terça-feira, 10 de maio de 2011

Observações sobre a teoria dos atos de fala


Com Searle, em Berkeley - 1982

Assistindo recentemente a uma defesa de tese de doutorado ouvi algumas referências à teoria dos atos de fala que me levaram a alinhavar as observações a seguir. Não se trata de apresentar ou resumir essa teoria, apenas de destacar alguns pontos básicos que me parecem requerer consideração mais detida.


1.      A teoria dos atos de fala não se restringe às situações de trocas linguísticas orais, como parecem entender alguns leitores. Speech acts, em inglês, significa atos discursivos, sejam eles efetivados por escrito ou verbalmente.
Austin apresenta inclusive, ao explicar seu conceito de enunciado performativo, o que ele chama de uma “forma normal” própria dos performativos formulados por escrito (um verbo na voz passiva na segunda ou terceira pessoa do presente do indicativo: “os visitantes são convidados a usar a passarela”, por exemplo). Mesmo orações escritas sob outras formas gramaticais, como simplesmente “cuidado com o cachorro” ou “favor manter a porta fechada” podem ser performativos, para Austin. Igualmente, ao afirmar: “Quando considero um ruído ou uma marca feita sobre um pedaço de papel (grifo meu) como uma instância de comunicação linguística”... Searle está claramente incluindo a comunicação escrita dentro da teoria.

2.      A teoria dos atos de fala não constitui um corpo fixo de doutrina. Ela evoluiu a partir das primeiras intuições de Austin, e foi tomando forma cada vez mais sistemática nos trabalhos de Searle. Em particular, há um deslocamento de uma distinção entre tipos de enunciado, proposta inicialmente por Austin, para uma distinção entre dimensões de um ato de fala (à qual chegou Austin posteriormente, e que foi desenvolvida por Searle).

A.    Os tipos de enunciado distinguidos inicialmente por Austin eram
a.      constatativos (simples declarações)  e
b.     performativos
Os primeiros seriam apenas relatos de situações que são ou que se acredita ser o caso: “a grama é verde”, “Napoleão venceu a batalha de Waterloo”, etc. Sua característica é que eles podem ser verdadeiros ou falsos.
Os segundos - que se tornaram famosos - seriam um tipo peculiar de enunciado: mais do que apenas relatos, eles seriam atos. Pelo simples fato de proferi-los, realizamos a ação expressa em seu conteúdo proposicional. Assim, ao dizer “eu te batizo” ou “eu te absolvo”, o padre está de fato batizando ou absolvendo o fiel. Ao dizer “prometo que pago”, eu estou já comprometido com o referido pagamento.
  
Isso funciona com uma série de atos como pedidos, ordens, ameaças, desculpas, etc, que são realizados pelo próprio proferimento dos respectivos enunciados. Desse tipo de enunciado não cabe indagar se é verdadeiro ou falso, mas sim (numa terminologia criada por Austin) se é feliz ou infeliz. E isso depende de certas condições do contexto: se eu sou fraco e impotente, não adianta ameaçar; se eu não sou um ministro religioso em pleno gozo das prerrogativas eclesiásticas, não resolve nada dizer “eu te absolvo”. Só um juiz ou notário pode proferir com felicidade o “eu vos declaro marido e mulher” e efetivamente casar os nubentes, e assim por diante.

Bem, por mais intuitiva e simpática que seja esta distinção, Austin e Searle foram levados a abandoná-la, exatamente em nome do conceito mais geral de ato de fala. Todo dizer é fazer: o proferimento de qualquer enunciado é um ato de fala.

B.    O que se salva daquela intuição original é uma distinção entre as dimensões do ato de fala:
a)      Austin: locucionária (o que  é dito), ilocucionária (o que é feito ao dizer – in saying) e perlocucionária (o efeito produzido pelo dizer – by saying)
b)      Searle: junta as duas primeiras nas noções inseparáveis de conteúdo proposicional e força ilocucionária (o que eu digo, e com que “força”). Assim, o mesmo conteúdo proposicional, por exemplo “vai chover” pode ser proferido com a força de uma constatação, de um aviso, de uma desculpa (para não aceitar um convite, por exemplo), etc, dependendo do contexto. O aspecto perlocucionário diz respeito ao efeito produzido pelo proferimento: posso ter informado, tranquilizado, assustado meu interlocutor ao proferir aquele enunciado.

Alguma confusão tem decorrido da própria terminologia dos formuladores da teoria dos Speech Acts, que  falam muitas vezes dessas dimensões como de outros tantos tipos de atos (especialmente no caso dos “atos ilocucionários”, que em Searle chegam a ser sinônimo de “atos de fala”).

3.      O impulso sistematizante, muito mais forte em Searle do que em Austin, foi levando a novas tipologias: tipos de atos ilocucionários (agora não mais de enunciados) foram distinguidos. Austin propõe uma classificação provisória, como base para futuras discussões distinguindo cinco categorias de atos a partir dos verbos que os expressam: veriditivos, exercitivos, comissivos, expositivos e ‘behabitives’ (relativos a comportamentos, como agradecer, desculpar-se, parabenizar, desafiar, protestar).
Searle sofistica essas categorias, introduzindo critérios de diferenciação baseados em sua análise da intencionalidade. Agregados, esses critérios resultam em outros cinco tipos de atos: assertivos, diretivos, comissivos, expressivos, declarações (“você está despedido”, que pode ser analisado como: “eu declaro: seu emprego aqui terminou”).

Todas essas análises da teoria dos atos de fala levam sempre em consideração, e de forma igualmente central, intenções dos falantes e fatores do contexto, tanto linguísticos (o sistema de regras da linguagem) como extra-linguísticos (as instituições sociais e as condições materiais em que os atos discursivos são realizados).

Isso tem favorecido a sua apropriação por outros campos teóricos, como a psicologia, a psicanálise, a sociologia, a política. Em cada uma dessas áreas, a teoria dos atos de fala é adaptada aos respectivos campos teóricos, o que provoca deslocamentos mais ou menos importantes nos conceitos originais e suas articulações internas.

Tais apropriações são normais e inevitáveis, e não se trata aqui de forma alguma de restringi-las ou condená-las. Tudo o que se sugere é um certo cuidado na transposição de conceitos de um campo a outro, de forma a fazer deles uma aplicação realmente fecunda, e não um uso simplesmente metafórico cujo principal resultado talvez seja contribuir para a criação de um certo clima de ivresse des grandes profondeurs.

Rejane Xavier
Brasília, maio de 2011

Searle – Para uma boa coleção geral de artigos sobre a Filosofia da Linguagem,
veja os seguintes:
Austin, How to Do Things with Words, Cambridge, MA: Harvard UniversityPress, 1962.
Grice, Studies in the Way of Words, Cambridge: Harvard University Press,1989.
Martinich, A. P, The Philosophy of Language 4th edition, Oxford UniversityPress, 2001.
Searle, Expression and Meaning, Cambridge University Press, 1979.
Searle, Speech Acts, Cambridge University Press, 1969.
(de uma entrevista de Searle em 2007: http://www.pessoal.utfpr.edu.br/paulo/revel_8_entrevista_john_searle.pdf )
E eu acrescento:
http://www.unisinos.br/publicacoes_cientificas/images/stories/pdfs_filosofia/vol7n3/art01_marcondes.pdf

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