sexta-feira, 20 de maio de 2011

Supresa: eu concordo com Sarney!

Sem preconceito, por favor!
Nada mais representativo da burrice do que essa teoria do falar errado. Foi quando fui presidente da República que universalizei o programa do livro gratuito nas escolas, e o grande problema era a qualidade do livro.

Eu mesmo, nesta coluna, tive a oportunidade de reclamar de um livro de história distribuído nas escolas, chegado às minhas mãos pela minha neta, um verdadeiro horror pelos erros que ensinava.

Hoje todos estão de acordo que a educação é um problema universal. Sem ela, ninguém caminha. E esta começa pela língua. O mundo do futuro não será de países grandes ou pequenos, mas dos que dominarem tecnologia e ciência.

Para isso, não estão dispensados de falar corretamente.

A língua é instrumento de unidade e político. É a primeira identidade. Não é por acaso que a Alemanha e a França gastam quantias fabulosas para manter, inclusive mundo afora, o ensino do alemão e do francês. É impossível pensar em matar as suas línguas, deformando-as, sem regras e sem falantes.

É nesse quadro que o Brasil resolve criminalizar quem fala corretamente e quer ensinar a que os outros também o façam. Isto, dizem, é discriminação. Ensinar não é discriminar, a função do professor é ensinar e corrigir.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Em defesa da tradição


Depoimento - ou desabafo do Théo, primeiro presidente do CTG Estância da Amizade
(levemente editado por mim, RX)

Théo-1953
TRADICIONALISTA
Theodomiro Xavier

Acho que a intolerância se deve ao fato de que ninguém aceita ou entende o hobby do outro

Sou tradicionalista e "gauchista", de há muito tempo. Isto é público e notório e por causa disto sou alvo de frequentes ataques de iconoclastas que nunca soube porque detestam as tradições. Por que isto?

O tradicionalismo é aceito na França, Inglaterra, Rússia, Polônia etc. Grupos se formam para cultuar as danças, roupas, músicas de seus antepassados . No Brasil cada região tem o seu folklore e tradição. Mas aqui no Rio Grande do Sul há quem ache isto abominável.

Temos exageros ? temos ! mas isto é comum em qualquer atividade. Voltemos para o normal. Eu acho que a intolerância se deva ao fato de que ninguém aceita ou entende o hobby do outro!

Por que um cirurgião renomado, do meu hospital, sai no inverno, com chuva e se esconde atrás de uns galhos verdes para dar tiros nuns patos que não fizeram nada para ele? Por que uma pessoa fica horas de pé num festival para ouvir uma música que pode ouvir no Youtube? Eu tenho um vizinho que montou uma parafernália na garagem, gasta uma fortuna para trazer trenzinhos e sinaleiras da Europa – porque ele é ferroviarista!

Agora gostar de músicas, história e estórias dos gaúchos causa um incômodo a alguém, por que? Consultem um psiquiatra!

O Demétrio de novo

O artigo que ele (não) menciona abaixo já foi transcrito aqui. O que aparece a seguir é um comentário via e-mail, que achei que valia a pena compartilhar.Quando desapareceu o "gaúcho de verdade"? "O gaúcho é uma figura libertária ou um servil?" - questões que o Demétrio coloca e responde à luz das suas vivências e leituras. (RX)
Vou então jogar umas coisas. Não no ventilador, por supuesto, porque, como se diz no Passo da Tigra, noblesse oblige. Espargindo, para futuro acolheramento, se quadrar. Mais como quem lança... búzios!
Antes de mais tudo, recomendo vivamente um artigo meu, que esgota esse assunto com precisão e estilo invejáveis. Faço-o sem nenhum pudor, por uma razão até simples: nunca o escrevi.
Se intitula (rá; ria...) “Gauchismo: seus detratores, seu gauchismo.”
O Bioy Casares diz um troço muito legal: que, de uma maneira geral, a desaparição ou a derradeira presença do gaúcho “de verdade” (porque sempre se afirma que no presente ele não existe e o que há são representações fantasiosas) se localiza setenta anos antes do discurso que ora se estiver fazendo.
Isso permite um monte de chutes bonitos. O primeiro é que esse lapso coincide com a possibilidade de interlocução pessoal de avô com neto, tanto quanto com a expectativa de vida.
Quanta gente vinha dizendo que o Verdadeiro Gaúcho (doravante chamado neste instrumento VG) morreu na época da Revolução de 30?

Muitos bandos

Os comentários dos sobrinhos têm produzido textos tão legais que resolvi colocá-los como posts independentes. Então, não fiquem tristes se os textos que enviaram "não têm comentários" - cada um deles faz parte de uma rede de comentários recíprocos, OK?  (RX)
Borges tem um conto em que fala de um gaucho andando a cavalo pelos pampas que me causa arrepios.
É tão forte que dá prá sentir frio, cheiro de pasto e sobretudo melancolia, muita melancolia. Se essa melancolia toma cores diferente segundo se esteja deste ou daquele lado da fronteira eu não saberia dizer. Se o fato de sermos gaúchos com acento explica a razão de termos essas manifestações "folclóricas" tão exacerbadas é algo interessante de estudar.


Apesar de ser totalmente portoalegrense, venho de uma família com fortes valores gauchescos. Mesmo a geração mais jovem dos primos (somos 40 e poucos) encarna a figura do gaudério.


segunda-feira, 16 de maio de 2011

O discurso da legitimidade


Artigo do músico Demétrio Xavier, violonista e cantor porto-alegrense, especializado na pesquisa e interpretação da música crioula uruguaia e argentina, há 25 anos. Compositor eventual, venceu ao lado de Marco Aurélio Vasconcelos, a Califórnia da Canção Nativa de 2009, com a composição "A Sanga do Pedro Lira". Publicado originalmente na seção Fórum do CTG Inhanduí, de Porto Alegre.
 
“Preguntan de donde soy
y no sé qué responder.
De tanto no tener nada,
No tengo de adonde ser.”

E como perguntam, neste Rio Grande de Deus! De onde és? Bagé? Alegrete? Paleteias, laças, tranças? Leste estes ou aqueles textos, para mim fundamentais? Perguntas. Nem sempre foi assim…

Numa terra onde a instituição era tão rara e rala; onde o ilícito das atividades e o partidarismo das guerras poderiam criar constrangimentos e sobretudo onde sempre se precisava de algum braço destro… é assunto sabido que quem chegasse em qualquer galpão era bem recebido, comia, tomava mate e trago, se provisionava de alguma coisa; mudava cavalo, secava roupa e aperos. Sem perguntas.

Gosto particularmente de lembrar de algo que meu pai deixou escrito, sobre o fascínio que o cheiro de fogo exercia sobre ele (e que também sempre senti, sem fazer a associação, por falta da experiência): isso lhe vinha dos tempos de viajar só a cavalo, guri, cansado, sem recursos, às vezes molhado, voltando de entregar uma vacagem ou andando de escoteiro, mesmo. O cheiro do fogo era conforto, bóia, trago, conversa, quem sabe o flerte de alguma guriazinha…

Hoje, essa identidade gaúcha, emocionar-se com ela e cultivar os traços que a fazem ser identificável – os “sinais diacríticos” da Antropologia – passa por uma pergunta, lamentavelmente insistente: “tu podes ser gaúcho?” Subentendido aí “…sendo quem és?”

E aí eu morro de inveja dos negros e dos meus bisnetos.


sábado, 14 de maio de 2011

Tradicionalismo gaúcho

Este é um assunto que talvez vá parecer muito paroquial - para não dizer familiar - mas que eu acho que pode servir para provocar alguma reflexão sobre as tradições culturais: sua invenção, sua conservação, sua transmissão, sua transformação, sua convivência com a cultura urbana cada vez mais globalizada.

Existem, na minha turma de sobrinhos, duas "tribos" opostas em relação ao gauchismo. Os que o cultivam com fervor - coloco aqui o João Pedro e o Demétrio - e os que detestam a coisa. Estes, casualmente ou não, irmãos dos primeiros: o Ernesto Neto e o Guilherme.

O Ernesto, professor de francês, para implicar com o irmão pajador, declara detestar os "3 Pês" ( pago, prenda, pingo) que infestam a linguagem crioula.O Guilherme, oficial dentista da Brigada Militar, é mais complicado. Curte o gauchismo "autêntico", mas abomina as formas "deturpadas" que ele vem assumindo na sociedade do espetáculo e do consumo.

O assunto vem de longe, na família.


sexta-feira, 13 de maio de 2011

CONTRA O ‘GAUCHISMO” IDIOTA


CONTRA O ‘GAUCHISMO” IDIOTA 

(Do meu sobrinho Guilherme de Freitas Xavier)

Quem vem a Porto Alegre e passa em frente ao acampamento farroupilha, vindo de fora do Rio Grande do Sul, não deve entender nada. Não basta permitir que se instalem as malocas da Vila do Chocolatão: os tradicionalistas brindam a cidade com um visual que rivaliza com os desvalidos e excluídos urbanos. É um imenso malocão (favela é termo carioca, considerado menos pejorativo – caiu no gosto da terra e está em franca substituição pelo politicamente correto comunidade; aqui é maloca mesmo e nada saudosa).
Não tenho mais paciência com este gauchismo idiota, com estas representações de farrapos usando bombacha em desacordo com a história. Os ‘’pantalones turcos’’ excedentes da guerra da Criméia só foram desovados pelos ingleses no Prata e caíram no gosto campeiro após as nossas façanhas. Não aguento aqueles que se transformam e passam a usar impostação vocal de Paixão Cortes quando setembro chega com barro e bosta de cavalo na mui leal e valerosa.
Esta cultura de CTG é muito esquisita mesmo. O alicerce de tudo, CTG com patrão, capataz, sota e primeira prenda, reproduz o modelo estancieiro de exploração do homem do campo. A grande virtude do gaúcho modelar é a lealdade à terra, entendida aí como propriedade do patrão ao qual o gaúcho devota uma fidelidade canina. Outro fato curioso é o grande numero de patrões de CTG com nome italiano, mesmo na campanha. O gringo trabalhador após descer a serra e prosperar no pampa está assumindo o seu lugar na ordem social nativista. Não vou nem comentar as primeira prendas Jeniffer anunciadas no sistema de som, deve ser a tal globalização no gauchismo.
Na minha geração fomos invadidos pelo Fogaço-Crioulismo (não é meu o conceito), movimento tradicionalista que trouxe para a juventude dos anos 80 o orgulho de tomar mate em público. Misturava, numa miríade de festivais quase semanais, gauchismo com Woodstock; bombacha e alpargatas com maconha e bebedeira. Aumentou o consumo de erva mate, o preço subiu e salvamos nossos ervais que estavam sendo dizimadas pela monocultura.
Voltando ao acampamento, aquilo que era alma popular está virando negocio pelas beiradas. O gauchinho da volta, que fazia do setembro seu carnaval de um mês, tirando férias do emprego para passar acampado com os amigos, de fordunço, já não tem mais espaço. Agora temos piquetes de empresas, entidades e associações de aquinhoados funcionários públicos. Estes senhores desvestem-se de gente e fantasiados a caráter botam o pé no barro (duplo sentido:lama e bosta). Mas eles não montam piquete, não fazem comida e não zelam pelo espaço nas madrugadas vazias. Aí o pobre gauchinho agora excluído do seu antigo piquete se emprega com os ‘’doutores’’ por algum cobre, voltando a reproduzir num círculo trágico o modelo de exploração pampeano que tão bem representa.
Antes que me sentem o mango devo dizer que tenho alguma vivência campeira e muita simpatia pelo modo de vida lá de fora. Seguidamente me perguntam de onde eu sou pois devo ter adotado sem saber modos que são estranhos a um porto alegrense urbano. Conheci o gaúcho campeiro da região central, aquele do modelo estancieiro do CTG. Tive contato com o gaúcho missioneiro da Bossoroca, os homens mais primitivos e rústicos que vi lá nos anos 70. Estive muito próximo do gaúcho da região sul dos banhados pra baixo da Quinta. Tenho alguma deficiência no gauchismo dos campos de cima da serra. Conheço de ouvir falar, de rica tradição tropeira.
Então senhores, cultivem suas tradições, não deixem tudo virar um carnaval espetaculoso com assessores cariocas e cavalos de isopor ridículos. Moralizem o acampamento, talvez reduzindo a densidade da costaneira, com mais coletividade associativa cultural e menos individualidades piqueteiras, empresas e associações. O Rio Grande Gaúcho é maior que isso, mais Rio Grande Castilhista positivista sem ode ao modelo oligárquico, que se vigesse ainda nos faria mais parecidos com os coronéis que criticamos para além do Mambituba.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Observações sobre a teoria dos atos de fala


Com Searle, em Berkeley - 1982

Assistindo recentemente a uma defesa de tese de doutorado ouvi algumas referências à teoria dos atos de fala que me levaram a alinhavar as observações a seguir. Não se trata de apresentar ou resumir essa teoria, apenas de destacar alguns pontos básicos que me parecem requerer consideração mais detida.


1.      A teoria dos atos de fala não se restringe às situações de trocas linguísticas orais, como parecem entender alguns leitores. Speech acts, em inglês, significa atos discursivos, sejam eles efetivados por escrito ou verbalmente.
Austin apresenta inclusive, ao explicar seu conceito de enunciado performativo, o que ele chama de uma “forma normal” própria dos performativos formulados por escrito (um verbo na voz passiva na segunda ou terceira pessoa do presente do indicativo: “os visitantes são convidados a usar a passarela”, por exemplo). Mesmo orações escritas sob outras formas gramaticais, como simplesmente “cuidado com o cachorro” ou “favor manter a porta fechada” podem ser performativos, para Austin. Igualmente, ao afirmar: “Quando considero um ruído ou uma marca feita sobre um pedaço de papel (grifo meu) como uma instância de comunicação linguística”... Searle está claramente incluindo a comunicação escrita dentro da teoria.

2.      A teoria dos atos de fala não constitui um corpo fixo de doutrina. Ela evoluiu a partir das primeiras intuições de Austin, e foi tomando forma cada vez mais sistemática nos trabalhos de Searle. Em particular, há um deslocamento de uma distinção entre tipos de enunciado, proposta inicialmente por Austin, para uma distinção entre dimensões de um ato de fala (à qual chegou Austin posteriormente, e que foi desenvolvida por Searle).

A.    Os tipos de enunciado distinguidos inicialmente por Austin eram
a.      constatativos (simples declarações)  e
b.     performativos
Os primeiros seriam apenas relatos de situações que são ou que se acredita ser o caso: “a grama é verde”, “Napoleão venceu a batalha de Waterloo”, etc. Sua característica é que eles podem ser verdadeiros ou falsos.
Os segundos - que se tornaram famosos - seriam um tipo peculiar de enunciado: mais do que apenas relatos, eles seriam atos. Pelo simples fato de proferi-los, realizamos a ação expressa em seu conteúdo proposicional. Assim, ao dizer “eu te batizo” ou “eu te absolvo”, o padre está de fato batizando ou absolvendo o fiel. Ao dizer “prometo que pago”, eu estou já comprometido com o referido pagamento.
  

segunda-feira, 9 de maio de 2011

ATOS DE FALA: SOBRE O USO DE ALGUMAS DISTINÇÕES


John Langshaw Austin (1911—1960)

A teoria dos atos de fala, que se originou nos trabalhos de J.L.Austin e foi sistematicamente desenvolvida sobretudo por J.R.Searle, distingue entre enunciados (sentenças gramaticalmente corretas e semanticarnente significativas de uma linguagem natural) e atos de fala (emissão de tais sentenças num contexto concreto de comunicação). Dizer algo, para os filósofos dos "Speech-acts", será sempre fazer algo; e o objetivo de suas reflexões será o de esclarecer sempre mais as modalidades dessa equaçāo, os sentidos em que podemos afirmar que "dizer é fazer”. 
Passando pouco a pouco a contestar o privilégio tradicionalmente concedido ao uso informativo da linguagem, a teoria dos atos de fala progressivamente o integra dentro de uma perspectiva mais ampla, onde esse uso aparece, ao lado de outros, como um dos usos possíveis da linguagem. 
O laborioso trabalho de investigaçāo da linguagem ordinária a que se dedicou Austin e a refinada elaboraçāo conceitual que construiu procuram dar conta das sutilezas e distinções que operam ao nivel desta linguagem, e neste contexto devem ser apreciados. 
Suas distinções conceituais, laboriosamente perseguidas, trabalhadas, elaboradas, finalmente refinadas ou rejeitadas, procuram dar forma a uma forte intuição básica, a de que dizer é (sempre) fazer. 
Na teoria dos atos de fala há pelo menos três distinções, de origem e status teórico muito diferentes, que se sobrepõem e misturam frequentemente, e que julgo importante restabelecer.
Descritivo vs prescritivo
A primeira é a distinção entre descritivo e prescritivo, que se aplica a enunciados, e que corresponde àquela entre juízos de fatos e juízos de valor, tendo como pressuposto a dicotomia entre fato e norma, entre "is" e "ought", entre “ser” e “dever ser”. 
Remontando pelo menos a Hume, que apontava um abismo lógico entre premissas formuladas no indicativo e conclusões imperativas, esta dicotomia foi, e continua sendo, objeto de ferozes discussões. Dentro do contexto da "speech-act theory", a tendência é abandoná-la. 
Para Austin, "the value-fact fetish" é um daqueles em relação aos quais ele "admit to an inclination to play Old Harry with": em bom português, mandar ao diabo. . . Quanto a Searle, a primeira aplicaçāo que ele propõe da sua teoria da linguagem é precisamente a reabilitação da chamada "falácia naturalista" (pretensão de derivar um "deve" de um "é").
Não é o caso de reabrir aqui o processo dessa argumentação. Interessa apenas sublinhar que tanto na motivação original de Austin, quanto na versão standard da teoria a distinção não tem nenhuma relevância, e se por algum motivo se achar conveniente retomá-la isso deve ser feito (com argumentos) contra aquela motivação e a formulação que lhe foi dada por Searle. Entretanto, é comum em análises de outros campos do conhecimento o recurso a essa pseudo dicotomia, frequentemente remetido à teoria dos atos de fala, onde sua vigência foi desde muito cedo descartada.
Constatativos vs performativos
A segunda distinção que importa ter em mente é a distinção (esta originalmente proposta por Austin, já em "Outras Mentes") entre enunciados constatativos e performativos. 
Primitivamente, o conceito de performativo pretendia contrastar com a idéia de enunciado declarativo ou constatativo. À tradicional "asserção", com sua propriedade característica de ser verdadeira ou falsa, se oporia um tipo peculiar de enunciado, cuja função seria fazer algo (como prometer, ameaçar, batizar, etc: coisas que se faz dizendo algo) e do qual não caberia inquirir se é verdadeiro ou falso, mas se é "fe1iz" ou "infeliz". 
Mas após ter levantado a idéia da distinção, Austin se declara impotente para encontrar critérios lingüísticos satisfatórios para estabelecê-la. 
A própria idéia de constatativo revela-se, sob a análise, menos clara e familiar do que parecia à primeira vista. O acúmulo de dificuldades ligadas à distinção tentativamente proposta leva Austin finalmente a abandoná-la: "temos talvez necessidade de uma teoria mais geral desses atos de fala, e nesta teoria nossa antítese constatativo-performativo terá diñculdade de sobreviver", dizia ele em Royaumont em 1958.
É assim que Searle, em "Austin on Locutionary and Illocutionary Acts"  considera que "o tema principal de How to Do Things with Words de Austin é a substituição da distinção original entre perfomativos e constatativos por uma teoria geral dos atos de fala". 
Como é facilmente observado, a idéia dos performativos não desapareceu com o seu abandono em seu contexto de origem. O conceito é largamente utilizado nos mais diversos setores, sem que se expliquem os fundamentos em que se apóia o seu resgate. Um conceito isolado pouco significa quando destacado da teoria de que faz parte, e os performativos, abandonados pela teoria dos atos de fala, vagam à deriva pelos campos teóricos, alimentando devaneios pretensamente eruditos.
Locucionário, ilocucionário, perlocucionário
A última distinção a que julgo necessário remeter é aquela entre os chamados atos (não mais enunciados) locucionários, ilocucionários e perlocucionários. 
Convencido de que dizer algo é (sempre) fazer algo, Austin procura agora tornar mais claros os diferentes sentidos em que isto se dá. Na verdade, a expressão espécies ou classes de atos não é feliz, pois se trata de dimensões ou de descrições diferentes de um mesmo ato. 
"Realizar um ato locucionário é, em geral, eo ipso, realizar um ato ilocucionário". Emitir certos sons, pronunciar certas palavras, veicular um significado, em suma, "dizer algo" é o ato locucionário: ao realizá-lo, o fazemos com uma certa "força" (nosso proferimento irá contar como uma informaçāo, uma ordem, uma promessa, uma pergunta), que caracteriza o aspecto ilocucionário (in saying). 
Num terceiro sentido, certos efeitos serão produzidos por nosso proferimento (by saying): consequências sobre os sentimentos, pensamentos ou ações do locutor, do(s) ouvinte(s) ou de outras pessoas, o que constitui o aspecto perlocucionário do ato de fala. 
Assim, Austin distingue entre "ele disse. . ." (ato locucionário); "ele afirmou. . ." (ato ilocucionário); "ele me convencen de que. . ." (ato perlocucionário). 
Searle, por razões teóricas ligadas à relação entre significado e força ilocucionária, não aceita a distinção austiniana entre ato locucionário e ilocucionário, substituindo-a pelo par ato proposicional/ato ilocucionário, dando assim maior peso ao fato de que "todo ato locucionário é um ato ilocucionário". 
Novamente aqui há uma ampla discussão, que de modo algum se pode considerar conclusivamente encerrada; mas as motivações e os refinamentos conceituais caminham sempre na direção de esclarecer a equação “dizer é fazer” e não no sentido de desmembrá-la.
Dessa forma, análises que proponham a supervalorizar a dimensão perlocucionária (os efeitos) separando-a da dimensão (i)locucionária do ato de fala precisam se apoiar em outras bases teóricas que não as da speech-acts theory. E são, naturalmente, convidadas a explicitar os seus próprios pressupostos teóricos.
A taxonomia dos atos ilocucionários
Há contudo, na teoria, outras distinções, como por exemplo a taxonomia dos atos ilocucionários, na qual parece abrir-se um lugar para o que foi possível salvar da intuição original da diferença constatativo/performativo.
Austin propõe sua classificaçāo ao final de How to do Things With Words, de forma tão despretenciosa que chega a parecer displicente, como uma espécie de balão de ensaio, distinguindo cinco espécies de atos ilocucionários: "verdictives", "exercitives", "commissives", "expositives" e “behabitives". 
Searle examina a questão em "A taxonomy of illocutionary acts” e  distingue, com base em doze critérios diferentes, que se compõem entre si, outras cinco espécies: “assertives", “directives", " commissives ", "expressives" e "declarations". Em Intensionality, Searle tem mesmo a pretensão de poder explicar "a razão profunda" pela qual os tipos são precisamente estes cinco e não outros.
Aplicações
A teoria dos atos de fala extrapolou rapidamente do contexto em que hvia sido criada. Habermas adaptou os conceitos da teoria a suas próprias preocupações, sobretudo à tese de que as questões práticas devem ser objeto de um tratamento cognitivo, acresentando novas distinções: "atos de fala descritivos", "regulativos", "expressivos".  
Inúmeras análises da teoria dos atos de fala se aplicam ao problema geral de "como é possível dizer uma coisa e significar (mean) outra", questão central na literatura, na política ou na psicanálise.  Os artigos de Searle ("Indirect Speech Acts", “The logical status of fictional discourse", "Metaphor"); Strawson ("Intention and Convention in Speech Acts"); Grice ("Meaning", "Logic and Conversation", "Utterer’s Meaning, Sentence-meaning, Word-meaning"); Schiffer ("Meaning"); Wright (“MeaningNN and Conversational Implicature") se incluem nesse caso.
Mas - e este é o último ponto que desejava introduzir neste comentário - o que caracteriza muitas vezes o emprego das distinções da teoria dos atos de fala nesses campos não é a falta de sofisticação teórica, mas o excesso. Toda a alusāo à teoria dos atos de fala me parece perfeitamente dispensável em muitas dessas análises sociológicas ou psicológicas, para cujos méritos ou defeitos ela pouco contribui. Acredito que tais análises ganhariam em simplicidade, economia conceitual e elegância se dispensassem pura e simplesmente essa referência. 
Não vai aí, naturalmente, nenhuma objeçāo de princípio a que instrumentos e conceitos de um determinado âmbito teórico sejam estendidos a outros campos além daqueles em função dos quais foram originalmente concebidos. Não quero sugerir que a teoria dos atos de fala não deve ser usada como instrumento em campos em que a linguagem desempenha um papel central. Isto não só pode se revelar um recurso extraordinariamente fecundo como é praticamente inevitável, num meio como o nosso, em que diferentes tradições e orientações especulativas convivem e coexistem. Mas constatar essa situação não facilita em nada o trabalho interteórico: pelo contrário, torna-o mais difícil.
T.S. Kuhn compara os diferentes paradigmas científicos (e creio que isso vale tambem para os filosóficos – com diferentes linguagens naturais, que cada indivíduo domina seja como falante nativo, seja como estrangeiro. A capacidade de transitar entre essas tantas linguagens passa pela instauração de um modo de vida, de formas de comunicação e de trabalho em que elas tenham efetivamente algo a dizer umas às outras e se possam fecundar mutuamente. Só assim se evita o nonsense, seja ele o da mera traduçāo escolar ou o da torre de Babel. 

Porto Alegre, março de 1984.
Revisado em Brasília, 2011.


AUSTIN, J.L. How to Do Things with Words. Oxford, Oxford U.P., 1978 (28 ed.) p.151
SEARLE, J .R. Speech Acts. Cambridge, Cambridge U.P., 1969. pp.132 ss.
AUSTIN, J .L. "Performatif-Constatif ”, in Cahiers de Royamont, La Phílosophie Analytique. Paris, Les Editions de Minuit, 1962. p.273.
AUSTIN, J .L. "Performatif-Constatif", p .275.
 ibidem, p.279
SEARLE, J .R. "Austin On Locutionary and Illocutíonary Acts", in BERLIN, I. et al. Essays on J.L.Austin. Oxford, Clarendon, 1973.
AUSTIN, J.L. How to do Things. . . p.98.
              A teoria dos atos “de fala” não se aplica, evidentemente, apenas aos proferimentos verbais: ameaças, promessas, congratulações podem ser realizadas por escrito. Juízes condenam por meio de sentenças escritas; presidentes, reis ou ditadores decretam medidas, e sancionam ou vetam leis da mesma maneira.
               Ibidem, p.102
SEARLE, J.R. "Austin on Locutionary. . .” p. 155.
AUSTIN, J.L. How to do Things. . . pp.151-163.
SEARLE, J.R. Expression and Meaning. Cambridge U.P., 1983, p.166
SEARLE, J.R. Intensionality. Cambridge, Cambridge U.P., 1983. p.166. 
KUHN,T.S. The Essential Tension. Chicago, Chicago U.P., 1977. pp.338-39.