circulou
deste escrito, eu escrevera (ato-falho pós copernicano) 'Terra' onde, agora, se
lê 'Sol' ; e ninguém, a começar (é claro) por mim , nunca tinha dado por isso.
Devo à atenção e à solicitude de Rejane Xavier a advertência (antes tarde do
que nunca!) e a correção.
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