sábado, 14 de maio de 2011

Tradicionalismo gaúcho

Este é um assunto que talvez vá parecer muito paroquial - para não dizer familiar - mas que eu acho que pode servir para provocar alguma reflexão sobre as tradições culturais: sua invenção, sua conservação, sua transmissão, sua transformação, sua convivência com a cultura urbana cada vez mais globalizada.

Existem, na minha turma de sobrinhos, duas "tribos" opostas em relação ao gauchismo. Os que o cultivam com fervor - coloco aqui o João Pedro e o Demétrio - e os que detestam a coisa. Estes, casualmente ou não, irmãos dos primeiros: o Ernesto Neto e o Guilherme.

O Ernesto, professor de francês, para implicar com o irmão pajador, declara detestar os "3 Pês" ( pago, prenda, pingo) que infestam a linguagem crioula.O Guilherme, oficial dentista da Brigada Militar, é mais complicado. Curte o gauchismo "autêntico", mas abomina as formas "deturpadas" que ele vem assumindo na sociedade do espetáculo e do consumo.

O assunto vem de longe, na família.


Na geração anterior - a minha - os irmãos praticamente todos fizeram parte do movimento tradicionalista original. Théo, Guilherme, Ernesto acompanharam os lendários Paixão Cortes e Barbosa Lessa em incursões pelo interior do estado, pesquisando causos, músicas, danças. Chegaram a fundar e manter um CTG, a Estância da Amizade, onde até minha irmã caçula, Giovanna,  -  precocemente exímia no violão e com uma bela voz de contralto - cantava, seguida desajeitadamente por mim.

Todos gostávamos das coisas do campo. Nós, as menores, passávamos as férias numa propriedade que meu pai manteve, por algum tempo, às margens do rio Jacuí, onde se plantava arroz. Ali, na Granja, montávamos a cavalo e ouvíamos histórias da campanha, antes que a luz elétrica e a televisão acabassem com aqueles saraus singelos. Também frequentávamos a fazenda onde morava a Galdina, nossa irmã mais velha,  em São Gabriel, com o marido e as quatro crianças. Não chegamos, é claro, a frequentar o famoso acampamento, a Barranca,  onde só os rapazes se reuniam por vários dias, em atividades das quais pouco ficávamos sabendo, mas que incluíam música, poesia, churrascos e campereadas diversas.

Bom, reminiscências à parte, preciso dizer que compreendo os dois lados que dividem os sobrinhos. Tomo mate com gosto, aprecio a boa música crioula, um baile desses de campanha, um chótis, um vanerão... Até aceito a bombacha, invenção dos turcos tardiamente introduzida pelos ingleses no pampa. Mas afinal, todos sabemos que tradições são inventadas constantemente, especialmente depois que o romantismo criou uma Idade Média mítica para fortalecer as identidades nacionais européias. O "vestido de prenda", inventado por Paixão Cortes - que certamente achou as roupas realmente usadas pelas mulheres da campanha muito sem graça -  não é nada excepcional, nessa linha.

Mas também me irrita o excesso de exibicionismo gauchista, tão contrário ao autêntico espírito do homem do campo. Me perdoem se estiver errada, mas os malabarismos com as boleadeiras ou a dança do facão com bombachas de cetim e chapelões enormes me parecem invenções mais para os espetáculos da Broadway do que para um resgate dos costumes pampeanos. Gosto muito de um livrinho do argentino Bioy Casares, Memoria de la pampa y de los gauchos (ou algo parecido, pois não o encontro mais), onde ele observa que la pampa é um termo - e um conceito - ausentes da linguagem do próprio gaúcho, e que só aparece quando se começa a falar do mesmo.

Buenas, para encurtar o causo, remeto ao texto do Guilherme sobrinho, que inspirou estas linhas:
http://rexcogitans.blogspot.com/p/guilherme-contra-o-gauchismo-idiota.html
E também a um video do Demétrio cantando o seu gauchismo, para equilibrar um pouco a balança
http://www.youtube.com/watch?v=5ELdrCMDcJY

5 comentários:

Ottaviano disse...

Entendo muito bem teu sobrinho. Sou filho de um casal de intelectuais sicilianos que usavam o termo "intelectual siciliano" para designar o baixo clero dos intelectuais sicilianos. E foi de minha mãe que ouví o termo "austriaco profissional" para definir Hitler -- na foto ele estava de calção e chapeu tirolez.

O curioso é que os dois eram sicilianissimos. Conheciam muito bem a história do Reino das duas Sicílias, a história de suas próprias famílias, a poesia em língua siciliana, as histórias dos santos (sendo ambos ateus), os lugares por onde andaram Ulisses, as sereias e os antigos sicanos. Mas isso para eles era cultura geral, ponto. Como conhecer a historia do Império Romano ou a Divina Comédia. Comigo eles falavam italiano castiço, mas me levavam para ver "l'Opera dei Pupi" onde em versos sicilianíssimos (a ponto de me serem as vezes incompreensiveis), Orlando, Rinaldo e Angelica lutavam entre si e contra os mouros.

Ou seja, ser siciliano na minha família não tinha nada de especial. Como não tem nada de especial ser gaucho, nordestino ou qualquer outra coisa. Todos os chineses são iguais para quem não é chines. São os próprios chineses que precisam barricar-se em identidades regionais e em sub-identidades menores dentro das regiões. Pra que os humanos precisam fazer isso eu não sei bem. Entendo melhor o porque -- que é a necessidade de identidade associativa.

De qualquer forma, em parte por influência de meus pais, faz muito tempo que eu me sinto apenas um membro da espécie humana que, por coincidencia, teve a biografia que tive. Poderia ter sido outra. E essa outra biografia teria tido suas próprias ilusões a respeito do seu "pertencer". Mas à especie humana eu estaria pertencendo, fosse qual fosse minha biografia. Esse é o único fato concreto. O resto é artesanato kitch.

Rex Cogitans disse...

Tem muitos Guilhermes nesta família: um é meu irmão (Guilherme Gaspar), outro é o filho dele (Guilhermão, o dentista) e outro o Guilherme Sobrinho (Guigô,sociólogo, filho do Raul, outro irmão). Quem escreveu a matéria que deu origem a essa troca de idéias foi o Guilhermão, meu sobrinho também, mas não o G-sobrinho... Entenderam? Nem eu.

Wagner disse...

Olhar de fora e de longe é sempre bom, a gente ve aquilo que ficava invisivel, apesar dessas coisas nao estarem escondidas. Imagina só as tradições do Centro-Oeste, são poucas. Todavia existem e, obvio, com certo grau de invencionice, muito similar ao RS.
Um dos termos que me parece extremamente curiosos no gauchismo é o termo "Pampa". Os argentinos o usam para referir as provincias ao sul da provincia de BAires. Lugares inospitos, pouca vegetaçao, absolutamente planos, as vezes poeirentos, lembrando um pouco aqueles filmes de velho-oeste, com cidadezinhas de madeira abandonada. Bem, não há uma única paisagem igual a essa no RS! Aquilo que chamamos de "Pampa" são coxilhas, verdes, um pouco menos de agua que a regiao litoranea, mas ainda assim com vida. "Pampa" é simplesmente sinonimo de solidao, de solidao essencial, de ver-se no mundo sozinho e ao mesmo tempo frente ao criador, só que em experiencia fisica e não mistica. Os lugares mais planos que temos, ao sul, ao longo da lagoa Mirim e da Mangueira, são cheios de vida. Embora a vegetaçao não seja alta, ela é suficiente para manter uma fauna rica, como no banhado do Taim.
Com o termo "Cerrado" ocorreu coisa similar ao termo "Pampa". Um colega aqui da UFG tem artigo sobre o uso da expressão na Revista da UFG do ano passado, muito interessante.
As cavalhadas de Pirenópolis são festejo importante em Goiás. Eu desconhecia completamente, mas o RS tambem teve cavalhadas, ali pertinho da gente em Gravataí e S.Antônio! Esses dias achei livrinho em PoA sobre o assunto.
Bem ou mal, com elementos inventados e elementos reais, o gauchismo "narra" nossa identidade. É da natureza da narrativa misturar realidade e ficção. Existem narrativas bestas, como há livros de merda por ai em abundancia, mas existe troço bom tambem. Forja uma identidade que de outro modo o mundo puro e nu não dos daria, já que os gauchos são a mescla de muitas origens e tradiçoes. Alias, visto de fora, como em Goias, por exemplo, os gauchos são concbeidos como italianos e alemaes, de olhos claros e brancos, bem o contrario da realidade.
No miolo do gaucho ha um goiano e no miolo do goiano ha um gaucho, os dois desconhecem esse fato simples. Infelizmente, em BSB essas coisas ficam invisiveis. (WS)

Zélia disse...

Gostei muito do Demétrio no violão. Mas não me pronuncio sobre gauchismo. Não entendo nada. na minha família não se praticava tradição gaúcha embora meu pai escutasse este tipo de música no rádio. Fui educada à moda polaca, com muita religião, muito estudo e vida doméstica. Talvez por isso hoje eu destesto ficar em casa. Quero sempre estar no mundo!

Graham disse...

Acho interesssante como as tradições são inventadas ou congeladas - nos tribunais britânicos os advogados usam as roupas do século 17 ou 18 e os famosos 'beefeaters' da Torre de Londres usam uniformes do século 16. Por que estas tradições são congeladas numa certa época?

No Paraíso Terrestre do País de Gales, onde Deus ensaiou a criação da versão Celestial, existia no século 12 uma competição entre poetas que durou vários séculos antes de cair em declínio. No fim do século 18 e no começo do 19o, este festival - chamado 'eisteddfod' - foi reinventado para incluir competições corais, usando somente a língua galesa. Isto foi uma maneira de lutar contra as políticas coloniais do governo inglês em Londres que visavam a extinção da língua galesa, junto com sua cultura, claro.

Então, apesar de serem inventadas a às vezes um pouco absurdas (os oficiais do 'eisteddfod' moderno usam roupas que os organizadores do século 19 pensavam ser iguais às dos druidas pre-romanos) as tradições são capazes de deempenhar um papel importante na luta de pequenos grupos contra a opressão.