Com Searle, em Berkeley - 1982 |
Assistindo recentemente a uma defesa de tese de doutorado ouvi algumas referências à teoria dos atos de fala que me levaram a alinhavar as observações a seguir. Não se trata de apresentar ou resumir essa teoria, apenas de destacar alguns pontos básicos que me parecem requerer consideração mais detida.
1. A
teoria dos atos de fala não se
restringe às situações de trocas linguísticas orais, como parecem entender alguns leitores. Speech acts, em inglês, significa atos discursivos, sejam eles efetivados por escrito ou verbalmente.
Austin
apresenta inclusive, ao explicar seu conceito de enunciado performativo, o que
ele chama de uma “forma normal” própria dos performativos formulados por
escrito (um verbo na voz passiva na segunda ou terceira pessoa do presente do
indicativo: “os visitantes são convidados a usar a passarela”, por exemplo). Mesmo
orações escritas sob outras formas gramaticais, como simplesmente “cuidado com
o cachorro” ou “favor manter a porta fechada” podem ser performativos, para
Austin. Igualmente, ao afirmar: “Quando considero um ruído ou uma marca feita sobre um pedaço de papel (grifo meu) como uma
instância de comunicação linguística”... Searle está claramente incluindo a
comunicação escrita dentro da teoria.
2. A
teoria dos atos de fala não constitui um corpo fixo de doutrina. Ela evoluiu a
partir das primeiras intuições de Austin, e foi tomando forma cada vez mais
sistemática nos trabalhos de Searle. Em particular, há um deslocamento de uma
distinção entre tipos de enunciado, proposta inicialmente por Austin, para uma distinção entre dimensões de um ato de fala (à qual chegou Austin
posteriormente, e que foi desenvolvida por Searle).
A. Os
tipos de enunciado distinguidos
inicialmente por Austin eram
a. constatativos
(simples declarações) e
b. performativos
Os primeiros seriam
apenas relatos de situações que são ou que se acredita ser o caso: “a grama é
verde”, “Napoleão venceu a batalha de Waterloo”, etc. Sua característica é que
eles podem ser verdadeiros ou falsos.
Os segundos - que se tornaram famosos - seriam um tipo
peculiar de enunciado: mais do que apenas relatos, eles seriam atos. Pelo
simples fato de proferi-los, realizamos a ação expressa em seu conteúdo
proposicional. Assim, ao dizer “eu te batizo” ou “eu te absolvo”, o padre está
de fato batizando ou absolvendo o fiel. Ao dizer “prometo que pago”, eu estou
já comprometido com o referido pagamento.
Bem, por mais intuitiva e simpática que seja esta distinção,
Austin e Searle foram levados a abandoná-la,
exatamente em nome do conceito mais geral de ato de fala. Todo dizer é
fazer: o proferimento de qualquer
enunciado é um ato de
fala.
B.
O que se salva daquela intuição original é
uma distinção entre as dimensões do ato de fala:
a) Austin:
locucionária (o que é dito),
ilocucionária (o que é feito ao dizer – in
saying) e perlocucionária (o efeito produzido pelo dizer – by saying)
b) Searle:
junta as duas primeiras nas noções inseparáveis de conteúdo proposicional e
força ilocucionária (o que eu digo, e com que “força”). Assim, o mesmo conteúdo
proposicional, por exemplo “vai chover” pode ser proferido com a força de uma
constatação, de um aviso, de uma desculpa (para não aceitar um convite, por
exemplo), etc, dependendo do contexto. O aspecto perlocucionário diz respeito
ao efeito produzido pelo
proferimento: posso ter informado, tranquilizado, assustado meu interlocutor ao
proferir aquele enunciado.
Alguma confusão tem decorrido da
própria terminologia dos formuladores da teoria dos Speech Acts, que falam
muitas vezes dessas dimensões como
de outros tantos tipos de atos (especialmente
no caso dos “atos ilocucionários”, que em Searle chegam a ser sinônimo de “atos
de fala”).
3. O
impulso sistematizante, muito mais forte em Searle do que em Austin, foi
levando a novas tipologias: tipos de
atos ilocucionários (agora não mais de enunciados)
foram distinguidos. Austin propõe uma classificação provisória, como base para
futuras discussões distinguindo cinco categorias de atos a partir dos verbos
que os expressam: veriditivos, exercitivos, comissivos, expositivos e ‘behabitives’
(relativos a comportamentos, como agradecer, desculpar-se, parabenizar,
desafiar, protestar).
Searle sofistica essas categorias, introduzindo critérios de
diferenciação baseados em sua análise da intencionalidade. Agregados, esses
critérios resultam em outros cinco tipos de atos: assertivos, diretivos,
comissivos, expressivos, declarações (“você está despedido”, que pode ser
analisado como: “eu declaro: seu emprego aqui terminou”).
Todas essas análises
da teoria dos atos de fala levam sempre em consideração, e de forma igualmente central,
intenções dos falantes e fatores do contexto, tanto linguísticos (o sistema
de regras da linguagem) como extra-linguísticos (as instituições sociais e as condições
materiais em que os atos discursivos são realizados).
Isso tem favorecido
a sua apropriação por outros campos teóricos, como a psicologia, a psicanálise,
a sociologia, a política. Em cada uma dessas áreas, a teoria dos atos de fala é
adaptada aos respectivos campos teóricos, o que provoca deslocamentos mais ou
menos importantes nos conceitos originais e suas articulações internas.
Tais apropriações são
normais e inevitáveis, e não se trata aqui de forma alguma de restringi-las ou
condená-las. Tudo o que se sugere é um certo cuidado na transposição de
conceitos de um campo a outro, de forma a fazer deles uma aplicação realmente
fecunda, e não um uso simplesmente metafórico cujo principal resultado talvez seja
contribuir para a criação de um certo clima de ivresse
des grandes profondeurs.
Rejane Xavier
Brasília, maio de 2011
Searle – Para uma boa coleção geral de artigos sobre a Filosofia da Linguagem,
veja os seguintes:
veja os seguintes:
(de uma entrevista de Searle em 2007: http://www.pessoal.utfpr.edu.br/paulo/revel_8_entrevista_john_searle.pdf )Austin, How to Do Things with Words, Cambridge, MA: Harvard UniversityPress, 1962.Grice, Studies in the Way of Words, Cambridge: Harvard University Press,1989.Martinich, A. P, The Philosophy of Language 4th edition, Oxford UniversityPress, 2001.Searle, Expression and Meaning, Cambridge University Press, 1979.Searle, Speech Acts, Cambridge University Press, 1969.
E eu acrescento:
http://www.unisinos.br/publicacoes_cientificas/images/stories/pdfs_filosofia/vol7n3/art01_marcondes.pdf
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