sábado, 15 de outubro de 2011

O POSITIVISMO LÓGICO E A “FILOSOFIA CIENTÍFICA”


Num  ciclo de debates sobre O que é fazer Filosofia? não poderia faltar uma discussão sobre a assim chamada filosofia científica
"Filosofia científica" não é sinônimo de "positivismo lógico". Mas para dar uma idéia de um certo estilo de discussão ainda vigente, podemos tomar a parte pelo todo, e ler o que se diz do positivismo como típico da atitude hostil que a filosofia científica desperta em muitos setores.

O jornal Folha de São Paulo publicou, em 28 de setembro do ano passado, matéria em que relata uma entrevista dada por Habermas em sua visita a Porto Alegre. Comentando o destino de seu Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt, Habermas refere a repressão nazista que marcou a sua história. Os enviados do jornal, não sei se por conta própria ou relatando palavras de Habermas, continuam, amalgamando essa repressão ao extermínio de Aushwitz, que consideram
"a expressão máxima da lógica que atribui valor às coisas de acordo com sua eficiência, sua operacionalidade. Esse tipo de pensamento travestido de razão, essa 'mancha turva no horizonte da racionalidade' tem um nome: positivismo. É na crítica ao positivismo que está o cerne do projeto filosófico de Habermas."

Zero Hora, de Porto Alegre, na edição de 9 de dezembro do ano passado publica artigo de Luiz Pilla Vares ("Esferas da consciência: pela humanidade humana"), cuja primeira frase transcrevo:
"A grande tragédia do socialismo em todo o mundo foi o seu abastardamento teórico por meio do positivismo e do economismo".

Segundo essa análise, Engels é culpado de positivismo, "em razão de sua inclinação para o estudo das ciências"; "verifica-se nas sua obra uma negação dialética de viés positivista, negação esta que se deve ao positivismo que Engels vai legar a seus herdeiros". Herdeiros esses que seriam nada mais nada menos que Eduard Bernstein e Karl Kautski, "os arquitetos da social-democracia alemã". "Assim, toda a teoria da social-democracia alemã acaba por se tornar uma versão desnaturada do marxismo, e vai ser esta deformidade que norteará as linhas fundamentais do movimento operário e socialista mundial por várias décadas." 
Se a direita marxista, social-democrata, é vista como infectada pelo positivismo e o cientificismo (a vasta obra de Kautski, por exemplo, "sofrerá cada vez mais uma atrofia 'positivista' e naturalista, em detrimento da dialética"), a esquerda tampouco estaria livre do contágio: Rosa de Luxemburgo - continua o artigo citado - , em sua obra principal, "cede ao determinismo e ao economicismo, que acabam se tornando o elemento decisivo de seu livro". O próprio Lênin, "a par de seus inegáveis méritos, não estaria livre da influência positivista. Escreveu um livro "muito ruim", Materialismo e Empiriocriticismo, excessivamente dogmático e mecanicista", que apesar disso "influenciou filosoficamente toda a vertente marxista que se reivindicava do bolchevismo." Posteriormente, serviu para "sedimentar a ideologia de dominação que se cristalizou no fenômeno stalinista".

Estranha e maléfica prole, esta do positivismo cientificista: nazismo, social-democracia, movimento operário mundial, bolchevismo, stalinismo... Mas isso ainda não é tudo. Ciências sociais "positivas", behaviourismo na psicologia, controle burocrático da sociedade, liberalismo econômico e welfare-state, cibernética e informática, já foram apresentados como outros tantos rebentos indesejáveis dessa "perversão profunda do pensamento contemporâneo". Que por isso mesmo deve entretanto possuir algum charme muito especial : do contrário, como explicar que uma tendência abominada e combatida pelo marxismo, a fenomenologia, a hermenêutica, o existencialismo e a filosofia da linguagem ordinária tenha conseguido influenciar tão fortemente praticamente tudo o que acontece em nosso tempo, nos campos os mais opostos?

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Tendo rapidamente visto "no que deu" a filosofia científica, através de seu ramo mais combatido, vejamos de forma igualmente sumária de onde ela vem. Certamente não é por sua valorização do conhecimento científico, por destacar suas características lógicas, por privilegiar seus laços com a experiência, por tomá-lo como paradigma de racionalidade a ser alcançado pela própria filosofia que o positivismo e a filosofia científica foram abominados.

A história da filosofia é um rosário de exemplos da cumplicidade do pensamento filosófico com o científico [ver Schlick, PP II: 145-7]. Dos primeiros "fisiólogos", dos quais não se pode dizer se eram filósofos ou cientistas naturais, a Aristóteles, para quem a ciência é modelo de conhecimento, caracterizada pela necessidade e a eternidade de seu objeto, refletidas no encadeamento necessário das proposições que o descrevem. Seu traço distintivo e dominante, para Aristóteles, é seu caráter lógico discursivo : ela é essencialmente demonstração, com a universalidade que esta pressupõe e acarreta (Granger, 1976 : 24-5). Do matematismo dos pitagóricos à divisa de Platão, inscrita no frontispício da Academia  - "Não entre aqui quem não souber Geometria" -, ou às escolas materialistas do atomismo e do epicurismo, que ousou pensar uma física capaz de libertar o homem "de toda intervenção providencial dos deuses e [d]a representação angustiante da morte" (Nizan, 1977 : 28), a filosofia antiga não hesitou em buscar junto às ciências modelo, inspiração, métodos e resultados.

O pensamento filosófico moderno também se constitui em profunda simbiose com o desenvolvimento científico. Descartes é físico e matemático, Leibniz cria o cálculo infinitesimal e polemiza com Newton sobre o espaço; Berkeley faz uma impiedosa e certeira análise dos fundamentos do cálculo newtoniano. Kant propõe, independentemente de Laplace, uma teoria da formação do sistema solar, e não é forçar injustificadamente as coisas ver em sua obra, como um tema central, a preocupação epistemológica com os fundamentos da física newtoniana (tal como o leram os neokantianos). A introdução da Crítica da Razão Pura se preocupa em questionar por que motivos, até então, a metafísica não teria encontrado "o seguro caminho de uma ciência", como a lógica já o fizera desde Aristóteles, e como a Física, graças a uma revolução recente, acabava de fazer.

Visivelmente, a admiração pelos métodos e resultados da nova ciência vai acompanhada de uma indisfarçável impaciência frente às altas pretensões cognitivas e à falta de justificativas da velha filosofia. Também a esse respeito a "filosofia científica" não carece de precedentes. No campo do empirismo, é lapidar e famosa a conclusão da Investigação acerca do entendimento humano, de Hume:
"Quando percorremos as bibliotecas, persuadidos destes princípios, que destruição deveríamos fazer? Se examinarmos, por exemplo, um volume de teologia ou de metafísica escolástica, e indagarmos" Contém algum raciocínio abstrato acerca da quantidade ou do número? Não. Contém algum raciocínio experimental a respeito das questões de fato e de existência? Não. Portanto, lançai-o ao fogo, pois não contém senão sofismas e ilusões."

Menos radical, Kant se contenta (como o farão os positivistas lógicos) em privar a metafísica de significado cognitivo. Não há conhecimento de qualquer espécie para além do campo da experiência possível. "Somente nossa intuição, sensível e empírica, pode proporcionar [aos conceitos puros do entendimento] sentido e significado [Sinn und Bedeutung] (CRP, B 149).

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Por que então tanta surpresa e indignação quando  Russell ou Carnap "reduzem" a filosofia à análise lógica da linguagem das ciências, ou quando Wittgenstein sustenta que "o objeto da filosofia é o esclarecimento lógico do pensamento", que "a filosofia não é uma teoria, mas uma atividade..." que "a filosofia não resulta em 'proposições filosóficas', mas em tornar as proposições claras" (Tractatus, 4.112)? Qual o escândalo se Schlick afirma que " não há outra maneira de testar e confirmar verdades senão pela observação e pela ciência experimental", que não há, portanto, "nenhum domínio adicional de 'verdades filosóficas', pois a filosofia não é um sistema de proposições" (PP, II : 157); que "o autor filosófico,...construindo sua filosofia puramente espiritual, não se perturba nem um pouco, pois a vasta maioria de seus leitores é igualmente incapaz de conferir se os fatos da natureza estão de acordo com os filosofemas que lhes são fornecidos como verdades últimas" (PP, II, 134)?

Na verdade, os defensores da "concepção científica do mundo" não economizaram provocações, e isso explica em parte a hostilidade e as reações. Depois de ter indicado como proceder à "superação da metafísica através da análise lógica da linguagem" (através de exemplos retirados de Ser e Tempo de Heidegger), Carnap consente em lhe reservar um pequeno território:
"...a metafísica possui um conteúdo  - só que este não é teórico. As (pseudo)proposições da metafísica não servem para a descrição de relações objetivas, nem existentes (caso em que seriam proposições verdadeiras), nem inexistentes (caso em que - pelo menos - seriam proposições falsas); elas servem para a expressão de uma atitude emotiva diante da vida".

Mas atitude emotiva não é teoria,e expressá-la sob a forma aparente de uma teoria (como um sistema de proposições) é um equívoco, sobretudo se, ao contrário do que ocorre na poesia, pretende estar se movendo no terreno do verdadeiro e do falso. "Na verdade, os metafísicos são músicos sem talento musical", que confundem ciência com arte e criam "uma estrutura que não consegue nada no que concerne ao conhecimento e que é insuficiente como expressão de uma atitude emotiva perante a vida". (Carnap, 1932)

Reichenbach (segundo o qual o célebre "Ser ou não ser!" de Hamlet não é um dilema, mas uma tautologia) concorda com Carnap:
“Há muitos estudantes que vêm às aulas de filosofia em busca de edificação: lêem Platão como quem lê a Bíblia ou Shakespeare, e sentem-se desiludidos diante de aulas de filosofia onde têm de escutar exposições de lógica simbólica ou de teoria da relatividade. Tudo o que posso dizer dessa atitude é que os que procuram edificação devem assistir lições sobre a Bíblia ou sobre Shakespeare, e não devem procurar encontrá-la num lugar que não lhe corresponde." (Reichenbach, l951)

É basicamente a mesma atitude que Russell expressava em 1914, na conferência "Sobre o método científico na filosofia":
"Creio que os motivos éticos e religiosos, a despeito dos sistemas esplendidamente imaginativos a que deram origem, têm sido de modo geral um obstáculo ao progresso da filosofia e deveriam agora ser conscientemente descartados pelos que desejam descobrir a verdade filosófica. (...) Em minha opinião, a filosofia deveria buscar inspiração na ciência e não na ética ou na religião."
 
Até aqui, estou fazendo exatamente o contrário do que se aprende nas primeiras lições de retórica, onde nos dizem que antes de mais nada deve-se tratar de obter a benevolência do público! O auditório, predominantemente filosófico, deve estar a essa altura odiando a "filosofia científica" tanto quanto a mim, que a apresento de forma supostamente simpática, ou pelo menos sem procurar estraçalhá-la desde as primeiras pinceladas...

Vejamos então se é possível fazer alguma coisa para nos reconciliar com um ponto de vista prima facie tão intransigente, e que parece não deixar lugar precisamente àquelas demandas mais íntimas e mais fortes que fizeram com que muitos dentre nós nos aproximássemos da filosofia. Uma busca de sentido, de valor e de racionalidade, que não exclui por certo o interesse e o respeito pelo conhecimento empírico dos fatos e pela validade formal dos argumentos, mas que suspeita, acredita ou espera que seja possível resgatar alguma outra dimensão discursivamente controlável, submetida a standards de racionalidade que não exclusivamente os da ciência empírica ou os da lógica formal. (As recentes tentativas de explicitar o caráter sui generis dos "argumentos transcendentais" podem ser vistas sob esta luz.) 

Sustento que a "filosofia científica" não só não afasta uma tal possibilidade como de certo modo, pelo rumo que tomaram suas tentativas de elucidação da linguagem da ciência, termina por exigir a introdução de uma dimensão prático-racional no âmago mesmo da jurisdição onde se trata da justificação de pretensões de conhecimento de enunciados teóricos. [Ao contrário de Habermas, portanto, vislumbro a "superação do positivismo" não pelo lado de uma "fundamentação cognitiva da práxis", mas inversamente, por uma "fundamentação prática do conhecimento".]

Deixemos de lado a virulência polêmica dos primeiros manifestos da filosofia científica. Ela se explica pela conjuntura filosófica, acadêmica e político-social da Europa no início do século. [Ver "Viena 'Fin del Siglo' y la modernidad como proyecto histórico", artigo de Rafael Farfán em Sociológica, 3 (1986-7)]também [Schlick,M. Philosophical Papers, vol. II, "The turning-point in philosophy", 154 ss] também [Russell, "A filosofia no século XX", em Ensaios céticos]

Do ponto de vista pessoal, como grupo acadêmico, e por suas posições políticas os "filósofos científicos" tiveram um papel muito freqüentemente mais tolerante, democrático, e mesmo progressista do que seus adversários teóricos. O Círculo de Viena sofreu perseguições, dispersou-se e teve de enfrentar o exílio não apenas porque muitos de seus membros eram judeus, mas também porque suas idéias eram consideradas "dissolventes" (subversivas). Neurath, da sua "ala radical", era francamente marxista, e o grupo, como um todo, afinava com o projeto da social-democracia austríaca, de modernização de uma sociedade ainda fortemente marcada por atavismos feudais (veja-se o corporativismo da Universidade: exemplo da dificuldade de Freud em se tornar professor em Viena) e aristocratizantes "a partir dos quais se organizava e dirigia sua vida política, social e, sobretudo, a educação e a cultura" (Farfán, p. 69). Enfrentaram a hostilidade manifesta do meio universitário alemão e dos grupos intelectuais institucionalizados que, apesar de um discurso "crítico" elitizado e esotérico não opuseram nenhuma resistência social e política ao crescimento do nazi-fascismo (id.,68) .

Mas o que interessa destacar para desfazer a imagem de dogmatismo e estreiteza associada à filosofia científica é que seus críticos costumam descrevê-la e atacá-la com base em formulações polêmicas e simplificadas de suas posições iniciais, e desconhecem o intenso trabalho crítico interno que ela própria, constantemente, desenvolveu. A maior parte dos argumentos usados "contra" o positivismo, por exemplo, não passa de resultados da própria análise crítica que os positivistas promoveram a respeito do método científico, do significado da linguagem da ciência, da filosofia da lógica, da aplicação da matemática à experiência, etc. Sem esse intenso e tecnicamente preciso questionamento, talvez passássemos mais dois mil anos repetindo os filosofemas tradicionais a respeito da ciência e da necessidade de suas verdades.

Porto Alegre, setembro de 1990.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Einstein e Deus

religião, para Einstein, é a profunda admiração pela estrutura do Universo, 
"na medida em que conseguimos compreendê-la".


Einstein esclarece: "não acredito num Deus pessoal, antropomórfico".