A
FOTOGRAFIA: descrição, interpretação, realidade ?
‘You don’t take a
photo, you make it’ – Ansel Adams.
A contraposição entre descrição (fiel, objetiva, “fotográfica”) e interpretação (subjetiva, “distorcida”) da realidade remete a um referente externo, “o mundo tal como ele é”. A este mundo – o mundo real – se atribui a capacidade de medir as diferentes “formas de abordagem” por seu maior ou menor “realismo”, isto é, de fidelidade ou proximidade ao modo como ele é.
Para tentar explicar
por que entendo que tanto esta contraposição entre descrição e interpretação,
como a noção de realidade que lhes é correlativa são enganadoras, acredito que seja útil traduzir partes do
importante artigo de Nelson GOODMAN, "The Way the World is".
Toda descrição,
poderíamos dizer, na linguagem da epistemologia dos anos 60, é sempre já
"theory-ladden", impregnada de teoria. O que vemos não são as
variações de energia das ondas luminosas que impressionam as nossas retinas.
Nosso cérebro processa de modo extremamente complexo a estimulação visual que o
olho capta através de mecanismos eles próprios seletivos. Somos sensíveis
apenas a uma fração do espectro luminoso, e a estímulos que perduram acima de
um certo tempo.
Isto não diz respeito "ao mundo como ele é" (se tal
conceito faz algum sentido depois que Kant fez a crítica da "coisa em
si"), mas à nossa capacidade de captar e processar um certo tipo de informação.
"A cócega não está na pluma, está na
mão", já afirmava Galileu, insistindo na relatividade das qualidades
secundárias. Nossa visão tridimensional na verdade é um produto da coordenação,
efetuada pelo cérebro, entre o campo visual bidimensional e a informação
motora, tátil-cinestésica, que nos dá a dimensão da profundidade. E,
além disso, a mesma informação visual, processada pelos mesmos mecanismos
fisiológicos, pode dar lugar a diferentes "ver-como", dependendo das
condições conceituais, culturais, psicológicas que determinam o enquadramento
dessa informação.
É clássico o exemplo de Hanson, que nos convida a imaginar uma visita a um
laboratório feita por um físico experiente e por seu filho de dois meses, que
ele traz ao colo. "O físico e a criança observam a mesma coisa, quando
olham para o tubo de raios X? Sim e não. Sim - têm consciência visual do mesmo
objeto. Não - o modo como têm essa consciência é profundamente diverso. Ver não
é apenas ter uma experiência visual; é também o modo como se tem essa
experiência.”[2]
Por que, apesar de
tudo, permanece tão forte a sensação de que a fotografia é a mais objetiva e
realista modalidade de reprodução do mundo? Por que julgamos certas fotos
"distorcidas" e outras "fiéis"? Ao que tudo indica, isso
tem a ver com o fato de que nos acostumamos com certas convenções a tal ponto
que nos tornamos inconscientes delas, assumindo-as como uma espécie de
"segunda natureza".
Ao falarmos ou
lermos em português, a linguagem é uma espécie de meio transparente em que nosso
pensamento evolui; ao fazê-lo numa língua estrangeira, temos de lutar com as
convenções da sintaxe e da semântica, e nos damos conta das mesmas. Mas se,
como sugeriu Pascal, a cultura é uma segunda natureza, a natureza não seria por
sua vez apenas uma velha cultura? As convenções visuais que hoje nos parecem
"naturais" - a começar pelas regras da perspectiva - foram sendo
sedimentadas historicamente na nossa cultura, e a câmera fotográfica nos parece
objetiva e fiel exatamente porque se constitui numa materialização dessas
mesmas convenções!
Se a fotografia
materializa, incorpora, as convenções canônicas da representação visual, ela
pode também contribuir, e tem contribuido, para sondar as possibilidades e os
limites dessas convenções, ajudando-nos a tomar consciência das mesmas e
eventualmente a superá-las.
Um novo modo de
olhar foi tornado possível pela fotografia, técnica que popularizou e
multiplicou as possibilidades de produção da imagem, que até meados do
século XIX eram privilégio das elites sociais. Como objetos, as imagens
passam a fazer parte, reflexivamente, da própria realidade. Pode-se encomendar,
fazer, retocar, comprar, vender fotografias, como se faz com as roupas, os
móveis, as casas.
De modo quase
insensível, nosso contato com o mundo vai se tornando cada vez mais dependente
da imagem. Quantos lugares, pessoas, obras de arte, "conhecemos" sem
nunca os termos visto diretamente, mas apenas através da foto, do cinema, da
televisão?
Nossa relação com a realidade passa a
ser mediada, condicionada pela imagem, num processo em que a famosa perda da
"aura" da obra de arte, analisada por Walter Benjamin, é apenas uma
das facetas. A economia não funciona para satisfazer necessidades: o que a move
são os desejos de consumo, e estes, em grande parte, são despertados
pelas imagens dos produtos, que a publicidade oferece. As imagens atrozes da
guerra do Vietnam revoltaram o mundo; as imagens "clean" da guerra do
Golfo tranquilizaram as consciências ocidentais. Somos nós, ainda, quem fazemos
as imagens, ou são elas já a nos fazer?
A fotografia como
"arte" explora novas possibilidades dessa linguagem que nasceu
codificada a partir das proporções da camera obscura, das relações da
perspectiva renascentista, da ilusão de uma transposição fiel da realidade como
ela é em si mesma. Essa exploração de novas possibilidades de visão, contudo,
não deve ser "rebaixada" de seu alcance ontológico revolucionário:
não se trata de meras "interpretações" ou "leituras" de uma
realidade indiferente em si mesma a essas divagações. É uma nova realidade,
são novas realidades o que emerge dessas tentativas, quando bem
sucedidas.
Nietzsche diz que um
conceito não passa de uma metáfora congelada: "o conceito, ósseo e
octogonal como um dado e tão fácil de deslocar quanto este, é somente o
resíduo de uma metáfora"...[3]
O que consideramos realidade
são nossas sensações enquadradas por sistemas de tais conceitos, esqueletos
congelados de velhas metáforas, parcialmente aquecidos pelo calor da
inquietação estética, e permanentemente recobertos por novas camadas de
convenções esquecidas. Mas essa
solidificação não é, e não precisa ser, definitiva. Pelo menos não para nós,
seres humanos. "Tudo o que destaca o homem do animal depende dessa
aptidão de liquefazer a imagem intuitiva em um esquema, portanto de dissolver
uma imagem em conceito." [4]
Também para
Wittgenstein, "a Mitologia pode
voltar a um estado de fluxo, o leito do rio onde correm os pensamentos pode se
deslocar." [5]
“O mundo como ele é”
e “como nós o vemos”, realidade e interpretação, imagens e conceitos se
interpenetram de formas variáveis e dinâmicas – e isso longe de nos fazer
perder o pé e afogar-nos no mar do relativismo nos abre as portas para a beleza
e a plasticidade das múltiplas realidades que podemos tornar habitáveis,
sucessiva ou simultaneamente.
Rejane Xavier
[1] em Problems and Projects, New York ,
Bobbs-Merrill, 1972
[2] N.R.HANSON, "Observação e Interpretação", em
MORGENBESSER,S. (org) Filosofia da Ciência, São Paulo, Cultrix, 1967
[3]
F.NIETZSCHE "Sobre verdade e mentira", em Os Pensadores ,
São Paulo, Abril, 1978.
[4] (ibidem)
[5] L.WITTGENSTEIN On Certainty. New York , Harper and Row, 1972. § 97
Um comentário:
è bem nessas, faz todo o sentido. Mas "realista", em fotografia, é uma contraposição a pintura. NA real, uma fato de maça, ou sua pintra, são mesmo duas "não maças", ainda que uma tenha sido captada (a foto) e a outra construida mais demoradamente. A pintura é humana e produzida, a foto é "mecânica", e revelada. E cá entre nós, a foto é muito mais realista que a pintura....Ainda mais com uma canon 7D, show de bola. O maior ou menor realismo de duas versões, não faz a mais realista, real, mas que engana, lá isso sim. Flávio XAvier (vejam meu blog de fotos em (http://br.olhares.com/galeriasprivadas/browse.php?user_id=157703 )
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