domingo, 18 de outubro de 2009

Conversa no avião


Ultimamente, tenho viajado mais para o sul. Comprei um apartamentinho em Porto Alegre, vou lá a cada dois meses. “Mirando al sur” – os argentinos também têm alguma coisa mística com o sul, só que para eles isso é bem mais abaixo, a Patagônia, a Terra do Fogo. Para mim, o sul já meio mítico é mesmo Porto Alegre, as ruas de Mário Quintana... e aí é que entra a história do avião.

Numa dessas idas, comecei a conversar com a moça da poltrona ao lado. Gaúcha, formada em Física, trabalhando numa grande empresa do Centro-Oeste. Levava uma enorme orquídea para a mãe, para plantar no sítio, em Tapes. E entre uma série de coincidências –o interesse pelas plantas e pelas ciências, o trabalho longe da família, as visitas periódicas – a observação que me despertou estas memórias.

“Gosto mesmo é de chegar em casa e sair para caminhar nas ruas que eu conheço”, disse ela. “Caminhar nas ruas que a gente conhece” – tem alguma coisa, além da madeleine de Proust, com tanto poder para tirar o pó das lembranças, para transportar corpo e mente para sensações que pareciam perdidas para sempre?

Vim para Brasília em 1991. Mulher de político, na época, embora estudasse jornalismo na UnB e desse aulas na mesma universidade, eu continuava ligada à UFRGS, e voltava seguidamente a Porto Alegre. Mantinha a casa lá, acompanhava as festas da família, o crescimento dos sobrinhos, as histórias das amigas, as candidaturas e as campanhas dos políticos de lá. Não me sentia brasiliense.

Mais tarde, em 1994, vim para ficar. Já aposentada na Universidade, separada, trabalhei, fiz novas amizades, montei nova casa, vivi novos relacionamentos, encontrei novo companheiro. Continuei ligadíssima com a família e os amigos de lá, mas principalmente pela internet, pelos álbuns de fotografias, pelas raras visitas. Ia lá para votar – meu título eleitoral nunca foi transferido -, mas não queria me sentir portoalegrense.

Agora estou numa fase diferente, numa espécie de “dupla naturalidade”. Gosto cada vez mais de Brasília, já acho bonitas as árvores retorcidas do cerrado, não passo tão mal na seca, minhas amigas novas daqui já são velhas amigas. O mapa sentimental do meu novo casamento – que já dura mais do que muitas primeiras uniões – é um mapa de Brasília.

Mas Porto Alegre vai tomando uma proporção cada vez maior. Algumas saudades doídas, mas a maioria boas lembranças, e a consciência crescente de que a memória gruda no corpo, não se sacode tão fácil. Desculpa, Mário Quintana. De Porto Alegre, cidade do meu andar, não me comovem as ruas em que não andei . Sinto uma dor infinita, das ruas de Porto Alegre, onde tanto passeei...

O MAPA
(Mário Quintana)
Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...
(É nem que fosse o meu corpo!)
Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...
Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)
Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)
E talvez de meu repouso...

Apontamentos de História Sobrenatural