segunda-feira, 9 de maio de 2011

ATOS DE FALA: SOBRE O USO DE ALGUMAS DISTINÇÕES


John Langshaw Austin (1911—1960)

A teoria dos atos de fala, que se originou nos trabalhos de J.L.Austin e foi sistematicamente desenvolvida sobretudo por J.R.Searle, distingue entre enunciados (sentenças gramaticalmente corretas e semanticarnente significativas de uma linguagem natural) e atos de fala (emissão de tais sentenças num contexto concreto de comunicação). Dizer algo, para os filósofos dos "Speech-acts", será sempre fazer algo; e o objetivo de suas reflexões será o de esclarecer sempre mais as modalidades dessa equaçāo, os sentidos em que podemos afirmar que "dizer é fazer”. 
Passando pouco a pouco a contestar o privilégio tradicionalmente concedido ao uso informativo da linguagem, a teoria dos atos de fala progressivamente o integra dentro de uma perspectiva mais ampla, onde esse uso aparece, ao lado de outros, como um dos usos possíveis da linguagem. 
O laborioso trabalho de investigaçāo da linguagem ordinária a que se dedicou Austin e a refinada elaboraçāo conceitual que construiu procuram dar conta das sutilezas e distinções que operam ao nivel desta linguagem, e neste contexto devem ser apreciados. 
Suas distinções conceituais, laboriosamente perseguidas, trabalhadas, elaboradas, finalmente refinadas ou rejeitadas, procuram dar forma a uma forte intuição básica, a de que dizer é (sempre) fazer. 
Na teoria dos atos de fala há pelo menos três distinções, de origem e status teórico muito diferentes, que se sobrepõem e misturam frequentemente, e que julgo importante restabelecer.
Descritivo vs prescritivo
A primeira é a distinção entre descritivo e prescritivo, que se aplica a enunciados, e que corresponde àquela entre juízos de fatos e juízos de valor, tendo como pressuposto a dicotomia entre fato e norma, entre "is" e "ought", entre “ser” e “dever ser”. 
Remontando pelo menos a Hume, que apontava um abismo lógico entre premissas formuladas no indicativo e conclusões imperativas, esta dicotomia foi, e continua sendo, objeto de ferozes discussões. Dentro do contexto da "speech-act theory", a tendência é abandoná-la. 
Para Austin, "the value-fact fetish" é um daqueles em relação aos quais ele "admit to an inclination to play Old Harry with": em bom português, mandar ao diabo. . . Quanto a Searle, a primeira aplicaçāo que ele propõe da sua teoria da linguagem é precisamente a reabilitação da chamada "falácia naturalista" (pretensão de derivar um "deve" de um "é").
Não é o caso de reabrir aqui o processo dessa argumentação. Interessa apenas sublinhar que tanto na motivação original de Austin, quanto na versão standard da teoria a distinção não tem nenhuma relevância, e se por algum motivo se achar conveniente retomá-la isso deve ser feito (com argumentos) contra aquela motivação e a formulação que lhe foi dada por Searle. Entretanto, é comum em análises de outros campos do conhecimento o recurso a essa pseudo dicotomia, frequentemente remetido à teoria dos atos de fala, onde sua vigência foi desde muito cedo descartada.
Constatativos vs performativos
A segunda distinção que importa ter em mente é a distinção (esta originalmente proposta por Austin, já em "Outras Mentes") entre enunciados constatativos e performativos. 
Primitivamente, o conceito de performativo pretendia contrastar com a idéia de enunciado declarativo ou constatativo. À tradicional "asserção", com sua propriedade característica de ser verdadeira ou falsa, se oporia um tipo peculiar de enunciado, cuja função seria fazer algo (como prometer, ameaçar, batizar, etc: coisas que se faz dizendo algo) e do qual não caberia inquirir se é verdadeiro ou falso, mas se é "fe1iz" ou "infeliz". 
Mas após ter levantado a idéia da distinção, Austin se declara impotente para encontrar critérios lingüísticos satisfatórios para estabelecê-la. 
A própria idéia de constatativo revela-se, sob a análise, menos clara e familiar do que parecia à primeira vista. O acúmulo de dificuldades ligadas à distinção tentativamente proposta leva Austin finalmente a abandoná-la: "temos talvez necessidade de uma teoria mais geral desses atos de fala, e nesta teoria nossa antítese constatativo-performativo terá diñculdade de sobreviver", dizia ele em Royaumont em 1958.
É assim que Searle, em "Austin on Locutionary and Illocutionary Acts"  considera que "o tema principal de How to Do Things with Words de Austin é a substituição da distinção original entre perfomativos e constatativos por uma teoria geral dos atos de fala". 
Como é facilmente observado, a idéia dos performativos não desapareceu com o seu abandono em seu contexto de origem. O conceito é largamente utilizado nos mais diversos setores, sem que se expliquem os fundamentos em que se apóia o seu resgate. Um conceito isolado pouco significa quando destacado da teoria de que faz parte, e os performativos, abandonados pela teoria dos atos de fala, vagam à deriva pelos campos teóricos, alimentando devaneios pretensamente eruditos.
Locucionário, ilocucionário, perlocucionário
A última distinção a que julgo necessário remeter é aquela entre os chamados atos (não mais enunciados) locucionários, ilocucionários e perlocucionários. 
Convencido de que dizer algo é (sempre) fazer algo, Austin procura agora tornar mais claros os diferentes sentidos em que isto se dá. Na verdade, a expressão espécies ou classes de atos não é feliz, pois se trata de dimensões ou de descrições diferentes de um mesmo ato. 
"Realizar um ato locucionário é, em geral, eo ipso, realizar um ato ilocucionário". Emitir certos sons, pronunciar certas palavras, veicular um significado, em suma, "dizer algo" é o ato locucionário: ao realizá-lo, o fazemos com uma certa "força" (nosso proferimento irá contar como uma informaçāo, uma ordem, uma promessa, uma pergunta), que caracteriza o aspecto ilocucionário (in saying). 
Num terceiro sentido, certos efeitos serão produzidos por nosso proferimento (by saying): consequências sobre os sentimentos, pensamentos ou ações do locutor, do(s) ouvinte(s) ou de outras pessoas, o que constitui o aspecto perlocucionário do ato de fala. 
Assim, Austin distingue entre "ele disse. . ." (ato locucionário); "ele afirmou. . ." (ato ilocucionário); "ele me convencen de que. . ." (ato perlocucionário). 
Searle, por razões teóricas ligadas à relação entre significado e força ilocucionária, não aceita a distinção austiniana entre ato locucionário e ilocucionário, substituindo-a pelo par ato proposicional/ato ilocucionário, dando assim maior peso ao fato de que "todo ato locucionário é um ato ilocucionário". 
Novamente aqui há uma ampla discussão, que de modo algum se pode considerar conclusivamente encerrada; mas as motivações e os refinamentos conceituais caminham sempre na direção de esclarecer a equação “dizer é fazer” e não no sentido de desmembrá-la.
Dessa forma, análises que proponham a supervalorizar a dimensão perlocucionária (os efeitos) separando-a da dimensão (i)locucionária do ato de fala precisam se apoiar em outras bases teóricas que não as da speech-acts theory. E são, naturalmente, convidadas a explicitar os seus próprios pressupostos teóricos.
A taxonomia dos atos ilocucionários
Há contudo, na teoria, outras distinções, como por exemplo a taxonomia dos atos ilocucionários, na qual parece abrir-se um lugar para o que foi possível salvar da intuição original da diferença constatativo/performativo.
Austin propõe sua classificaçāo ao final de How to do Things With Words, de forma tão despretenciosa que chega a parecer displicente, como uma espécie de balão de ensaio, distinguindo cinco espécies de atos ilocucionários: "verdictives", "exercitives", "commissives", "expositives" e “behabitives". 
Searle examina a questão em "A taxonomy of illocutionary acts” e  distingue, com base em doze critérios diferentes, que se compõem entre si, outras cinco espécies: “assertives", “directives", " commissives ", "expressives" e "declarations". Em Intensionality, Searle tem mesmo a pretensão de poder explicar "a razão profunda" pela qual os tipos são precisamente estes cinco e não outros.
Aplicações
A teoria dos atos de fala extrapolou rapidamente do contexto em que hvia sido criada. Habermas adaptou os conceitos da teoria a suas próprias preocupações, sobretudo à tese de que as questões práticas devem ser objeto de um tratamento cognitivo, acresentando novas distinções: "atos de fala descritivos", "regulativos", "expressivos".  
Inúmeras análises da teoria dos atos de fala se aplicam ao problema geral de "como é possível dizer uma coisa e significar (mean) outra", questão central na literatura, na política ou na psicanálise.  Os artigos de Searle ("Indirect Speech Acts", “The logical status of fictional discourse", "Metaphor"); Strawson ("Intention and Convention in Speech Acts"); Grice ("Meaning", "Logic and Conversation", "Utterer’s Meaning, Sentence-meaning, Word-meaning"); Schiffer ("Meaning"); Wright (“MeaningNN and Conversational Implicature") se incluem nesse caso.
Mas - e este é o último ponto que desejava introduzir neste comentário - o que caracteriza muitas vezes o emprego das distinções da teoria dos atos de fala nesses campos não é a falta de sofisticação teórica, mas o excesso. Toda a alusāo à teoria dos atos de fala me parece perfeitamente dispensável em muitas dessas análises sociológicas ou psicológicas, para cujos méritos ou defeitos ela pouco contribui. Acredito que tais análises ganhariam em simplicidade, economia conceitual e elegância se dispensassem pura e simplesmente essa referência. 
Não vai aí, naturalmente, nenhuma objeçāo de princípio a que instrumentos e conceitos de um determinado âmbito teórico sejam estendidos a outros campos além daqueles em função dos quais foram originalmente concebidos. Não quero sugerir que a teoria dos atos de fala não deve ser usada como instrumento em campos em que a linguagem desempenha um papel central. Isto não só pode se revelar um recurso extraordinariamente fecundo como é praticamente inevitável, num meio como o nosso, em que diferentes tradições e orientações especulativas convivem e coexistem. Mas constatar essa situação não facilita em nada o trabalho interteórico: pelo contrário, torna-o mais difícil.
T.S. Kuhn compara os diferentes paradigmas científicos (e creio que isso vale tambem para os filosóficos – com diferentes linguagens naturais, que cada indivíduo domina seja como falante nativo, seja como estrangeiro. A capacidade de transitar entre essas tantas linguagens passa pela instauração de um modo de vida, de formas de comunicação e de trabalho em que elas tenham efetivamente algo a dizer umas às outras e se possam fecundar mutuamente. Só assim se evita o nonsense, seja ele o da mera traduçāo escolar ou o da torre de Babel. 

Porto Alegre, março de 1984.
Revisado em Brasília, 2011.


AUSTIN, J.L. How to Do Things with Words. Oxford, Oxford U.P., 1978 (28 ed.) p.151
SEARLE, J .R. Speech Acts. Cambridge, Cambridge U.P., 1969. pp.132 ss.
AUSTIN, J .L. "Performatif-Constatif ”, in Cahiers de Royamont, La Phílosophie Analytique. Paris, Les Editions de Minuit, 1962. p.273.
AUSTIN, J .L. "Performatif-Constatif", p .275.
 ibidem, p.279
SEARLE, J .R. "Austin On Locutionary and Illocutíonary Acts", in BERLIN, I. et al. Essays on J.L.Austin. Oxford, Clarendon, 1973.
AUSTIN, J.L. How to do Things. . . p.98.
              A teoria dos atos “de fala” não se aplica, evidentemente, apenas aos proferimentos verbais: ameaças, promessas, congratulações podem ser realizadas por escrito. Juízes condenam por meio de sentenças escritas; presidentes, reis ou ditadores decretam medidas, e sancionam ou vetam leis da mesma maneira.
               Ibidem, p.102
SEARLE, J.R. "Austin on Locutionary. . .” p. 155.
AUSTIN, J.L. How to do Things. . . pp.151-163.
SEARLE, J.R. Expression and Meaning. Cambridge U.P., 1983, p.166
SEARLE, J.R. Intensionality. Cambridge, Cambridge U.P., 1983. p.166. 
KUHN,T.S. The Essential Tension. Chicago, Chicago U.P., 1977. pp.338-39. 


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