sexta-feira, 24 de julho de 2009

Sobre a indução e as ciências empíricas


O núcleo epistemológico da discussão sobre a indução e seu papel na metodologia das ciências empíricas pode ser resumido numa pergunta muito simples: o princípio da indução é, e deve ser, a base das ciências empíricas modernas ou, posto sob suspeição desde Hume, no século XVIII, estaria hoje praticamente desacreditado, tendo sucumbido às críticas de Popper e ao paradoxo de Hempel?

O conceito de indução (o tipo de raciocínio que nos leva a tirar conclusões gerais, ou a fazer previsões sobre casos não observados, a partir dos casos que já observamos) tem um longo passado filosófico, que vale a pena revisitar.

Aristóteles foi quem primeiro se ocupou sistematicamente da indução, e deu-lhe um fundamento que dependia da sua metafísica, isto é, do que ele pensava a respeito da natureza da realidade e do conhecimento. O conhecimento científico era, para Aristóteles, essencialmente classificatório. Num mundo de seres que se organizam e se hierarquizam de acordo com formas ou essências imutáveis, um enunciado científico afirma de um indivíduo que ele pertence a alguma espécie, ou de alguma espécie que ela pertence a um gênero. O indivíduo é o caso concreto, o particular; afirmar que ele pertence a uma espécie é determinar a sua essência, captando o que há nele de universal. Os universais, as essências, segundo Aristóteles, existem nas coisas, nos particulares. A indução (in-ducere, conduzir para dentro) consistiria exatamente nesse reconhecimento do conceito (o universal) dentro do sensível (o particular). Ao observarmos o comportamento de um fenômeno em diversos casos particulares e reconhecermos uma regularidade, seríamos levados naturalmente a inferir que este comportamento regular é uma manifestação da essência do fenômeno, e a prever que o mesmo comportamento se manifestará nos casos que vierem a ser observados futuramente. Esse é, basicamente, o modo como Aristóteles entende e justifica a indução.

Depois de dois mil anos de reinado quase absoluto, as idéias metafísicas de Aristóteles passaram a ser contestadas pela filosofia moderna. Hume, em particular, rejeitou o essencialismo aristotélico, e com isso solapou as bases da indução. A ligação entre os casos particulares e a lei geral deixa de depender da presença do universal na coisa, e passa a ser vista como resultado de mera expectativa subjetiva, com base no hábito. Com isso, Hume não rejeita nem desvaloriza a indução como recurso da vida quotidiana ou da ciência empírica: apenas priva da pretensão de certeza metafísica, absoluta, inquestionável, o conhecimento obtido por meio dela.

A crítica humeana à teoria aristotélica da indução não impediu que o empirismo lógico, concepção dominante na filosofia da ciência até os anos 50, defendesse uma visão indutivista do método científico. Acreditava-se que as leis gerais das ciências empíricas eram obtidas por indução a partir da observação de casos particulares, constituindo um simples resumo ou "condensação" da experiência concreta. Além de ser obtidas por indução, as leis gerais, para os empiristas lógicos, seriam confirmadas também indutivamente. Quanto mais instâncias positivas (casos particulares que concordam com a lei) fossem observadas, maior seria o grau de confirmação da lei ou hipótese. Aliás, leis seriam apenas hipóteses com grau de confirmação suficientemente elevado. Foi a idéia de grau de confirmação que levou a tentativas de aplicação do cálculo de probabilidades a essa discussão, sem maior êxito.

O descrédito da concepção indutivista do método científico foi obra em grande parte de Popper. Popper pretendeu ter resolvido o problema da indução de maneira nova e radical: simplesmente mostrando que não existe o problema da indução na ciência empírica, pela boa razão de que a ciência empírica não é indutiva. Hipóteses científicas nem são obtidas por generalização indutiva, nem são confirmadas pela repetição de casos positivos. A ciência procede por conjeturas (generalizações ousadas, sem apoio lógico na experiência) e refutações. O que fortalece nossas hipóteses é a sua resistência às tentativas engenhosas e honestas de refutação a que forem submetidas e às quais conseguirem sobreviver. A esse processo, Popper chama corroboração.

Toda a teoria de Popper sobre o método científico repousa em última análise sobre uma aparentemente curiosa propriedade lógica dos enunciados universais. As hipóteses e leis científicas costumam expressar-se como enunciados universais: "sempre que há expectativa de congelamento, os preços são aumentados", por exemplo, ou "todos os corvos são pretos", mais simplesmente. Podemos expressar a estrutura lógica mais grosseira dessas leis através da forma "sempre que A, B", ou A -> B ("A implica B"). Pois bem, centenas ou milhares de casos onde A é acompanhado ou seguido de B não eliminam a possibilidade lógica de que A possa vir a ocorrer sem B. Entretanto, um único caso observado de A sem B derruba a lei geral, que afirma universalmente a implicação de B por A.

Essa assimetria lógica foi o que levou Popper a sustentar que os enunciados universais, embora não possam ser confirmados, podem ser refutados. Logicamente, "todos os corvos são pretos" é equivalente a "se algo não é preto, então não é corvo". Uma única observação de um corvo não-preto derruba um enunciado geral que concorda com milhares de observações de corvos pretos. Aqui, é preciso ter cuidado com dois erros lógicos que se cometem com muita facilidade, a tal ponto nos parecendo naturais que receberam o nome especial de falácias: a falácia da afirmação do consequente, e a falácia da negação do antecedente. Um exemplo nos ajudará a entendê-las.

Seja a hipótese ou lei geral: "se há expectativa de congelamento, então os preços aumentam", que representaremos por "se A, então B", ou A->B. Poderíamos ser tentados a pensar que sería lícito concluir, com base nessa lei que "se não há expectativa de congelamento, os preços não aumentam" (não-A -> não-B), ou que "se os preços aumentaram, então havia expectativa de congelamento" (B->A). Acontece, entretanto, que nenhuma dessas duas afirmações é consequência da nossa hipótese inicial, e ambas podem muito bem ser falsas enquanto aquela é verdadeira. Pode perfeitamente ocorrer que não haja expectativa de congelamento e os preços aumentem por outros motivos (quebra de safra, por exemplo); isso mostra que é possível que os preços tenham aumentado sem que houvesse expectativa de congelamento. Essas duas últimas afirmações são logicamente equivalentes entre si, mas não à primeira.

É neste ponto que entra Hempel, com seu famoso paradoxo dos corvos. Hempel também se baseia na equivalência lógica entre “A->B” e “não-B -> não-A”. Seu objetivo, entretanto, é uma crítica da idéia de confirmação de um enunciado geral por suas instâncias positivas. É razoável supor que tudo o que confirma um enunciado, confirma também os enunciados que lhe são logicamente equivalentes. Mas, nesse caso, cada confirmação do enunciado não-B->não-A é também uma confirmação do enunciado A->B. Observações as mais disparatadas "confirmam" o enunciado "se algo não é preto, então não é corvo". Cada coisa não-preta que observamos e que não for um corvo o confirma: esta parede, meu sapato, o Taj-Mahal não são pretos e não são corvos. Mas nossa intuição nos diz que isso não tem nada a ver com o enunciado, logicamente equivalente, "todos os corvos são pretos".

O paradoxo de Hempel mostra que a confirmação não é uma operação puramente lógica, o que aliás não deveria ser tão surpreendente assim. Quando se trata de ciência empírica nem todos os problemas podem ser resolvidos apelando simplesmente à lógica ! Hempel não coloca em dúvida a legitimidade da indução como princípio metodológico da ciência empírica, mas nos leva a questionar a teoria filosófica que sustenta serem os enunciados gerais das ciências empíricas confirmados logicamente pelos casos positivos observados.

Somando-se as críticas de Popper e de Hempel, teríamos que nem a indução é o caminho que leva à formulação das leis científicas, nem a confrontação indutiva das mesmas com a experiência lhes assegura a confirmação.

Há outros paradoxos lógicos associados à confirmação, como o das esmeraldas verzuis de Nelson Goodman. Muito complicado para ser apresentado aqui, ele mostra que a mesma base empírica - os mesmos fatos observados - pode dar lugar a diferentes (e incompatíveis) projeções indutivas, o que vem a reforçar uma saudável dose de ceticismo quanto à obrigatoriedade de aceitar conclusões indutivas, sejam elas quais forem.

Mais longe do que isso vão as idéias contraindutivas de Paul Feyerabend. Para Popper, o momento mais essencial do método científico (aquele em que as idéias ousadas, as conjeturas, devem enfrentar o tribunal da experiência) deve passar pela busca de dados que contrariem a teoria. Para Feyerabend, não só devemos procurar dados que contrariem nossas teorias, como precisamos procurar teorias que contrariem os nossos dados (e as nossas velhas teorias). Inspirando-se em J.Stuart Mill, e apoiando-se não em razões lógicas, mas humanísticas, Feyerabend propõe-se a, dessa forma, enriquecer a metodologia científica. A contradição funcionaria como um "princípio de proliferação", crítico, criativo, pluralista, agindo no sentido de desesclerosar as categorias científicas e de nos tornar capazes de pensar, sentir, ver, experimentar o mundo de maneiras alternativas.

Além de buscar teorias que estejam de acordo com os fatos, para Feyerabend a ciência empírica deveria também trabalhar com hipóteses inconsistentes com teorias ou com dados bem estabelecidos. Talvez aparentemente absurda, essa sugestão "anarquista" apresenta bons fundamentos históricos. Ao afirmar o movimento da Terra, a evolução das espécies ou a sexualidade infantil, Copérnico, Darwin e Freud não estavam por acaso contrariando teorias e "fatos" bem estabelecidos e aceitos?

Podemos encerrar este apanhado da questão afirmando que não é adequado entender as teorias empíricas, especialmente as mais avançadas, como meras generalizações indutivas de observações recolhidas espontaneamente ou de modo mais ou menos sistemático. São construções conceituais altamente complexas, que envolvem desde simplificações drásticas em seu ponto de partida (como quando a Física pretende se ocupar de "sistemas isolados", ou a Economia se propõe a tratar da "concorrência perfeita"); postulações de processos e entidades não observáveis; aparatos matemáticos sofisticados; pressuposições metafísicas muitas vezes não explicitadas; até recortes do real frequentemente carregados de viezes ideológicos, entre tantos outros elementos!

Entender como tudo isso funciona é tarefa fascinante, e entender a relevância dessa questão é essencial para ter, da ciência empírica, uma visão dinâmica e não dogmática. A indução, metodologicamente útil e praticamente indispensável, à ciência como à vida quotidiana, não assegura aos seus resultados nenhum caráter de verdade absoluta e imutável. Garante-lhes, ao contrário, a porosidade e o caráter aberto, essenciais para o progresso científico, e para a liberdade e a criatividade do pensamento humano.

Um comentário:

Renato Friedmann disse...

Excelente resumo - simples, compreensível, estimulante e agradável de ler.