sábado, 14 de novembro de 2009

Por que as mulheres não gostam da política?


Qual a vantagem de estimular a participação feminina, se for para continuar repetindo “mais do mesmo”, só que com batom?


O Brasil é um dos países com mais baixa participação das mulheres na política: certo ou errado?

Certo, se medirmos o percentual de mulheres em cargos eletivos, do executivo ou legislativo. São muito poucas as governadoras e prefeitas, as vereadoras, deputadas ou senadoras. Mesmo as ministras, secretárias estaduais ou municipais – cargos não eletivos, mas que em geral pressupõem uma militância partidária ou alguma experiência eleitoral – são raras.

Errado, se considerarmos “política” a vida pública em geral. Mulheres estão muito presentes no judiciário; participam muito em movimentos sociais, em iniciativas comunitárias, em associações profissionais, no voluntariado religioso ou empresarial.

Não há restrição ou preconceito que impeça a mulher brasileira a participar de tudo o que a interessa. Mulheres têm preparo intelectual e profissional: há mais mulheres universitárias do que homens; há mais meninas alfabetizadas do que meninos. Mulheres têm competência e experiência; são capazes de liderar, sabem se comunicar, e mostram isso todos os dias, na família, no esporte, no trabalho na iniciativa privada ou no serviço público. Uma em cada quatro famílias, no Brasil, é chefiada por uma mulher.

Por que, então, não há mais mulheres na política partidária e institucional?

A resposta não é simples, os fatores são múltiplos, mas uma parte da resposta tem certamente a ver com as características do nosso sistema político, que contribuem para afastar a participação feminina. As mulheres não gostam da forma como se faz política no Brasil.

Lembro de uma reunião de que participei, na qual se perguntava a várias mulheres politicamente engajadas e esclarecidas por que elas relutavam em se filiar a um partido e atuar partidariamente. Uma das respostas foi que nos partidos existe uma “concorrência predatória”, onde os próprios companheiros travam ferozes disputas dentro do mesmo espaço eleitoral.

Isso seria a antítese do ideal que movia aquelas mulheres a atuar politicamente, porém fora de partidos: o ideal de agir em conjunto, de forma colaborativa, por algo que elas consideravam certo e bom para a sociedade.

De certa forma, portanto, as mulheres são poucas na política institucional não porque sejam impedidas de participar, mas porque não gostam dela. As mulheres não se sentem à vontade com o estilo de atuação que predomina nos partidos e nos círculos do poder: alianças esdrúxulas, rasteiras nos companheiros, negação de qualquer reconhecimento a algo feito pelos adversários, “verdades” que se moldam às circustâncias, ética que se acomoda aos objetivos do momento.

E qual seria a vantagem de estimular a participação feminina, se fosse para continuar repetindo “mais do mesmo”, só que com batom?

Mulheres no poder simplesmente não mudará nada, e provavelmente nem acontecerá, se não for para mudar o poder. Que diferença farão mulheres se comportando como homens – como essa espécie de homens que são os políticos – com o mesmo estilo, os mesmos objetivos, a mesma forma de atuação?

Uma política feminina, um “poder feminino” – mais solidário, menos individualista, com mais cuidado e menos competição – precisa surgir pelas e para as mulheres, para que tenha sentido e se torne viável a palavra de ordem “mulheres no poder”

domingo, 18 de outubro de 2009

Conversa no avião


Ultimamente, tenho viajado mais para o sul. Comprei um apartamentinho em Porto Alegre, vou lá a cada dois meses. “Mirando al sur” – os argentinos também têm alguma coisa mística com o sul, só que para eles isso é bem mais abaixo, a Patagônia, a Terra do Fogo. Para mim, o sul já meio mítico é mesmo Porto Alegre, as ruas de Mário Quintana... e aí é que entra a história do avião.

Numa dessas idas, comecei a conversar com a moça da poltrona ao lado. Gaúcha, formada em Física, trabalhando numa grande empresa do Centro-Oeste. Levava uma enorme orquídea para a mãe, para plantar no sítio, em Tapes. E entre uma série de coincidências –o interesse pelas plantas e pelas ciências, o trabalho longe da família, as visitas periódicas – a observação que me despertou estas memórias.

“Gosto mesmo é de chegar em casa e sair para caminhar nas ruas que eu conheço”, disse ela. “Caminhar nas ruas que a gente conhece” – tem alguma coisa, além da madeleine de Proust, com tanto poder para tirar o pó das lembranças, para transportar corpo e mente para sensações que pareciam perdidas para sempre?

Vim para Brasília em 1991. Mulher de político, na época, embora estudasse jornalismo na UnB e desse aulas na mesma universidade, eu continuava ligada à UFRGS, e voltava seguidamente a Porto Alegre. Mantinha a casa lá, acompanhava as festas da família, o crescimento dos sobrinhos, as histórias das amigas, as candidaturas e as campanhas dos políticos de lá. Não me sentia brasiliense.

Mais tarde, em 1994, vim para ficar. Já aposentada na Universidade, separada, trabalhei, fiz novas amizades, montei nova casa, vivi novos relacionamentos, encontrei novo companheiro. Continuei ligadíssima com a família e os amigos de lá, mas principalmente pela internet, pelos álbuns de fotografias, pelas raras visitas. Ia lá para votar – meu título eleitoral nunca foi transferido -, mas não queria me sentir portoalegrense.

Agora estou numa fase diferente, numa espécie de “dupla naturalidade”. Gosto cada vez mais de Brasília, já acho bonitas as árvores retorcidas do cerrado, não passo tão mal na seca, minhas amigas novas daqui já são velhas amigas. O mapa sentimental do meu novo casamento – que já dura mais do que muitas primeiras uniões – é um mapa de Brasília.

Mas Porto Alegre vai tomando uma proporção cada vez maior. Algumas saudades doídas, mas a maioria boas lembranças, e a consciência crescente de que a memória gruda no corpo, não se sacode tão fácil. Desculpa, Mário Quintana. De Porto Alegre, cidade do meu andar, não me comovem as ruas em que não andei . Sinto uma dor infinita, das ruas de Porto Alegre, onde tanto passeei...

O MAPA
(Mário Quintana)
Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...
(É nem que fosse o meu corpo!)
Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...
Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)
Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)
E talvez de meu repouso...

Apontamentos de História Sobrenatural

domingo, 20 de setembro de 2009

Palavras de mulher

Há alguma coisa que parece que não combina entre as mulheres e a vida pública. Na política, é bem evidente o déficit de feminilidade. Mas por que será que as mulheres, que têm maior índice de alfabetização, mais anos de estudo, maior proporção nos cursos universitários, ainda são muito menos visíveis – e audíveis – na esfera social?

Reitores das Universidades Federais com o presidente Lula
Foto: Ricardo Stuckert/PR (2008)
Reparem na mesa de qualquer solenidade: mesmo quando o auditório é maciçamente feminino, mesmo quando se trata de atividades em que as mulheres exercem a maior parte das funções, as “autoridades” em geral são homens!

Uma figura masculina de certa importância, independentemente de sua formação acadêmica, é automaticamente chamada de “doutor”. Se uma mulher chega a ocupar um espaço de destaque, quase fatalmente será apresentada como “professora”... Será que aquele ridículo “todos e todas” do início dos discursos revela uma certa culpa diante dessa diminuição, e procura compensá-la?

Na minha infância, havia uma história em quadrinhos – Laura Jane e Tiquinho – em que a menina tinha uma fórmula para encolher de tamanho: areia da grossa, areia da fina, areia me faça ficar pequenina... Mágica inútil, meninas. Precisamos é do contrário, um sortilégio que nos faça voltar ao nosso tamanho natural!

Bem, essas divagações são para comentar um fenômeno auspicioso: na internet, na blogosfera, as vozes femininas estão se fazendo ouvir cada vez mais. Para surpresa de muitos, que nunca desconfiaram de que por baixo daquelas cabeleiras bem tratadas houvesse cérebros, que detrás das pálpebras coloridas um olhar sensível registrasse mil nuances e possibilidades da realidade, que das bocas pintadas pudessem sair palavras próprias... Divertidas, novas, acalentadoras, desafiadoras, rebeldes, poéticas, criativas, as mulheres estão falando na rede!

Querem ver? Comecem pelos endereços das minhas amigas

http://palavrasabracadas.blogspot.com/;
http://www.poesiaemtemporeal.com/;
http://hrimasvirtuais.blogspot.com/

Ouçam, curtam e vão em frente, em busca de outras vozes – talvez a sua própria!

Rejane Xavier
Setembro 2009

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Sobre a indução e as ciências empíricas


O núcleo epistemológico da discussão sobre a indução e seu papel na metodologia das ciências empíricas pode ser resumido numa pergunta muito simples: o princípio da indução é, e deve ser, a base das ciências empíricas modernas ou, posto sob suspeição desde Hume, no século XVIII, estaria hoje praticamente desacreditado, tendo sucumbido às críticas de Popper e ao paradoxo de Hempel?

O conceito de indução (o tipo de raciocínio que nos leva a tirar conclusões gerais, ou a fazer previsões sobre casos não observados, a partir dos casos que já observamos) tem um longo passado filosófico, que vale a pena revisitar.

Aristóteles foi quem primeiro se ocupou sistematicamente da indução, e deu-lhe um fundamento que dependia da sua metafísica, isto é, do que ele pensava a respeito da natureza da realidade e do conhecimento. O conhecimento científico era, para Aristóteles, essencialmente classificatório. Num mundo de seres que se organizam e se hierarquizam de acordo com formas ou essências imutáveis, um enunciado científico afirma de um indivíduo que ele pertence a alguma espécie, ou de alguma espécie que ela pertence a um gênero. O indivíduo é o caso concreto, o particular; afirmar que ele pertence a uma espécie é determinar a sua essência, captando o que há nele de universal. Os universais, as essências, segundo Aristóteles, existem nas coisas, nos particulares. A indução (in-ducere, conduzir para dentro) consistiria exatamente nesse reconhecimento do conceito (o universal) dentro do sensível (o particular). Ao observarmos o comportamento de um fenômeno em diversos casos particulares e reconhecermos uma regularidade, seríamos levados naturalmente a inferir que este comportamento regular é uma manifestação da essência do fenômeno, e a prever que o mesmo comportamento se manifestará nos casos que vierem a ser observados futuramente. Esse é, basicamente, o modo como Aristóteles entende e justifica a indução.

Depois de dois mil anos de reinado quase absoluto, as idéias metafísicas de Aristóteles passaram a ser contestadas pela filosofia moderna. Hume, em particular, rejeitou o essencialismo aristotélico, e com isso solapou as bases da indução. A ligação entre os casos particulares e a lei geral deixa de depender da presença do universal na coisa, e passa a ser vista como resultado de mera expectativa subjetiva, com base no hábito. Com isso, Hume não rejeita nem desvaloriza a indução como recurso da vida quotidiana ou da ciência empírica: apenas priva da pretensão de certeza metafísica, absoluta, inquestionável, o conhecimento obtido por meio dela.

A crítica humeana à teoria aristotélica da indução não impediu que o empirismo lógico, concepção dominante na filosofia da ciência até os anos 50, defendesse uma visão indutivista do método científico. Acreditava-se que as leis gerais das ciências empíricas eram obtidas por indução a partir da observação de casos particulares, constituindo um simples resumo ou "condensação" da experiência concreta. Além de ser obtidas por indução, as leis gerais, para os empiristas lógicos, seriam confirmadas também indutivamente. Quanto mais instâncias positivas (casos particulares que concordam com a lei) fossem observadas, maior seria o grau de confirmação da lei ou hipótese. Aliás, leis seriam apenas hipóteses com grau de confirmação suficientemente elevado. Foi a idéia de grau de confirmação que levou a tentativas de aplicação do cálculo de probabilidades a essa discussão, sem maior êxito.

O descrédito da concepção indutivista do método científico foi obra em grande parte de Popper. Popper pretendeu ter resolvido o problema da indução de maneira nova e radical: simplesmente mostrando que não existe o problema da indução na ciência empírica, pela boa razão de que a ciência empírica não é indutiva. Hipóteses científicas nem são obtidas por generalização indutiva, nem são confirmadas pela repetição de casos positivos. A ciência procede por conjeturas (generalizações ousadas, sem apoio lógico na experiência) e refutações. O que fortalece nossas hipóteses é a sua resistência às tentativas engenhosas e honestas de refutação a que forem submetidas e às quais conseguirem sobreviver. A esse processo, Popper chama corroboração.

Toda a teoria de Popper sobre o método científico repousa em última análise sobre uma aparentemente curiosa propriedade lógica dos enunciados universais. As hipóteses e leis científicas costumam expressar-se como enunciados universais: "sempre que há expectativa de congelamento, os preços são aumentados", por exemplo, ou "todos os corvos são pretos", mais simplesmente. Podemos expressar a estrutura lógica mais grosseira dessas leis através da forma "sempre que A, B", ou A -> B ("A implica B"). Pois bem, centenas ou milhares de casos onde A é acompanhado ou seguido de B não eliminam a possibilidade lógica de que A possa vir a ocorrer sem B. Entretanto, um único caso observado de A sem B derruba a lei geral, que afirma universalmente a implicação de B por A.

Essa assimetria lógica foi o que levou Popper a sustentar que os enunciados universais, embora não possam ser confirmados, podem ser refutados. Logicamente, "todos os corvos são pretos" é equivalente a "se algo não é preto, então não é corvo". Uma única observação de um corvo não-preto derruba um enunciado geral que concorda com milhares de observações de corvos pretos. Aqui, é preciso ter cuidado com dois erros lógicos que se cometem com muita facilidade, a tal ponto nos parecendo naturais que receberam o nome especial de falácias: a falácia da afirmação do consequente, e a falácia da negação do antecedente. Um exemplo nos ajudará a entendê-las.

Seja a hipótese ou lei geral: "se há expectativa de congelamento, então os preços aumentam", que representaremos por "se A, então B", ou A->B. Poderíamos ser tentados a pensar que sería lícito concluir, com base nessa lei que "se não há expectativa de congelamento, os preços não aumentam" (não-A -> não-B), ou que "se os preços aumentaram, então havia expectativa de congelamento" (B->A). Acontece, entretanto, que nenhuma dessas duas afirmações é consequência da nossa hipótese inicial, e ambas podem muito bem ser falsas enquanto aquela é verdadeira. Pode perfeitamente ocorrer que não haja expectativa de congelamento e os preços aumentem por outros motivos (quebra de safra, por exemplo); isso mostra que é possível que os preços tenham aumentado sem que houvesse expectativa de congelamento. Essas duas últimas afirmações são logicamente equivalentes entre si, mas não à primeira.

É neste ponto que entra Hempel, com seu famoso paradoxo dos corvos. Hempel também se baseia na equivalência lógica entre “A->B” e “não-B -> não-A”. Seu objetivo, entretanto, é uma crítica da idéia de confirmação de um enunciado geral por suas instâncias positivas. É razoável supor que tudo o que confirma um enunciado, confirma também os enunciados que lhe são logicamente equivalentes. Mas, nesse caso, cada confirmação do enunciado não-B->não-A é também uma confirmação do enunciado A->B. Observações as mais disparatadas "confirmam" o enunciado "se algo não é preto, então não é corvo". Cada coisa não-preta que observamos e que não for um corvo o confirma: esta parede, meu sapato, o Taj-Mahal não são pretos e não são corvos. Mas nossa intuição nos diz que isso não tem nada a ver com o enunciado, logicamente equivalente, "todos os corvos são pretos".

O paradoxo de Hempel mostra que a confirmação não é uma operação puramente lógica, o que aliás não deveria ser tão surpreendente assim. Quando se trata de ciência empírica nem todos os problemas podem ser resolvidos apelando simplesmente à lógica ! Hempel não coloca em dúvida a legitimidade da indução como princípio metodológico da ciência empírica, mas nos leva a questionar a teoria filosófica que sustenta serem os enunciados gerais das ciências empíricas confirmados logicamente pelos casos positivos observados.

Somando-se as críticas de Popper e de Hempel, teríamos que nem a indução é o caminho que leva à formulação das leis científicas, nem a confrontação indutiva das mesmas com a experiência lhes assegura a confirmação.

Há outros paradoxos lógicos associados à confirmação, como o das esmeraldas verzuis de Nelson Goodman. Muito complicado para ser apresentado aqui, ele mostra que a mesma base empírica - os mesmos fatos observados - pode dar lugar a diferentes (e incompatíveis) projeções indutivas, o que vem a reforçar uma saudável dose de ceticismo quanto à obrigatoriedade de aceitar conclusões indutivas, sejam elas quais forem.

Mais longe do que isso vão as idéias contraindutivas de Paul Feyerabend. Para Popper, o momento mais essencial do método científico (aquele em que as idéias ousadas, as conjeturas, devem enfrentar o tribunal da experiência) deve passar pela busca de dados que contrariem a teoria. Para Feyerabend, não só devemos procurar dados que contrariem nossas teorias, como precisamos procurar teorias que contrariem os nossos dados (e as nossas velhas teorias). Inspirando-se em J.Stuart Mill, e apoiando-se não em razões lógicas, mas humanísticas, Feyerabend propõe-se a, dessa forma, enriquecer a metodologia científica. A contradição funcionaria como um "princípio de proliferação", crítico, criativo, pluralista, agindo no sentido de desesclerosar as categorias científicas e de nos tornar capazes de pensar, sentir, ver, experimentar o mundo de maneiras alternativas.

Além de buscar teorias que estejam de acordo com os fatos, para Feyerabend a ciência empírica deveria também trabalhar com hipóteses inconsistentes com teorias ou com dados bem estabelecidos. Talvez aparentemente absurda, essa sugestão "anarquista" apresenta bons fundamentos históricos. Ao afirmar o movimento da Terra, a evolução das espécies ou a sexualidade infantil, Copérnico, Darwin e Freud não estavam por acaso contrariando teorias e "fatos" bem estabelecidos e aceitos?

Podemos encerrar este apanhado da questão afirmando que não é adequado entender as teorias empíricas, especialmente as mais avançadas, como meras generalizações indutivas de observações recolhidas espontaneamente ou de modo mais ou menos sistemático. São construções conceituais altamente complexas, que envolvem desde simplificações drásticas em seu ponto de partida (como quando a Física pretende se ocupar de "sistemas isolados", ou a Economia se propõe a tratar da "concorrência perfeita"); postulações de processos e entidades não observáveis; aparatos matemáticos sofisticados; pressuposições metafísicas muitas vezes não explicitadas; até recortes do real frequentemente carregados de viezes ideológicos, entre tantos outros elementos!

Entender como tudo isso funciona é tarefa fascinante, e entender a relevância dessa questão é essencial para ter, da ciência empírica, uma visão dinâmica e não dogmática. A indução, metodologicamente útil e praticamente indispensável, à ciência como à vida quotidiana, não assegura aos seus resultados nenhum caráter de verdade absoluta e imutável. Garante-lhes, ao contrário, a porosidade e o caráter aberto, essenciais para o progresso científico, e para a liberdade e a criatividade do pensamento humano.

As teses de Popper sobre a lógica das ciências sociais

Todos os corvos são pretos.
 Em seu Congresso de 1961, a Sociedade de Sociologia Alemã promoveu um debate em torno do positivismo e da dialética como modelos explicativos nas ciências sociais. Assim, sob a mediação de Ralf Dahrendorf e outros, Karl Popper ( ...) expôs suas teses acerca da lógica das ciências sociais. Naquela ocasião, coube a Theodor Adorno, representante da Escola de Frankfurt e, ao lado de Max Horkheimer, um dos formuladores da “teoria crítica”, oferecer uma réplica àquelas teses tendo como ponto de partida a dialética.
Em seguida, surgiu uma série de comentários sobre o tema, além dos que foram feitos durante o evento e publicados na forma de livro, o que bem demonstra a sua relevância. Tal fato, aliás, está ressaltado, entre nós, por exemplo, em Marcondes (1998, p. 265), quando este lembra a importância da “polêmica dos frankfurtianos com Karl Popper, nos anos 60, em torno da caracterização da racionalidade científica”, e em Freitag (1986, p. 43-52), que destaca as contribuições que se seguiram ao debate, em particular as de Herbert Marcuse, de Jürgen Habermas e do próprio Adorno. (http://www.fundaj.gov.br/tpd/106.html)
Transcrevo aqui a exposição de Popper de 1961, pela sua importância nos debates epistemológicos, ao longo dos anos seguintes

A LÓGICA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS  *

Karl R. Popper

Na minha exposição sobre a lógica das ciências sociais gostaria de tomar como ponto de partida duas teses que exprimem o antagonismo entre o nosso saber e o nosso não-saber.

Primeira Tese: Sabemos uma imensidade de coisas - e não apenas alguns pormenores de interesse intelectual duvidoso, mas também e, sobretudo, coisas que, para além de se revestirem da maior importância prática, podem nos proporcionar um conhecimento teórico profundo e uma admirável compreensão do Universo.

Segunda Tese: A nossa ignorância não tem limites e é desencorajadora. Na verdade, é precisamente o progresso grandioso das ciências da natureza (a que alude a minha primeira tese) que nos abre permanentemente os olhos para a nossa ignorância, mesmo na área das ciências naturais. Daí que a idéia socrática do não-saber tenha tomado um rumo completamente novo. Com cada passo em frente que damos, com cada problema que resolvemos, descobrimos não só novos problemas não resolvidos, como constatamos também que quando julgávamos pisar terreno firme e seguro, tudo é de fato incerto e vacilante.
Naturalmente que ambas as minhas teses sobre o saber e o não-saber só na aparência estão em contradição entre si. Essa aparente contradição resulta sobretudo do fato de a palavra "saber" ser usada na primeira tese com um sentido um pouco diferente do da segunda tese. No entanto, ambas as acepções são importantes, como importantes são ambas as teses. Tanto assim, que gostaria de as formular numa terceira tese.

Do we need to change the definition of science?

Um dos assuntos que sempre me fascinou: como a nossa mente constrói explicações e faz previsões sobre o mundo físico... e depois as abandona e substitui por outras

Do we need to change the definition of science? - science-in-society - 07 May 2008 - New Scientist

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quinta-feira, 23 de julho de 2009

O céu que nos protege - o livro


The Sheltering Sky foi publicado originalmente em 1949. Paul Bowles, o autor, viveu vários anos no norte da África, especialmente no Marrocos. Na época da publicação do livro tinha 39 anos, e era mais conhecido como músico (compositor) de vanguarda do que como escritor.  

The Sheltering Sky mereceu, por ocasião de seu lançamento, uma resenha de Tennessee Williams no New York Times.  Williams distingue um aspecto externo dessa narrativa, segundo o qual ela é “an account of startling adventure”, e um aspecto interior, onde Bowles nos apresenta “an allegory of the spiritual adventure of the fully conscious person into modern experience”.

Essa dimensão alegórica não se intromete na narrativa, que pode ser lida apenas como o relato da aventura de um pequeno grupo de jovens americanos em terras exóticas. Muita gente, acredita T.Williams, vai ler esse livro sem nem suspeitar de que ele contém “a mirror of what is most terrifying and cryptic within the Sahara of moral nihilism, into which the race of man now seems to be wandering blindly”.

(http://www.nytimes.com/books/98/05/17/specials/bowles-sheltering.html?_r=1) .

O céu que nos protege


The Sheltering Sky is an allegory of the spiritual adventure of the fully conscious person into modern experience... [It] contains a mirror of what is most terrifying and cryptic within the Sahara of moral nihilism, into which the race of man seems to be wandering blindly.
[do prefácio de Tennessee Williams]



O livro em que se baseou o filme de Bertolucci O céu que nos protege (1990) foi escrito por Paul Bowles em 1949. Está portanto completando 60 anos agora em 2009. Nem o livro nem o filme foram grandes sucessos de público em seus respectivos lançamentos, mas sempre tiveram admiradores de peso. Eu confesso que adorei o filme, e fui ler o livro por causa de um trabalho de História do Cinema sobre a obra de Bertolucci – nos idos de 91, quando cursava Jornalismo na UnB.
A seguir, algumas reflexões sobre ambos – o livro e o filme – que se misturaram de tal forma para mim que já não consigo separá-los.

O filme:
The Sheltering Sky. EUA, 1990.
Diretor: Bernardo Bertolucci
Roteiro: Mark Peploe e Bernardo Bertolucci. Baseado no livro de Paul Bowles.
Fotografia: Vittorio Storaro
Montagem: Gabriella Cristiani
Música: Ryuichi Sakamoto
Elenco: Debra Winger (Kit), John Malkovich (Port), Campbell Scott (Tunner).


Um filme “pós-industrial”
A idéia de que o sentido é algo que deve ser produzido - de que não está aí sempre já dado, por Deus, pela Natureza - é um elemento que aproxima o cinema do pathos do homem ocidental moderno e de sua forma de vida permanentemente revolucionária.
A montagem cinematográfica tem uma forte correlação com a "linha de montagem" industrial: há uma intervenção humana, armada de propósitos e de instrumentos poderosos, atuando para conferir aos materiais, aos ritmos e às formas da natureza uma utilidade e um sentido novos, produzidos por essa mesma intervenção.
Como filme, O céu que nos protege é ”pós-industrial”: entra em choque com a atitude e com a estética da linha de montagem, tanto por seu conteúdo como por sua forma, e talvez por isso nos produza, à primeira vista, uma reação de estranhamento e mesmo de rejeição.
Chato ou brilhante?, perguntava-se sobre ele uma crítica de jornal: chato e brilhante, creio que deveria ser a resposta. Chato porque foge dos padrões de ritmo e de construção a que estamos condicionados ("é lento", "não acontece nada"); brilhante porque é isso mesmo o que pretende, porque o tema que propõe é precisamente o esgotamento do indivíduo diante de um mundo que está insaciavelmente a requerer-lhe que o construa, que lhe confira sentido, e que vertiginosamente se desfaz e se torna estranho e insondável. Decifra-me ou te devorarei.
O céu que nos protege é um olhar (ele próprio quase indiferente) sobre o naufrágio de um pequeno grupo de pessoas em sua última e fatalisticamente votada ao insucesso tentativa de "refazer" suas vidas. Não há o que decifrar, e todos acabam devorados depois de se debater em vão - sem muito esforço nem muita convicção, na verdade - contra o impossível.

Port: não há sentido
Ao andar por uma poeirenta e pedregosa estrada nos arredores de uma cidadezinha perdida do Saara, Port, o personagem de Bowles/Bertolucci, "não levantava os olhos porque sabia o quanto a aparência da paisagem não teria nenhum sentido. É preciso energia para investir a vida de sentido e, no momento, essa energia faltava-lhe" (p.149).
O título do livro, e do filme, "o céu que nos protege", não sinaliza nenhuma esperança transcendente, nenhuma saída religiosa. "O céu aqui é muito estranho. Quando olho para ele tenho a sensação de que é sólido lá em cima, protegendo-nos do que está atrás. (...) Mas o que está atrás? (...) Nada, acho eu. Só a escuridão. A noite absoluta." (p.94)
Este céu "sólido" é o limite da frágil bolha de sentido dentro da qual podemos viver, mas que está pronta a arrebentar a qualquer momento. E arrebenta mesmo. "Uma estrela negra aparece, um ponto escuro na claridade do céu noturno. Ponto escuro e via de acesso ao repouso. Estenda a mão, rompa o tênue tecido do céu que protege, descanse" (p.218). Port está morto.

Kit: não há repouso
Kit não morre, nem tem acesso ao repouso. "Antes dos vinte [dizia ela], eu achava que a vida era uma coisa que estava sempre tomando um ímpeto. Eu ficaria mais culta e madura a cada ano. Aprenderia sempre mais, ficaria mais sábia, com mais intuição, chegando cada vez mais perto da verdade...Ela hesitou. Port riu abruptamente. - E agora você sabe que não é assim. Certo? É mais ou menos como fumar um cigarro. As primeiras baforadas têm um gosto maravilhoso e você não imagina que possam acabar. Aí você começou a não lhe dar valor algum especial. Subitamente percebe que já queimou quase até o fim. É aí que você se torna consciente do gosto amargo" (p.153/4).
Se não há sentido, não poderia ao menos haver descanso? Não necessariamente o da morte: por que não o da indiferença? "Se pudesse apenas desistir, relaxar, e viver sabendo perfeitamente que não havia esperança. Porém nenhum saber era um saber certo; o porvir sempre dispunha de mais de uma direção possível. Não se podia sequer desistir da esperança" (p.192). Kit vai enlouquecer.

Incomunicabilidade
Port e Kit não se comunicam entre si: dormem em quartos separados, têm sensibilidades muito diferentes diante das coisas mais banais (uma paisagem, o relato de um sonho, as pessoas com quem encontram, como a exótica família Lyle, a própria presença de Turner). Turner, o terceiro personagem, tem a função de agravar o malestar, a impossibilidade de contato do casal Port/Kit.
Para eles, é muito importante se reaproximar um do outro, fortalecer os laços afetivos; mas nada do que fazem nesse sentido dá certo, e os desencontros se somam sem qualquer perspectiva. Port se deixa envolver com prostitutas e bailarinas, Kit tem uma noite de sexo com Turner, mas são acontecimentos exteriores ao desejo, à vontade, ou mesmo à consciência de ambos: coisas que ocorrem como que por fatalidade, mecanicamente.

Turner: irremediavelmente banal
Turner, superficial, autosuficiente, banal, curte a viagem um tanto irresponsavelmente. Tenta previsivelmente seduzir Kit - e complica ainda mais a confusão na medida em que, num certo sentido, o consegue -; torce um pouco para que Port se afaste, mas tudo sem muito envolvimento ou profundidade. Turner tampouco terá salvação: seu destino, não melhor do que o dos demais, é o de sair dessa viagem tão tolo, perdido e inconsequente como entrou.

Arquitetura do desalento
O sentimento do mundo com que Bowles e Bertolucci trabalham não é mais o da sociedade industrial ao qual correspondia a estética clássica da montagem cinematográfica. Os elementos estruturais do fenômeno retratado de que fala Eisenstein, a estrutura do comportamento emocional do homem impõem a O céu que nos protege uma pelo menos aparente falta de arquitetura, um ritmo independente da intervenção humana, um "tempo real" que dá a sensação do fluir indiferente das coisas e do caráter "estrangeiro" do homem no mundo.
Do ponto de vista da composição, o filme (como o livro) apela para a simplicidade: "o objeto da imagem e a lei da estrutura, pela qual ele é representado, podem coincidir. Este seria o caso mais simples, e o problema composicional em tal aspecto mais ou menos se resolve por si mesmo" (Eisenstein, Film Form, p.151). O desalento dos personagens, sua incomunicabilidade, seu isolamento não poderiam ser melhor representados do que pelas magníficas paisagens dos desertos e dos estranhos homens e culturas que o habitam.
A despropositada bagagem que os personagens carregam, sua elegância incongruente sublinham o clima de deslocamento: eles não pertencem àquele ambiente, àquele clima, àquela cultura, àquele mundo.
A magestade, a grandiosidade, a esterilidade da paisagem sublinham a pequenez do homem e a inutilidade dos seus débeis gestos para alterar o curso inexorável das coisas, ou até mesmo para se comunicar com o próprio semelhante.

Uma história sem “moral”
O céu que nos protege não é um (melo)drama, com os conflitos, o sentido e a moral de uma narrativa clássica. Ao comentar seu primeiro filme (A ama-seca) e suas diferenças em relação a Pasolini, com quem acabara de filmar Accattone, Bertolucci menciona o que os separa: “a diferença substancial em nossa abordagem da morte”.
“Pier Paolo tinha uma concepção clássica da morte; ela é inteiramente sagrada, na tradição das tragédias gregas. Em A ama-seca, a morte é ouvida à distância como uma canção cantada em tom menor. Ela simplesmente marca a passagem do tempo, o decorrer das horas em um dia, o fluir nas vidas diárias dos personagens que não têm o destino ou a ambição de deixar sua marca na história."

Aqui também, em O céu que nos protege, a morte envolve, em tom menor, o grupo de personagens, sem destino ou ambição para moldar o rumo das suas próprias histórias.
A luz que banha as coisas e os homens no deserto de Bertolucci não vem do céu: é a luz fria do laboratório do cientista que observa indiferente o comportamento de seus insetos. O "cinéfilo perverso" que Bertolucci se proclama está interessado é nela, na luz e nos seus efeitos, e não nas míseras moscas que se agitam e morrem sob seu foco.

Brasília, maio 1991/julho 2009.

Post Scriptum
Tentativa de explicitação de algumas idéias meio crípticas do trabalho

A idéia básica: uma contraposição entre o espírito da chamada "modernidade" e o da pós-modernidade.
Características do primeiro: o homem se sente "amo e senhor da natureza"; o mundo não está aí só para ser contemplado e refletido (no conhecimento, na arte, na religião), como no período medieval, mas para ser (re)feito. Pelo trabalho, pela tecnologia, o homem domina as forças da natureza e as submete a um projeto humano. É a consciência humana, a ação humana, a intervenção do homem que dá sentido ao mundo. O fundamental, nesse contexto, é que o homem acredita que a vida, a história, o acontecer humano tem sentido.

Já a sensibilidade do homem pós-moderno se ressente da falência das grandes utopias que vinham dando esse sentido à sua história, à sua ação. Não se acredita mais na religião ("Deus está morto: tudo é permitido"), no progresso, na razão, na luta de classes, no proletariado ou seja lá no que for como capaz de explicar, de unificar, de mostrar uma finalidade, um rumo coerente, claro, geral, para a ação humana como um todo. É a falência das "grandes narrativas" (Lyotard) de que falam os pós-modernos.

A idéia seguinte é ligar isso com a estética (a "linguagem") do cinema, a partir de uma sugestão de Eisenstein. Na introdução de O sentido do filme, o apresentador (José Carlos Avellar) resume um prefácio que Eisenstein escreveu para a edição inglesa do livro, e que não chegou a ser publicado. Neste prefácio Eisenstein diz que os aumentos e diminuições do uso da montagem (não só no cinema, mas nas artes em geral) não são obra do acaso, mas estão associados ao caráter do contexto social em que ocorrem. Diz ele: "nos períodos de uma intromissão ativa no desmonte, reorganização e reestruturação da realidade, nos períodos de uma reconstrução ativa da vida, a montagem ganha entre os métodos de construção da arte uma importância e uma intensidade que não cessam de crescer"(grifo meu). Daí minha associação: montagem cinematográfica/ linha de montagem industrial/intervenção humana impondo forma e sentido ao dado natural. Há uma estética (uso amplo da montagem, estrutura narrativa clássica: há algo que "acontece", uma ação que se desenrola, com "começo, meio e fim") e uma forma de vida que são afins, que se correspondem.

Já no nosso filme o clima é bem diferente, ninguém tem pique para dar sentido a nada, a psicologia é muito mais de "deixar-se levar", sem muitas ilusões ou esperanças. Porisso eu digo que o filme é brilhante porque é chato: ele quer ser chato, ele quer passar esse clima arrastado, meio sufocante (mas sem nada de "trágico": revoltar-se contra o destino ainda é uma maneira de acreditar que há um destino, um script para a vida humana). "Refazer" a vida é um objetivo que só pode fracassar: se a vida nunca foi feita, se não há o que, nem por que fazer nada... [Não compartilho - inteiramente - esse sentimento, mas o compreendo, e acho que o filme trabalha com ele] A esse outro tipo de feeling existencial corresponde outra "estética": ritmo lento, poucos recortes, "tempo real", falta de "mensagem", de "soluções" - conflitos que não se resolvem, e tantas coisas que foram lançadas contra o filme como críticas, mas que me parecem fazer parte das suas intenções.

Sobre a questão da composição, que ao que parece também ficou confusa: pelo que entendi do Eisenstein (Film Form, p.151), acho que ele quer dizer que é meio óbvio expressar a alegria por imagens saltitantes de uma criança pulando, ou o vazio e a solidão por imagens lentas de um deserto vazio: "o objeto da imagem e a lei da estrutura pelo qual ele é representado" coincidem simplesmente. Sem tal extremo de obviedade, acho que Bertolucci não foi lá muito "dialético" na composição, neste sentido.

BIBLIOGRAFIA:

AMENGUAL,B. Chaves do Cinema. Rio, Civilização Brasileira, 1973.
BOWLES,P. O céu que nos protege. Rio, Rocco, 1990.
DIVERSOS Enciclopedia Ilustrada del Cine. Barcelona, Labor, 1969.
EISENSTEIN,S. Film Form. London, Dennis Dobson, 1951.
EWALD Fº,R. Dicionário de cineastas. Porto Alegre, L&PM, 1988.
RANVAUD,D./UNGARI,E. Bertolucci by Bertolucci. London, Plexus, 1987.
WILLIANS, Tennessee “An Allegory of Man and His Sahara”em http://www.nytimes.com/books/98/05/17/specials/bowles-sheltering.html?_r=1, acessado em 22/7/2009.
LOPES, Chico “O encanto do Deserto esmagador: revendo um Berlolucci polêmico” em http://www.verdestrigos.org/sitenovo/site/cronica_ver.asp?id=1084, acessado em 23/07/2009


Bertolucci - Filmografia
1962: La commare seca (A ama-seca)
1964: Prima della rivoluzione (Antes da revolução)
1965/66:La via del petroleo (O caminho do petróleo), documentário.
1966: Il canale (O canal)
1967: Agonia (episódio de 28 min)
1968: Partner
1970: Strategia del ragno (A estratégia da aranha)
1970: Il conformista (O conformista)
1971: La salure è malata (ou I poven muoioni prima), documentário, 35 min.
1972: Ultimo tango a Parigi (O último tango em Paris)
1976: Novecento (1900)
1979: La Luna (A lua)
1981: La tragedia di un uomo ridicolo (A tragédia de um homem ridículo)
1987: Ultimo Imperatore (O último Imperador)
1990: The Sheltering Sky (O céu que nos protege)
1993: Piccolo Buddha (O Pequeno Buda)
1996: Io ballo da sola (Beleza Roubada)
1998: L'assedio (Assédio)
2002: Ten Minutes Older: The Cello (segmento de "Histoire d'eaux")
2003: The Dreamers (Os Sonhadores)

Bernardo Bertolucci nasceu em 1941, filho do poeta e crítico Attilio Bertolucci. Entre os 12 e os 15 anos escreveu poesia e rodou filmes amadores em 16 mm: O Teleférico, Morte de um porco. Foi assistente de direção de Pier Paolo Pasolini (Accatone, 1961).

Bertolucci, como seu pai Attilio, foi militante do PC italiano desde jovem. Seu projeto mais ambicioso, 1900, apresenta um painel de 100 anos da história italiana, em duas partes, em forma de uma verdadeira saga operária. Em O último Imperador revela evidente simpatia pela revolução chinesa. Por outro lado, seus filmes muitas vezes são elaborações de temas literários, como A estratégia da aranha, inspirada no "tema do traidor e do herói" de J.L.Borges, ou O conformista, baseado numa novela de Alberto Moravia. Este é também o caso de O céu que nos protege (1990), onde segue o romance do mesmo nome do escritor americano Paul Bowles.

sábado, 18 de julho de 2009

Por que "Beijing"?


A capital da China não mudou de nome, ao contrário da cidade de Leningrado, por exemplo, que voltou a ser São Petersburgo. Pequim é a mesma, e tem o mesmo nome, pelo menos desde os anos 1500, quando os portugueses andaram por lá e transcreveram para o nosso idioma a forma como os chineses pronunciavam o nome da sua cidade: Pequim. Há cinco séculos essa palavra é usada, em português, para se referir à capital da China.

Os chineses mudaram, há alguns anos, a forma de transcrição fonética dos seus caracteres - Mao Tse Tung virou Mao Zedong, etc - para ficarem mais próximos da pronúncia inglesa.

Após um congresso de mulheres em Pequim, algumas brasileiras voltaram achando que era "politicamente correto" usar a palavra como os chineses decidiram transcrever, para ser lida em inglês. Dessa forma, resolveram dispensar o termo que usamos, secularmente, para designar a capital da China, o velho e bom "Pequim". E a imprensa toda foi atrás.

Para início de conversa, que valor tem, em português esse “g” final de Beijing? É para pronunciar “beijingue”? Que outras palavras vernáculas existem com essa terminação exótica?

Se foneticamente a coisa não faz sentido, pelo lado histórico ou político ela também não se sustenta. A capital da China não mudou de nome, ao contrário da cidade de Leningrado, por exemplo, que voltou a ser São Petersburgo. Pequim é a mesma, e tem o mesmo nome, pelo menos desde os anos 1500, quando os portugueses andaram por lá e transcreveram para o nosso idioma a forma como os chineses pronunciavam o nome da sua cidade: Pequim. Há cinco séculos essa palavra é usada, em português, para se referir à capital da China.

Politicamente, não se considera incorreto usar a forma portuguesa de nomes de cidades ou países: chamamos Sverige de Suécia, Moskba de Moscou, London de Londres, Firenze de Florença, Hrvatska de Croácia, e ninguém reclama ou se ofende com isso.

Em relação à China, se fôssemos coerentes, deveríamos mudar não só a forma de nos referir à capital, mas também às demais cidades. O professor Cláudio Moreno, em seu site (http://www.sualingua.com.br/06/06_pequim.htm), dá uma lista de exemplos:

Cantão - Guangzhou
Xangai - Shanghai
Nanquim - Nanjing
Hong-Kong - Xianggang

Onde existem palavras, em português, que usem o “sh” para o som de “x” ou de “ch”? E quem, em sã consciência, acha mesmo que devemos passar a chamar Cantão de “Guangzhou” (aliás, como se diz isso?)? Ou que Hong-Kong fica muito mais inteligível, na nossa língua, se nos referirmos a ela como “Xianggang”?

Por que faríamos isso? Por que violentar nossa língua com uma ortografia e uma fonética inventadas para se adequar ao inglês, quando temos, no bom e velho português, palavras perfeitamente respeitáveis, que já existiam muito antes de os próprios ingleses terem tido qualquer contato com a China?

E quem tem um daqueles simpáticos cachorrinhos não precisa passar a chamá-los “beijingneses” - pode continuar usando tranquilamente o adjetivo “pequinês”, sem medo de estar ofendendo politicamente a grande, milenar e admirável nação chinesa, cujas preocupações são muito mais importantes do que essas.

E para quem tem medo de infringir regras oficiais, indico o site do Itamaraty, cujos textos oficiais continuam chamando Pequim de ...Pequim!

terça-feira, 7 de julho de 2009

O estado é laico: ainda?


Pela Constituição federal, o estado brasileiro é laico, ou seja, a separação entre estado e Igreja é um princípio básico do nosso direito constitucional.
O acordo entre o governo brasileiro e a Santa Sé, que formaliza o estatuto jurídico da Igreja Católica no país, levanta, no mínimo, inquietações quanto ao futuro desse princípio.


A Igreja Católica - entre outras - tem uma longa tradição de influência em matéria legislativa no país. Atrasou em décadas a aprovação da lei do divórcio, tem um grande peso no tratamento da questão do aborto, interfere nas políticas públicas de educação sexual, controle da natalidade, prevenção das doenças sexualmente transmissíveis, pesquisas com células tronco.

Embora o acordo que está em pauta procure cercar de todas as garantias a liberdade religiosa e o respeito à pluralidade de crenças, não há dúvidas de que concede à Igreja Católica uma posição peculiar, que não se estende às demais.

Argumenta-se que isso decorre do fato de que o Vaticano é um estado, o que torna possível e adequada a assinatura de um acordo, instrumento que não poderia ter paralelo com as demais religiões. O argumento revela-se frágil, entretanto, diante de uma possível alternativa: estaria o estado brasileiro disposto a aprovar um texto semelhante com a República Islâmica do Irã, assegurando ao Islã o mesmo estatuto que confere à Igreja Católica? E como ficaria a relação com o Reino Unido, onde a rainha é chefe do estado e também da Igreja Anglicana?

Se o acordo com o Vaticano não cria nada de novo ou de diferente do que já existe na legislação brasileira, sua assinatura seria no mínimo desnecessária. E pelo teor dos debates e das inquietações que vem levantando, que trazem à memória a antiga fase das concordatas, tudo indica que é inoportuno.
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Constituição da República Federativa do Brasil

(...)

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;
Acordo Brasil x Vaticano

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Visto na rede:

| author: Lingua de Trapo

(...) independentemente da minha confissão religiosa, acho um absurdo um estado que, constitucionalmente é definido com laico, firmar acordos com quaisquer confissões religiosas que visam subsidiá-las. Quando o faz, está obrigando todos os cidadãos a também fazê-lo, independentemente de sua crença e vontade. (http://linguadetrapo.blogspot.com/2008/11/acordo-brasil-x-vaticano.html)

Luiz moura Disse: segunda-feira, 17 de novembro de 2008 às 11:45
(...) O que esta turma quer mesmo são as chamadas isenções fiscais que os permitem operar no
mercado privado seja com escolas, universidades, hospitais, emissoras de radio e TV com os benefícios da lei da filantropia.

MÍDIA, IGREJA E ESTADO - Acordo por debaixo dos panos
Por Alberto Dines em 17/11/2008

(...)

Nem a poderosa mídia eletrônica evangélica protestará porque não está interessada no ensino religioso. O que ela deseja é continuar distribuindo aos seus deputados mais e mais concessões de radiodifusão. Esta é a forma com que o governo gerencia o seu laicismo: oferece vantagens às confissões majoritárias e não se importa em atropelar o espírito e a letra da Carta Magna.

terça-feira, 9 de junho de 2009

A televisão, um perigo para a democracia?


A televisão apela para a violência, o sexo e o sensacionalismo em doses muito superiores àquelas em que tais elementos estão de fato presentes na vida social e na experiência de cada um, especialmente das crianças. Se a educação é um processo de seleção dos estímulos aos quais são submetidos os indivíduos em formação, de modo a inculcar e reforçar em suas mentes e em seus sentimentos valores superiores àqueles que resultariam do livre desenvolvimento de seus instintos primitivos, a televisão tal como vem funcionando é a anti-educação mais perfeita que se poderia conceber.
(Leia este post também em inglês)

O exagero de cenas de sexo e de violência na televisão, em horários em que crianças e adolescentes formam grande parte da audiência, tem suscitado, em setores cada vez mais amplos da sociedade, o clamor por algum tipo de medidas de controle, por parte de alguma espécie de autoridade responsável.
Nos Estados Unidos, uma situação semelhante provocou uma forte reação social, alimentada por ampla discussão sobre o código de ética da indústria cultural, a autoridade dos pais para escolher o tipo de influência psicológica e moral que consideram adequada para a educação de seus filhos, as formas mais eficientes para garantir a liberdade de opção de cada um no seio de uma sociedade que reconhece e aceita o pluralismo ético e cultural.
No Brasil, o tema desencadeia dois tipos opostos mas convergentes de reação epidérmica e visceral. Paladinos incondicionais da livre iniciativa, de um lado, consideram absurda qualquer ingerência, vinda de onde vier, sobre a “liberdade de criação e de informação” exercida pelas empresas de telecomunicação. Intelectuais e artistas autenticamente democratas e bem intencionados, de outro lado, escaldados pela experiência da ditadura, tremem ante qualquer coisa que lhes pareça uma evocação do odioso espectro da censura, e levantam-se a uma só voz contra a mais remota sombra de “ameaça à liberdade de expresão”. Diante dessa dupla e sólida barreira, a discussão racional sobre a influência e o papel dos meios de comunicação de massas se torna extremamente delicada.
Foi certamente com a preocupação de trazer para o campo da racionalidade esse debate que o filósofo Karl Popper, vienense radicado na Inglaterra, escreveu o libelo cujo título é, precisamente, A televisão: um perigo para a democracia.
Popper é conhecido por seus trabalhos em defesa do liberalismo político e social (A sociedade aberta e seus inimigos, entre outros) e sobre a lógica, a psicologia e a biologia do conhecimento. É em nome do liberalismo e da racionalidade que ele questiona a inércia da sociedade em geral, e das instituições políticas em particular, diante do poder da televisão. A televisão passou a ameaçar a democracia pelo excesso de poder que adquiriu, e porque corrói, segundo Popper, o alicerce básico do Estado de direito, que é a recusa da violência.
A televisão apela para a violência, o sexo e o sensacionalismo em doses muito superiores àquelas em que tais elementos estão de fato presentes na vida social e na experiência de cada um, especialmente das crianças. Se a educação é um processo de seleção dos estímulos aos quais são submetidos os indivíduos em formação, de modo a inculcar e reforçar em suas mentes e em seus sentimentos valores superiores àqueles que resultariam do livre desenvolvimento de seus instintos primitivos, a televisão tal como vem funcionando é a anti-educação mais perfeita que se poderia conceber. Ela expõe o público a uma seleção às avessas, banaliza o crime e o escândalo, desassocia o sexo do sentimento e da responsabilidade, hiperexcita ao consumo e escamoteia o trabalho. E tudo isto de uma forma particularmente nociva para os mais jovens, que distinguem com menos nitidez as fronteiras entre a vida e a ficção, até porque sua experiência está muito mais impregnada pelas fantasias da tela do que pelas realidades do mundo.
Nenhuma sociedade pode ser melhor que a soma dos indivíduos que a compõem, e a democracia não tem condições de sobreviver se deixar de produzir sua base: o cidadão civilizado, que não é produto do acaso, mas de um delicado processo educativo.
A análise de Popper é perfeitamente consistente com as conclusões a que aportou Freud em seu estudo sobre O malestar na civilização. No íntimo de cada ser humano, mostra Freud, trava-se um luta entre dois grandes impulsos, duas poderosas fontes de energia: Eros, o impulso do amor e da vida, e Thanatos, o impulso de morte e destruição. A civilização, à primeira vista, aparece como repressora de Eros, competindo com a sensualidade desenfreada, já que disputa com o sexo a energia criativa dos indivíduos para outras tarefas: a cooperação, o conhecimento, as artes. Mas à medida em que a reflexão de Freud avança, ele mostra como é muito mais oneroso, do ponto de vista libidinal, o tributo que Thanatos precisa pagar à civilização. A repressão à agressividade, à violência, à destrutividade, não traz as recompensas que a sublimação do impulso sexual acarreta. Nas sociedades avançadas, a competição - esportiva, pelo poder, pelo dinheiro - se torna a única válvula de escape, mas envolve mecanismos muito complexos, e concentra uma carga de angústia e stress quase insuportável.
Na caixa mágica da televisão, os demônios primitivos são invocados e seus poderes liberados. A repressão e a angústia inevitavelmente geradas pelo processo civilizatório são esquecidas, ante a poderosa catarse que liberta os impulsos contidos e canalizados pela sociedade. O resultado entretanto, como temos visto, está muito mais para Hobbes do que para Rousseau. O que emerge dessa descompressão não é o bon sauvage, mas o homem lobo do homem, pronto a se lançar na guerra de todos contra todos.
Refugiar-se na mera reiteração retórica dos princípios da liberdade de expressão ou de iniciativa é passar inteiramente ao lado da questão. Esses princípios são eles próprios o coroamento de um processo político secular, de penosa substituição da barbárie pela civilização, da lei da selva pelos direitos humanos. Eles deixam de fazer sentido sob o império do vale-tudo, da lei do mais forte. Sem sociedade organizada, e sem educação que a torne possível, não há liberdade de iniciativa nem de expressão.
Assim como os regulamentos do trânsito não oprimem, mas tornam possível o exercício do direito de ir e vir, ou as exigências sanitárias sobre os alimentos oferecidos ao consumo da população não ferem a liberdade de produzir dos agricultores e comerciantes, a regulamentação da programação das emissoras de TV não configura nenhuma agressão aos direitos do cidadão. Pelo contrário, é uma questão de sobrevivência da própria forma de sociabilidade que torna esses direitos possíveis.
Sobretudo se, como querem as vozes mais lúcidas nesse debate, os indispensáveis limites vierem a ser traçados de forma consciente e voluntária pela própria sociedade, através de um processo flexível e democrático de composição dos múltiplos interesses e pontos de vista legítimos dos diferentes grupos e segmentos que a compõem.
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* Publicado no Correio Braziliense, em 13/08/1995

sábado, 21 de março de 2009

ECONOMIA E CULTURA - PRODUÇÃO E CIRCULAÇÃO DE VALORES

Palestra no Fórum Cultural Mundial - São Paulo 02/07/2004


"A crescente importância das indústrias culturais, num mercado cada vez mais globalizado, é um fato indisputado, porém ainda gera questionamentos e conflitos de interesse. Por um lado, celebra-se a capacidade dessas indústrias de gerar valor, trabalho e renda; por outro, temem-se seus efeitos sobre as culturas tradicionais, e as pressões que exercem sobre a criatividade e a liberdade dos artistas. "
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A primeira questão que se coloca, frente ao título desta conferência, é sem dúvida definir de que valores estamos falando. Valor econômico e valor cultural freqüentemente se contrapõem, e a mercantilização da cultura (tratar os valores culturais somente ou principalmente como valores econômicos) tem sido vista como uma ameaça à criação cultural autêntica. E nesta era de acelerada globalização, a produção cultural é cada vez mais tratada como mercadoria, a ser enquadrada nas mesmas regras que regem o comércio internacional de bens e serviços.
A crescente importância das indústrias culturais, num mercado cada vez mais globalizado, é um fato indisputado, porém ainda gera questionamentos e conflitos de interesse. Por um lado, celebra-se a capacidade dessas indústrias de gerar valor, trabalho e renda; por outro, temem-se seus efeitos sobre as culturas tradicionais, e as pressões que exercem sobre a criatividade e a liberdade dos artistas. Escritores, músicos, cineastas, pintores têm a justa aspiração de ver seu trabalho divulgado, reconhecido e bem remunerado, e vêem na indústria cultural a possibilidade de alcançar essas aspirações. Entretanto, recusam-se ou relutam em pautar sua arte pelas “regras do mercado”: lançar um novo disco por ano, mesmo que não tenham um novo trabalho maduro; fazer filmes que reproduzam o ritmo alucinante do cinema americano (pensemos nos maravilhosos filmes iranianos, que o público freqüentemente considera “lentos” e “tediosos”, devido aos esquemas de percepção e apreciação moldados pelas produções hollywoodianas); produzir quadros e esculturas adaptados ao gosto decorativo ocidental, escrever histórias segundo o modelo dos best sellers editoriais.
É sobre essa tensão entre valor de mercado e valor cultural que desejo refletir, ampliando se possível a abrangência da análise, de modo a superar a contradição entre ambos, sem deixar de perceber suas diferenças e mesmo os pontos em que, eventualmente, sua oposição não possa ser contornada.

Indústria cultural: a cultura como mercadoria...

O conceito de “indústria cultural” foi criado por Max Horkheimer e Theodor Adorno, pensadores da Escola de Frankfurt, nos anos 40, no bojo de sua Teoria Crítica da Sociedade, de cunho fortemente anti-capitalista.
Para aqueles teóricos da cultura e da sociedade, a produção, circulação e consumo dos bens culturais (sinteticamente, aqueles em que o significado é mais importante do que a utilidade) foram sendo submetidos de forma inexorável à lógica massificante da economia capitalista. A reprodutibilidade técnica privou a obra de arte da sua “aura”, do seu caráter único e de sua presença concreta num tempo e num lugar específicos. Reproduções, discos, gravuras passam a ser criados, vendidos e consumidos como mercadoria, e para isso precisam se tornar de fácil reconhecimento e aceitação por parte de um amplo mercado. Deixam de ter a função crítica da obra de arte, de provocar a reflexão, a inquietude, a estranheza, a emergência de novas formas de sensibilidade. Servem para distrair e entorpecer as massas, ocupando seu tempo livre com formas e conteúdos análogos aos do tempo da produção. Torna-se assim “natural”, e até aprazível, o enquadramento dos trabalhadores aos processos de massificação a que são submetidos.
Walter Benjamin, também ligado à Escola de Frankfurt, introduziu um viés levemente menos pessimista em relação ao conceito de indústria cultural, na medida em que via nessa massificação da produção e do consumo culturais também uma possibilidade de apropriação crítica da nova dinâmica cultural por parte das próprias massas. Essas não seriam apenas objetos indefesos de manipulação, mas também sujeitos potenciais de um processo crítico de libertação.
O conceito de “indústria cultural” parece hoje ter perdido muito de sua contundência crítica, embora pensadores como Hannah Arendt, Jürgen Habermas e Richard Sennet tenham retomado o tema no âmbito das investigações centradas no conceito de espaço público (ou esfera pública), em cuja constituição a dimensão cultural assume papel relevante. [1]
No sentido comum, o termo “indústria cultural” passou a ser usado para se referir ao campo da produção, difusão e fruição culturais enquanto processos econômicos, sem maiores preocupações com o que os diferencia e caracteriza como processos culturais. Geração de emprego e renda, participação no PIB, formação de mão-de-obra, financiamento, direitos autorais, acesso a mercados são os temas centrais e exclusivos de uma certa “economia da cultura” cada vez mais em voga. Se ela dá a alguns o conforto de pensar que finalmente a área cultural, e eles próprios, estão sendo admitidos à categoria das coisas e das pessoas a serem levadas a sério, por outro lado deixa escapar a especificidade do campo cultural, ela sim capaz de lhe conferir relevância social, política e, inclusive, econômica. Nesse contexto, o balanço entre o valor de uso e o valor de troca do produto cultural pende decisivamente para o lado da utilidade, da mercadoria, em detrimento do sentido.

...e a culturalização do mercado

Ao abordar a temática das “indústrias culturais”, quis pelo menos reafirmar a importância de algumas das preocupações centrais da reflexão da Escola de Frankfurt, dissociando-as embora do pessimismo radical de Adorno e Horkheimer ou do otimismo um tanto romântico de Benjamin quanto ao poder redentor das massas.
Hoje não vivemos mais os tempos em que esse dilema – cultura ou mercadoria – se colocava de forma tão contundente. A superação da contradição não veio contudo – ou não veio exclusivamente – de uma apropriação crítica, pelas massas, dos conteúdos e dos processos da indústria cultural. Na verdade, foi o próprio capitalismo que mudou muito do tempo dos frankfurtianos para o nosso. Não estamos mais no paradigma industrial da produção mecanizada e em larga escala de bens de consumo de massa de baixo valor agregado. De uma época em que a produção em massa tratava de criar, por bem ou por mal, mercado de massa para sua oferta de produtos padronizados, chegamos à era da busca dos nichos de procura, da segmentação dos mercados, das demandas específicas.
Ao mesmo tempo em que há uma mercantilização da cultura, há também uma culturalização do mercado. A tendência da economia mundial, hoje, é de que bens manufaturados se tornem rapidamente commodities,[2] cuja materialidade pouco importa: pode ser comprada, pode ser encomendada de outros que conseguem produzir numa escala melhor, mais econômica. Vende-se hoje, mais do que coisas materiais (um café, uma taça de champanha, um traje de praia ou um equipamento esportivo) as experiências simbolicamente associadas às mesmas: a sofisticação da cultura francesa, a sensualidade e a descontração cariocas, a coragem e a resistência de uma aventura na selva ou no deserto, etc.
Pela velha regra (“bem cultural é aquele em que o significado é mais importante que a utilidade”) hoje praticamente todos os bens são “bens culturais”: a marca vale mais que o tênis ou o jeans, a griffe mais do que os óculos, o design mais do que a cadeira. Associação entre significado e valor de uso que é freqüentemente remota, arbitrária ou mesmo contraditória: a publicidade associa experiências de saúde e de sedução ao cigarro que mata e envelhece, ou de competência e honestidade a candidatos corruptos e incapazes...
Que novos papéis assumem a produção e a recepção cultural nesse novo contexto? Que novas características o capitalismo busca moldar no trabalhador e no consumidor? Como se reconfigura a relação cultura/modo de vida, como se articula a dialética entre diversidade e universalidade, no mundo globalizado? Como se constróem e se veiculam os significados, na sociedade atual?

A globalização ameaçadora

Nossa época se caracteriza pelos processos acelerados de urbanização e de globalização, sob a égide do capital financeiro, no bojo de uma revolução tecnológica e gerencial que torna a produção cada vez mais incorporadora de “inteligência” e menos de matérias primas ou de energia humana não-qualificada.
A mudança do padrão tecnológico marginaliza os grandes contingentes populacionais que no modelo industrial anterior constituíam as reservas de mão-de-obra não-qualificada, agora dispensáveis e indesejadas. O Estado perde sua função econômica de grande acumulador de capital; seu caráter nacional passa a ser um obstáculo à livre circulação financeira; seu papel de compensador das desigualdades sociais um impecilho ao descarte, considerado inevitável, da velha mão-de-obra industrial.
O mercado globalizado, com seus mecanismos de produção e de distribuição cultural dominados por um pequeno grupo de atores hegemônicos, contém inegáveis ameaças à sobrevivência das culturas tradicionais. Solidárias de estilos de vida alheios à competição capitalista e aos seus agressivos mecanismos de comercialização, muitas dessas culturas correm o risco de irem aos poucos se circunscrevendo a grupos minoritários e marginalizados dentro do grande fluxo da urbanização “modernizadora”.
Os apelos do progresso, da modernidade e do consumo seduzem os jovens, e o rompimento dos laços culturais parece-lhes muitas vezes a única forma de acesso ao trabalho melhor remunerado e às oportunidades de ascensão social, de reconhecimento individual e de participação política.
Mas a rapidez da criação de novos conhecimentos e da transmissão das informações, a especialização crescente em quase todas as áreas e as movimentações das populações - do campo para as cidades, dos países pobres para os desenvolvidos - criam guetos culturais, étnicos e linguísticos no seio das grandes metrópoles, enquanto o abismo econômico e cultural se aprofunda entre as classes e as nações.
Esse imenso potencial de frustração e de desenraizamento pode levar, como tem levado, ao aumento da pobreza e da exclusão, à perda da identidade e à condenação de grandes contingentes de jovens à marginalidade, às drogas e à violência.
Uma experiência que vivi pessoalmente, ao visitar o Parque Nacional do Xingu, em 1995, dá uma idéia de como o necessário processo de inclusão no irreversível movimento de globalização econômica e cultural pode ser desconcertante para as sociedades tradicionais. Os grupos indígenas do Xingu têm as melhores condições possíveis, no mundo contemporâneo, para preservar seu modo de vida tradicional. Dispõem de um amplo território, e estão protegidos dos contatos mais predatórios com a sociedade envolvente (por exemplo: é preciso uma autorização especial da FUNAI – órgão federal encarregado da sua proteção – para ter acesso à reserva). Por outro lado, desejam e sabem que precisam conhecer a cultura “do branco”: a reserva tem postos médicos, escolas bilingües, acesso à rádio e à televisão. Entre os objetos mais valorizados para as trocas, na reserva (não se usa dinheiro, mas pode-se trocar objetos com os índios), estavam as pilhas elétricas - para as lanternas, mas sobretudo para os aparelhos de rádio. Os jovens ouvem a Rádio Nacional, e eu os assisti pedindo ao radialista que integrava o nosso grupo que colocasse anúncios em seu programa de encontros sentimentais: queriam namorar moças brancas, e davam pseudônimos brasileiros ou até mesmo americanos (Jôni, Maiquel) para os anúncios.
Takuman[3]
No meio da noite, à beira de uma fogueira, em pleno coração da selva amazônica, o cacique Takuman, lider dos kamaiurás, veio espontaneamente conversar comigo, preocupado com a educação das novas gerações do seu povo. Reconhecia a importância da escola; entretanto, tinha plena consciência do impacto dessa educação “de fora” sobre os valores e práticas culturais ancestrais. Contou que os meninos agora queriam andar calçados, e não tinham mais o mesmo interesse por aprender e treinar o huka-huka, a luta ritual tradicional.

Foto Sandra Zarur ©





E que as mulheres e as meninas hoje tinham vergonha de andar sem roupa, “não só na frente dos brancos, mas também dos próprios homens da tribo”. Pude sentir, naquele momento, toda a perplexidade de um homem de visão – um grande estadista – com o futuro do seu povo. E isto pelo viés da cultura, enquanto os líderes mais jovens tratavam, com as autoridades presentes, de questões materiais, como a demarcação das terras e as invasões dos garimpeiros.
Mutatis mutandis, não estaremos todos nós de certa forma em situação semelhante, colhidos numa onda global que nos envolve e carrega, destruindo, de forma sutil ou abrupta, os valores culturais das nossas próprias sociedades?

Uma outra história

Mas a globalização não representa apenas ameaças à diversidade cultural: ela oferece também inéditas oportunidades. Um novo horizonte de possibilidades se abre, com a afirmação do local e do regional, com a procura crescente pelo diferente, pelo singular, por produtos, bens e serviços que incorporem conceitos e valores artísticos e humanos autênticos.
Os avanços da tecnologia tornaram mais acessíveis os equipamentos, em diversas áreas da produção cultural, e mais rápidos e eficientes os canais de comunicação e divulgação. O conhecimento e a informação circulam com maior liberdade e rapidez e, graças às redes de comunicação, passa-se do local ao global com uma agilidade até então inconcebível.
No campo político, mudanças culturais positivas também podem ser apontadas [4]. Não há dúvidas de que temos assistido ao avanço da democracia: o Estado vem perdendo o monopólio do público, e a participação da sociedade na gestão da coisa pública tem sido reforçada. As empresas privadas assumem novas responsabilidades sociais, e as comunidades locais e o Terceiro Setor ganham maior peso, inclusive no controle do desempenho da função pública.
Uma nova consciência de solidariedade faz contraponto à exacerbação do individualismo. Os temas ambientais, a mobilização em torno das mais diversas questões coletivas - característica das ações das ONGs - a solidariedade ativa em relação a grupos desfavorecidos ou discriminados, mostram que existem forças capazes de assegurar um novo tipo de coesão inter-grupal não homogeneizante. O racismo, a discriminação sexual, o desrespeito ao meio ambiente, as condições desumanas de trabalho, a fome, a pobreza extrema, se ainda persistem largamente, estão se tornando não apenas objeto de condenação moral e política, mas de ações cada vez mais amplas de combate e superação.
A indústria cultural, sob esse ponto de vista, deixa de ser vista exclusivamente como ameaça, e passa a se transformar em possível aliada na busca de uma nova globalização, que não exclua a pluralidade. Uma globalização sustentável, baseada não na hegemonia e na exclusão, mas em uma rede de trocas simbólicas capazes de gerar valor econômico sem destruir os valores culturais.

Globalização, hegemonia e cultura

O processo de globalização tem sido intimamente associado à afirmação da hegemonia de um país, ou de um pequeno grupo de países, sobre o conjunto da humanidade. Considerado por alguns como um mero eufemismo para “imperialismo”, esse conceito de hegemonia significa, entretanto “mais do que mera liderança, porém menos do que simplesmente império”. “Um poder hegemônico é um estado que consegue impor seu conjunto de regras sobre o sistema internacional, e dessa forma criar temporariamente uma nova ordem política... assegurando ao mesmo tempo, para si mesmo ou os seus aliados, certas vantagens econômicas não conferidas pelo mercado, mas obtidas por meio de pressão política”.[5]
John Samuel Nye, autoridade americana em assuntos internacionais[6], distingue três tipos de poder de uma nação no contexto internacional, ou três dimensões da hegemonia: militar, econômica, e político-cultural.
A primeira camada, da hegemonia militar, é hoje claramente unipolar, com o predomínio indiscutível dos Estados Unidos sobre qualquer outro país ou grupo de países. A camada intermediária, da hegemonia econômica, é multipolar, porém extremamente concentrada: Estados Unidos, Europa e Japão representam dois terços do produto mundial.
A última camada, a mais básica, é o nível do chamado soft power[7], onde se trata, sobretudo, de “conquistar corações e mentes”, isto é, de atrair a adesão aos ideais, aos valores, comportamentos políticos e estilos de vida que praticamos e professamos[8].
Se bem que existam forte conexões entre as três dimensões do poder, e que esteja sempre presente a possibilidade de que este soft power seja buscado e exercido com a finalidade de fortalecer e legitimar os outros dois [9], ele tem certas peculiaridades que o tornam mais aberto a uma apropriação não-hegemônica.
Países que estão fora dos centros de decisão militar ou econômica dificilmente conseguem vencer a distância que os separa dos mesmos. Já o capital cultural está ainda largamente disperso, e envolve uma grande variedade de atores não-governamentais. As trocas dependem de mecanismos comunicativos e de interações que se processam em grande medida fora da esfera estatal, envolvendo atores não-governamentais (ONGs, etc.); redes formais ou informais, reais ou virtuais, de artistas, pensadores, escritores e produtores individuais; meios de comunicação tradicionais ou eletrônicos.
A hegemonia econômica ou militar é essencialmente instável. Como pitorescamente dizia Napoleão Bonaparte, “é possível fazer qualquer coisa com as baionetas, exceto sentar sobre elas”. No terreno da economia, a globalização hegemônica tem produzido tamanha destruição ambiental, concentração da riqueza e do conhecimento e exclusão social, que claramente não pode continuar se prolongando no mesmo ritmo. Já no campo da cultura e dos valores, é possível ao contrário construir alianças e redes que configurem uma "globalização sustentável" e inclusiva.
Nesse campo, podemos conceber, e em alguns casos até já identificar, o esboço de um processo de globalização não-hegemônica, capaz de operar segundo uma lógica própria. Trata-se de um movimento social com raízes muito fortes, cuja crescente integração não ameaça, mas valoriza e defende a pluralidade e a variedade culturais. Como movimento social, sua força vem do reconhecimento, pelas sociedades civis, da legitimidade de seus participantes, enquanto representantes dos valores e das culturas nacionais, e da sua capacidade, como inovadores culturais, de criar novas normas e novas instituições que permitam canalizar recursos de uma maneira diferente.[10]
É preciso conquistar e defender esse espaço de trocas simbólicas, de socialização do legado múltiplo da diversidade cultural da humanidade, contra sua instrumentalização a serviço das hegemonias militar e econômica.
A necessidade de proteger a diversidade cultural do mundo, sustentada pelo PNUD, implica em que os bens culturais tenham tratamento especial nas relações comerciais, e que culturas nacionais sejam incentivadas, como forma de proteção frente à concorrência internacional. O ministro da Cultura do Brasil, Gilberto Gil, tem defendido essa posição em diversos foros mundiais; o ministro interino, Juca Ferreira, sustenta a legitimidade da política de proteção e de favorecimento da diversidade cultural, afirmando que ela "é boa para a humanidade como um todo. Seria terrível que, depois de tanta experiência humana, quase tudo isso fosse jogado fora por uma circunstância de monopólio econômico".[11]
Avançando em relação a uma posição puramente defensiva, é preciso promover ativamente e participar da construção de espaços de encontro e de redes de trocas culturais de sentido múltiplo, não-hegemônicas e não-homogeneizantes, como está ocorrendo neste Fórum Cultural Mundial.

Aspectos pouco enfatizados da relação cultura/economia

Antes de concluir, gostaria de mencionar certos aspectos da relação entre cultura e economia que dificilmente aparecem nas estatísticas ou nas contas nacionais, mas que têm uma enorme importância e reflexos econômicos não negligenciáveis.
A cultura é o campo por excelência onde se articulam os valores individuais e sociais; onde o indivíduo encontra o repertório simbólico que lhe permite expressar-se e ser compreendido pelos demais, e onde esse patrimônio comum de signos, valores, sentimentos e experiências se enriquece e se transforma com as contribuições de cada um.
Numa sociedade culturalmente vibrante, que favorece esse trânsito crítico entre o individual e o coletivo, as pessoas são mais felizes. E a felicidade tem um alto valor econômico: ela se reflete em melhor saúde, mais educação e segurança, meio ambiente mais preservado, maior produtividade no trabalho. Um pequeno exemplo: uma das conclusões da PNAD[12]-2001, na área da educação, foi de que as crianças que vivem com a mãe (mesmo que esta trabalhe fora de casa, ou que tenha um baixo nível educacional) apresentam em média meio ano a menos de atraso escolar do que as demais[13]. Num país que tem 36 milhões de alunos no ensino fundamental, é fácil calcular a economia que representa a felicidade dessas crianças! Em sentido inverso, poderíamos considerar a situação de alguns grupos de índios guaranis[14], culturalmente desestruturados por uma “integração” predatória com a sociedade branca: o índice de suicídio é altíssimo, especialmente entre os jovens, o que representa uma perda total de possibilidades humanas e sociais[15].
No caso das campanhas de combate à AIDS/SIDA, no Brasil, o fato de se evitar a idéia de culpabilização e de se dirigirem mensagens diferenciadas a vários grupos culturais tem sido apontado como um dos grandes fatores de seu êxito. E o país tem poupado com isso bilhões de dólares em relação às previsões pessimistas, que projetavam um quadro de alastramento rápido da doença.
No terreno privado, a cultura também vem sendo cada vez mais reconhecida como um fator de sucesso empresarial e pessoal. O empreendedorismo, a disposição a assumir riscos, a habilidade social de associar competição com cooperação e associativismo, são características culturais que favorecem certos grupos e regiões, e que são altamente reforçadas por outros fatores culturais, como participação em clubes, grupos musicais e de dança, atividades religiosas, etc. Além disso, como já foi mencionado, uma forte identidade cultural se reflete em serviços e produtos diferenciados, agregando valor econômico num contexto de busca pelo que é autêntico e único.

Mais visibilidade à importância da cultura na economia

Uma tarefa importante para os gestores da área cultural, no mundo todo, é a de buscar maior visibilidade para a presença das atividades culturais na economia, como geradoras de emprego e renda.
Em grande parte dos países, as indústrias culturais e outras atividades de forte referência cultural (como o artesanato, o turismo cultural, o design) não estão claramente representadas nas contas nacionais. No Brasil, por exemplo, a indústria editorial aparece como um subsetor dentro da indústria gráfica (que inclui a produção de embalagens de papel e papelão). As indústrias audiovisuais, fonográficas e o setor de rádio e TV não aparecem explicitamente mencionados; no artesanato confundem-se arte popular e oficinas mecânicas, serralheria, confecções, etc. O resultado é que nem os responsáveis pelas contas públicas nem os próprios gestores culturais têm idéia clara do peso econômico da cultura. A instituição de uma conta satélite da cultura, dentro da contabilidade nacional, é uma aspiração do setor, que no Brasil já começa a tomar forma, graças aos entendimentos entre o Ministério da Cultura e a área econômica do governo.
Por outro lado, a articulação internacional que se busca, no campo cultural, não pode prescindir da existência de dados, estatísticas e séries históricas comparáveis entre os países e os blocos regionais. Para isso, a coleta e sistematização desses dados deve refletir um consenso conceitual – basear-se em definições e metodologias comuns – que ainda está longe de ser atingido. [16]
Mais uma vez, o artesanato pode servir como exemplo: nem mesmo no âmbito da comunidade européia se conseguiu um consenso sobre a abrangência do termo. Não existe um conceito único, nem critérios homogêneos [17]. Artesanato se confunde com, ou se inclui, freqüentemente, em conceitos mais amplos, como indústria/serviço artesanal, indústria doméstica, e até mesmo pequena empresa e empresa individual ou familiar. Em alguns países, como a França ou a Itália, “artesanal” é associado a exclusividade, acabamento de alta qualidade, design avançado: um sapato, uma jóia, uma roupa, um móvel, um instrumento musical produzido artesanalmente é um luxo, algo muito acima do que pode ser produzido industrialmente. Em outros lugares, talvez a maioria, “artesanal” é o pré-industrial, o que é produzido com métodos primitivos por comunidades carentes, ou no meio rural, ou por etnias não bem integradas à cultura nacional predominante. Isto quer dizer que quando se fala de “artesanato” cada país está falando de coisas diferentes: seus dados não são comparáveis e suas políticas não têm o mesmo objeto.

Concluindo

Na agenda dos desafios que se colocam para os agentes e gestores culturais nesta era de estreitamento das relações internacionais, incluem-se certamente alguns dos itens sobre os quais estivemos refletindo aqui hoje:
  • tirar proveito dos espaços que se abrem na economia global para a produção cultural nacional e local;
  • dar visibilidade à presença das atividades culturais na economia (criando contas-satélite nacionais da cultura, com base num consenso conceitual internacional, que conduza a comparações e à troca de experiências sobre bases comensuráveis);
  • evidenciar a centralidade da cultura nas políticas de desenvolvimento, e sua capacidade de favorecer a educação, a saúde, a segurança, a preservação do meio ambiente – além de proporcionar emprego e renda e de agregar valor a inúmeras outras áreas, como turismo e exportações;
  • orientar as políticas culturais no sentido da inclusão social e econômica, de raça e de sexo;
  • promover articulações culturais globais visando à afirmação e às trocas entre as diferentes identidades culturais;
  • defender, nos foros econômicos internacionais, o tratamento diferenciado à produção cultural, visando a preservação da sua diversidade.
Não tive a pretensão, neste Fórum, de apresentar novidades nem de apontar soluções para essas ou outras questões com as quais todos nós, trabalhadores da cultura, convivemos no nosso dia-a-dia. Nessa retomada necessariamente breve de alguns desses temas que nos empolgam, quis apenas, mantendo viva a chama da inquietação, lembrar que, pela cultura, temos ainda o poder de mudar o mundo para melhor.
Rejane Xavier [18]
julho de 2004



[1] Canclini,N.G., em Culturas Híbridas, São Paulo, EDUSP, 1997, destaca o papel das indústrias culturais na transformação do espaço público.
[2] Cf. Jeremy Rifkin, A era do acesso, São Paulo, Makron Books, 2001. O autor enfatiza a redução da materialidade da produção econômica, em benefício do crescimento da importância dos ativos intelectuais, do papel dos serviços e dos conhecimentos.
[3] Foto: Carlos Caju da Silva/Jeanette Johansen da Silva, em
www.ngo.grida.no/.../ projects/caju/bilde2.htm
[4] Ver a entrevista “Novas formas de cidadania”, com Jean-Louis Laville e Roger Sue, em http://www.ambafrance.org.br/abr/label/Label39/dossier/10acteur.html
[5] Cf Niall Ferguson, Hegemony or Empire? Foreign Affairs, September/October 2003
[6] Joseph S. Nye, Jr., Diretor da Kennedy School of Government na Universidade de Harvard, foi Presidente do National Intelligence Council e Secretário Assistente da Defesa no governo Clinton. É autor de vários livros, entre os quais The Paradox of American Power: Why the World's Only Superpower Can't Go It Alone e Bound to Lead: The Changing Nature of American Power. A editora Public Affairs publicará sua próxima obra, The Power Game, no final de 2004.
[7] Conceito desenvolvido por Nye desde o final dos anos 80, e objeto do seu último livro, Soft Power: the Means to Success in World Politics, PublicAffairs, 2004.
[8] Pierre Bourdieu, com diferente visão e motivação políticas, desenvolveu o conceito análogo de “poder simbólico” (“Symbolic power : ... an almost magical kind of power which enables one to obtain the equivalent of what is obtained through force (whether physical or economic), by virtue of the specific effect of mobilization (...)”.(Language and Symbolic Power, p. 170)
[9] O do bastão (militar) e o da cenoura (econômico). Esse é o uso que interessa a Nye, que o preconiza como a maneira mais inteligente de consolidar a hegemonia americana (“smart power”).
[10] Cf. ALEXANDER, Jeffrey C. Ação Coletiva, Cultura e Sociedade Civil: Secularização, atualização, inversão, revisão e deslocamento do modelo clássico dos movimentos sociais. Rev. bras. Ci. Soc., Junho 1998, vol.13, no.37, p.5-31. ISSN 0102-6909.
[11] Cf. Merval Pereira O vasto mundo de Gil, em O Globo – RJ, 16/07/2004 - 08:25 http://clipmail.interjornal.com.br/clipmail.kmf?clip=gl3y4ojz2f&palavra=PNUD#topo#topo
[12] Pesquisa Anual por Amostra de Domicílios, espécie de “mini-censo” amostral realizado anualmente pelo IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
[13] Ver Sérgio Guimarães Ferreira e Ricardo Montes de Moraes Desempenho Educacional no Brasil: o que nos diz a PNAD-2001, em
[14] O fenômeno atinge também outros grupos indígenas: ver Erthal, R., 2001. O suicídio Tikúna no Alto Solimões: Uma expressão de conflitos. Cadernos de Saúde Pública, 17:299-311.
[15] Ver por exemplo Pimentel, Spensy O mistério dos suicídios, em
Os resultados da escolarização entre os Kaiowá e Guarani no Mato Grosso do Sul, em
[16] Ver por exemplo o trabalho de Asta Manninen, Statistics in the Wake of Challenges Posed by Cultural Diversity in a Globalization Context, em http://www.colloque2002symposium.gouv.qc.ca/PDF/Manninen_paper_Symposium.pdf
[17] Ver o resultado do esforço da Comunidade Européia para chegar a critérios estatísticos mínimos comuns, no estudo "Methodology for the collection and grouping of statistical data on small craft businesses" (http://europa.eu.int/comm/enterprise/entrepreneurship/craft/craft-studies/documents/study-methodology-en.pdf)
[18] Doutora em Filosofia, Jornalista. E-mail rejanexavier@hotmail.com