terça-feira, 9 de junho de 2009

A televisão, um perigo para a democracia?


A televisão apela para a violência, o sexo e o sensacionalismo em doses muito superiores àquelas em que tais elementos estão de fato presentes na vida social e na experiência de cada um, especialmente das crianças. Se a educação é um processo de seleção dos estímulos aos quais são submetidos os indivíduos em formação, de modo a inculcar e reforçar em suas mentes e em seus sentimentos valores superiores àqueles que resultariam do livre desenvolvimento de seus instintos primitivos, a televisão tal como vem funcionando é a anti-educação mais perfeita que se poderia conceber.
(Leia este post também em inglês)

O exagero de cenas de sexo e de violência na televisão, em horários em que crianças e adolescentes formam grande parte da audiência, tem suscitado, em setores cada vez mais amplos da sociedade, o clamor por algum tipo de medidas de controle, por parte de alguma espécie de autoridade responsável.
Nos Estados Unidos, uma situação semelhante provocou uma forte reação social, alimentada por ampla discussão sobre o código de ética da indústria cultural, a autoridade dos pais para escolher o tipo de influência psicológica e moral que consideram adequada para a educação de seus filhos, as formas mais eficientes para garantir a liberdade de opção de cada um no seio de uma sociedade que reconhece e aceita o pluralismo ético e cultural.
No Brasil, o tema desencadeia dois tipos opostos mas convergentes de reação epidérmica e visceral. Paladinos incondicionais da livre iniciativa, de um lado, consideram absurda qualquer ingerência, vinda de onde vier, sobre a “liberdade de criação e de informação” exercida pelas empresas de telecomunicação. Intelectuais e artistas autenticamente democratas e bem intencionados, de outro lado, escaldados pela experiência da ditadura, tremem ante qualquer coisa que lhes pareça uma evocação do odioso espectro da censura, e levantam-se a uma só voz contra a mais remota sombra de “ameaça à liberdade de expresão”. Diante dessa dupla e sólida barreira, a discussão racional sobre a influência e o papel dos meios de comunicação de massas se torna extremamente delicada.
Foi certamente com a preocupação de trazer para o campo da racionalidade esse debate que o filósofo Karl Popper, vienense radicado na Inglaterra, escreveu o libelo cujo título é, precisamente, A televisão: um perigo para a democracia.
Popper é conhecido por seus trabalhos em defesa do liberalismo político e social (A sociedade aberta e seus inimigos, entre outros) e sobre a lógica, a psicologia e a biologia do conhecimento. É em nome do liberalismo e da racionalidade que ele questiona a inércia da sociedade em geral, e das instituições políticas em particular, diante do poder da televisão. A televisão passou a ameaçar a democracia pelo excesso de poder que adquiriu, e porque corrói, segundo Popper, o alicerce básico do Estado de direito, que é a recusa da violência.
A televisão apela para a violência, o sexo e o sensacionalismo em doses muito superiores àquelas em que tais elementos estão de fato presentes na vida social e na experiência de cada um, especialmente das crianças. Se a educação é um processo de seleção dos estímulos aos quais são submetidos os indivíduos em formação, de modo a inculcar e reforçar em suas mentes e em seus sentimentos valores superiores àqueles que resultariam do livre desenvolvimento de seus instintos primitivos, a televisão tal como vem funcionando é a anti-educação mais perfeita que se poderia conceber. Ela expõe o público a uma seleção às avessas, banaliza o crime e o escândalo, desassocia o sexo do sentimento e da responsabilidade, hiperexcita ao consumo e escamoteia o trabalho. E tudo isto de uma forma particularmente nociva para os mais jovens, que distinguem com menos nitidez as fronteiras entre a vida e a ficção, até porque sua experiência está muito mais impregnada pelas fantasias da tela do que pelas realidades do mundo.
Nenhuma sociedade pode ser melhor que a soma dos indivíduos que a compõem, e a democracia não tem condições de sobreviver se deixar de produzir sua base: o cidadão civilizado, que não é produto do acaso, mas de um delicado processo educativo.
A análise de Popper é perfeitamente consistente com as conclusões a que aportou Freud em seu estudo sobre O malestar na civilização. No íntimo de cada ser humano, mostra Freud, trava-se um luta entre dois grandes impulsos, duas poderosas fontes de energia: Eros, o impulso do amor e da vida, e Thanatos, o impulso de morte e destruição. A civilização, à primeira vista, aparece como repressora de Eros, competindo com a sensualidade desenfreada, já que disputa com o sexo a energia criativa dos indivíduos para outras tarefas: a cooperação, o conhecimento, as artes. Mas à medida em que a reflexão de Freud avança, ele mostra como é muito mais oneroso, do ponto de vista libidinal, o tributo que Thanatos precisa pagar à civilização. A repressão à agressividade, à violência, à destrutividade, não traz as recompensas que a sublimação do impulso sexual acarreta. Nas sociedades avançadas, a competição - esportiva, pelo poder, pelo dinheiro - se torna a única válvula de escape, mas envolve mecanismos muito complexos, e concentra uma carga de angústia e stress quase insuportável.
Na caixa mágica da televisão, os demônios primitivos são invocados e seus poderes liberados. A repressão e a angústia inevitavelmente geradas pelo processo civilizatório são esquecidas, ante a poderosa catarse que liberta os impulsos contidos e canalizados pela sociedade. O resultado entretanto, como temos visto, está muito mais para Hobbes do que para Rousseau. O que emerge dessa descompressão não é o bon sauvage, mas o homem lobo do homem, pronto a se lançar na guerra de todos contra todos.
Refugiar-se na mera reiteração retórica dos princípios da liberdade de expressão ou de iniciativa é passar inteiramente ao lado da questão. Esses princípios são eles próprios o coroamento de um processo político secular, de penosa substituição da barbárie pela civilização, da lei da selva pelos direitos humanos. Eles deixam de fazer sentido sob o império do vale-tudo, da lei do mais forte. Sem sociedade organizada, e sem educação que a torne possível, não há liberdade de iniciativa nem de expressão.
Assim como os regulamentos do trânsito não oprimem, mas tornam possível o exercício do direito de ir e vir, ou as exigências sanitárias sobre os alimentos oferecidos ao consumo da população não ferem a liberdade de produzir dos agricultores e comerciantes, a regulamentação da programação das emissoras de TV não configura nenhuma agressão aos direitos do cidadão. Pelo contrário, é uma questão de sobrevivência da própria forma de sociabilidade que torna esses direitos possíveis.
Sobretudo se, como querem as vozes mais lúcidas nesse debate, os indispensáveis limites vierem a ser traçados de forma consciente e voluntária pela própria sociedade, através de um processo flexível e democrático de composição dos múltiplos interesses e pontos de vista legítimos dos diferentes grupos e segmentos que a compõem.
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* Publicado no Correio Braziliense, em 13/08/1995