quinta-feira, 23 de julho de 2009

O céu que nos protege


The Sheltering Sky is an allegory of the spiritual adventure of the fully conscious person into modern experience... [It] contains a mirror of what is most terrifying and cryptic within the Sahara of moral nihilism, into which the race of man seems to be wandering blindly.
[do prefácio de Tennessee Williams]



O livro em que se baseou o filme de Bertolucci O céu que nos protege (1990) foi escrito por Paul Bowles em 1949. Está portanto completando 60 anos agora em 2009. Nem o livro nem o filme foram grandes sucessos de público em seus respectivos lançamentos, mas sempre tiveram admiradores de peso. Eu confesso que adorei o filme, e fui ler o livro por causa de um trabalho de História do Cinema sobre a obra de Bertolucci – nos idos de 91, quando cursava Jornalismo na UnB.
A seguir, algumas reflexões sobre ambos – o livro e o filme – que se misturaram de tal forma para mim que já não consigo separá-los.

O filme:
The Sheltering Sky. EUA, 1990.
Diretor: Bernardo Bertolucci
Roteiro: Mark Peploe e Bernardo Bertolucci. Baseado no livro de Paul Bowles.
Fotografia: Vittorio Storaro
Montagem: Gabriella Cristiani
Música: Ryuichi Sakamoto
Elenco: Debra Winger (Kit), John Malkovich (Port), Campbell Scott (Tunner).


Um filme “pós-industrial”
A idéia de que o sentido é algo que deve ser produzido - de que não está aí sempre já dado, por Deus, pela Natureza - é um elemento que aproxima o cinema do pathos do homem ocidental moderno e de sua forma de vida permanentemente revolucionária.
A montagem cinematográfica tem uma forte correlação com a "linha de montagem" industrial: há uma intervenção humana, armada de propósitos e de instrumentos poderosos, atuando para conferir aos materiais, aos ritmos e às formas da natureza uma utilidade e um sentido novos, produzidos por essa mesma intervenção.
Como filme, O céu que nos protege é ”pós-industrial”: entra em choque com a atitude e com a estética da linha de montagem, tanto por seu conteúdo como por sua forma, e talvez por isso nos produza, à primeira vista, uma reação de estranhamento e mesmo de rejeição.
Chato ou brilhante?, perguntava-se sobre ele uma crítica de jornal: chato e brilhante, creio que deveria ser a resposta. Chato porque foge dos padrões de ritmo e de construção a que estamos condicionados ("é lento", "não acontece nada"); brilhante porque é isso mesmo o que pretende, porque o tema que propõe é precisamente o esgotamento do indivíduo diante de um mundo que está insaciavelmente a requerer-lhe que o construa, que lhe confira sentido, e que vertiginosamente se desfaz e se torna estranho e insondável. Decifra-me ou te devorarei.
O céu que nos protege é um olhar (ele próprio quase indiferente) sobre o naufrágio de um pequeno grupo de pessoas em sua última e fatalisticamente votada ao insucesso tentativa de "refazer" suas vidas. Não há o que decifrar, e todos acabam devorados depois de se debater em vão - sem muito esforço nem muita convicção, na verdade - contra o impossível.

Port: não há sentido
Ao andar por uma poeirenta e pedregosa estrada nos arredores de uma cidadezinha perdida do Saara, Port, o personagem de Bowles/Bertolucci, "não levantava os olhos porque sabia o quanto a aparência da paisagem não teria nenhum sentido. É preciso energia para investir a vida de sentido e, no momento, essa energia faltava-lhe" (p.149).
O título do livro, e do filme, "o céu que nos protege", não sinaliza nenhuma esperança transcendente, nenhuma saída religiosa. "O céu aqui é muito estranho. Quando olho para ele tenho a sensação de que é sólido lá em cima, protegendo-nos do que está atrás. (...) Mas o que está atrás? (...) Nada, acho eu. Só a escuridão. A noite absoluta." (p.94)
Este céu "sólido" é o limite da frágil bolha de sentido dentro da qual podemos viver, mas que está pronta a arrebentar a qualquer momento. E arrebenta mesmo. "Uma estrela negra aparece, um ponto escuro na claridade do céu noturno. Ponto escuro e via de acesso ao repouso. Estenda a mão, rompa o tênue tecido do céu que protege, descanse" (p.218). Port está morto.

Kit: não há repouso
Kit não morre, nem tem acesso ao repouso. "Antes dos vinte [dizia ela], eu achava que a vida era uma coisa que estava sempre tomando um ímpeto. Eu ficaria mais culta e madura a cada ano. Aprenderia sempre mais, ficaria mais sábia, com mais intuição, chegando cada vez mais perto da verdade...Ela hesitou. Port riu abruptamente. - E agora você sabe que não é assim. Certo? É mais ou menos como fumar um cigarro. As primeiras baforadas têm um gosto maravilhoso e você não imagina que possam acabar. Aí você começou a não lhe dar valor algum especial. Subitamente percebe que já queimou quase até o fim. É aí que você se torna consciente do gosto amargo" (p.153/4).
Se não há sentido, não poderia ao menos haver descanso? Não necessariamente o da morte: por que não o da indiferença? "Se pudesse apenas desistir, relaxar, e viver sabendo perfeitamente que não havia esperança. Porém nenhum saber era um saber certo; o porvir sempre dispunha de mais de uma direção possível. Não se podia sequer desistir da esperança" (p.192). Kit vai enlouquecer.

Incomunicabilidade
Port e Kit não se comunicam entre si: dormem em quartos separados, têm sensibilidades muito diferentes diante das coisas mais banais (uma paisagem, o relato de um sonho, as pessoas com quem encontram, como a exótica família Lyle, a própria presença de Turner). Turner, o terceiro personagem, tem a função de agravar o malestar, a impossibilidade de contato do casal Port/Kit.
Para eles, é muito importante se reaproximar um do outro, fortalecer os laços afetivos; mas nada do que fazem nesse sentido dá certo, e os desencontros se somam sem qualquer perspectiva. Port se deixa envolver com prostitutas e bailarinas, Kit tem uma noite de sexo com Turner, mas são acontecimentos exteriores ao desejo, à vontade, ou mesmo à consciência de ambos: coisas que ocorrem como que por fatalidade, mecanicamente.

Turner: irremediavelmente banal
Turner, superficial, autosuficiente, banal, curte a viagem um tanto irresponsavelmente. Tenta previsivelmente seduzir Kit - e complica ainda mais a confusão na medida em que, num certo sentido, o consegue -; torce um pouco para que Port se afaste, mas tudo sem muito envolvimento ou profundidade. Turner tampouco terá salvação: seu destino, não melhor do que o dos demais, é o de sair dessa viagem tão tolo, perdido e inconsequente como entrou.

Arquitetura do desalento
O sentimento do mundo com que Bowles e Bertolucci trabalham não é mais o da sociedade industrial ao qual correspondia a estética clássica da montagem cinematográfica. Os elementos estruturais do fenômeno retratado de que fala Eisenstein, a estrutura do comportamento emocional do homem impõem a O céu que nos protege uma pelo menos aparente falta de arquitetura, um ritmo independente da intervenção humana, um "tempo real" que dá a sensação do fluir indiferente das coisas e do caráter "estrangeiro" do homem no mundo.
Do ponto de vista da composição, o filme (como o livro) apela para a simplicidade: "o objeto da imagem e a lei da estrutura, pela qual ele é representado, podem coincidir. Este seria o caso mais simples, e o problema composicional em tal aspecto mais ou menos se resolve por si mesmo" (Eisenstein, Film Form, p.151). O desalento dos personagens, sua incomunicabilidade, seu isolamento não poderiam ser melhor representados do que pelas magníficas paisagens dos desertos e dos estranhos homens e culturas que o habitam.
A despropositada bagagem que os personagens carregam, sua elegância incongruente sublinham o clima de deslocamento: eles não pertencem àquele ambiente, àquele clima, àquela cultura, àquele mundo.
A magestade, a grandiosidade, a esterilidade da paisagem sublinham a pequenez do homem e a inutilidade dos seus débeis gestos para alterar o curso inexorável das coisas, ou até mesmo para se comunicar com o próprio semelhante.

Uma história sem “moral”
O céu que nos protege não é um (melo)drama, com os conflitos, o sentido e a moral de uma narrativa clássica. Ao comentar seu primeiro filme (A ama-seca) e suas diferenças em relação a Pasolini, com quem acabara de filmar Accattone, Bertolucci menciona o que os separa: “a diferença substancial em nossa abordagem da morte”.
“Pier Paolo tinha uma concepção clássica da morte; ela é inteiramente sagrada, na tradição das tragédias gregas. Em A ama-seca, a morte é ouvida à distância como uma canção cantada em tom menor. Ela simplesmente marca a passagem do tempo, o decorrer das horas em um dia, o fluir nas vidas diárias dos personagens que não têm o destino ou a ambição de deixar sua marca na história."

Aqui também, em O céu que nos protege, a morte envolve, em tom menor, o grupo de personagens, sem destino ou ambição para moldar o rumo das suas próprias histórias.
A luz que banha as coisas e os homens no deserto de Bertolucci não vem do céu: é a luz fria do laboratório do cientista que observa indiferente o comportamento de seus insetos. O "cinéfilo perverso" que Bertolucci se proclama está interessado é nela, na luz e nos seus efeitos, e não nas míseras moscas que se agitam e morrem sob seu foco.

Brasília, maio 1991/julho 2009.

Post Scriptum
Tentativa de explicitação de algumas idéias meio crípticas do trabalho

A idéia básica: uma contraposição entre o espírito da chamada "modernidade" e o da pós-modernidade.
Características do primeiro: o homem se sente "amo e senhor da natureza"; o mundo não está aí só para ser contemplado e refletido (no conhecimento, na arte, na religião), como no período medieval, mas para ser (re)feito. Pelo trabalho, pela tecnologia, o homem domina as forças da natureza e as submete a um projeto humano. É a consciência humana, a ação humana, a intervenção do homem que dá sentido ao mundo. O fundamental, nesse contexto, é que o homem acredita que a vida, a história, o acontecer humano tem sentido.

Já a sensibilidade do homem pós-moderno se ressente da falência das grandes utopias que vinham dando esse sentido à sua história, à sua ação. Não se acredita mais na religião ("Deus está morto: tudo é permitido"), no progresso, na razão, na luta de classes, no proletariado ou seja lá no que for como capaz de explicar, de unificar, de mostrar uma finalidade, um rumo coerente, claro, geral, para a ação humana como um todo. É a falência das "grandes narrativas" (Lyotard) de que falam os pós-modernos.

A idéia seguinte é ligar isso com a estética (a "linguagem") do cinema, a partir de uma sugestão de Eisenstein. Na introdução de O sentido do filme, o apresentador (José Carlos Avellar) resume um prefácio que Eisenstein escreveu para a edição inglesa do livro, e que não chegou a ser publicado. Neste prefácio Eisenstein diz que os aumentos e diminuições do uso da montagem (não só no cinema, mas nas artes em geral) não são obra do acaso, mas estão associados ao caráter do contexto social em que ocorrem. Diz ele: "nos períodos de uma intromissão ativa no desmonte, reorganização e reestruturação da realidade, nos períodos de uma reconstrução ativa da vida, a montagem ganha entre os métodos de construção da arte uma importância e uma intensidade que não cessam de crescer"(grifo meu). Daí minha associação: montagem cinematográfica/ linha de montagem industrial/intervenção humana impondo forma e sentido ao dado natural. Há uma estética (uso amplo da montagem, estrutura narrativa clássica: há algo que "acontece", uma ação que se desenrola, com "começo, meio e fim") e uma forma de vida que são afins, que se correspondem.

Já no nosso filme o clima é bem diferente, ninguém tem pique para dar sentido a nada, a psicologia é muito mais de "deixar-se levar", sem muitas ilusões ou esperanças. Porisso eu digo que o filme é brilhante porque é chato: ele quer ser chato, ele quer passar esse clima arrastado, meio sufocante (mas sem nada de "trágico": revoltar-se contra o destino ainda é uma maneira de acreditar que há um destino, um script para a vida humana). "Refazer" a vida é um objetivo que só pode fracassar: se a vida nunca foi feita, se não há o que, nem por que fazer nada... [Não compartilho - inteiramente - esse sentimento, mas o compreendo, e acho que o filme trabalha com ele] A esse outro tipo de feeling existencial corresponde outra "estética": ritmo lento, poucos recortes, "tempo real", falta de "mensagem", de "soluções" - conflitos que não se resolvem, e tantas coisas que foram lançadas contra o filme como críticas, mas que me parecem fazer parte das suas intenções.

Sobre a questão da composição, que ao que parece também ficou confusa: pelo que entendi do Eisenstein (Film Form, p.151), acho que ele quer dizer que é meio óbvio expressar a alegria por imagens saltitantes de uma criança pulando, ou o vazio e a solidão por imagens lentas de um deserto vazio: "o objeto da imagem e a lei da estrutura pelo qual ele é representado" coincidem simplesmente. Sem tal extremo de obviedade, acho que Bertolucci não foi lá muito "dialético" na composição, neste sentido.

BIBLIOGRAFIA:

AMENGUAL,B. Chaves do Cinema. Rio, Civilização Brasileira, 1973.
BOWLES,P. O céu que nos protege. Rio, Rocco, 1990.
DIVERSOS Enciclopedia Ilustrada del Cine. Barcelona, Labor, 1969.
EISENSTEIN,S. Film Form. London, Dennis Dobson, 1951.
EWALD Fº,R. Dicionário de cineastas. Porto Alegre, L&PM, 1988.
RANVAUD,D./UNGARI,E. Bertolucci by Bertolucci. London, Plexus, 1987.
WILLIANS, Tennessee “An Allegory of Man and His Sahara”em http://www.nytimes.com/books/98/05/17/specials/bowles-sheltering.html?_r=1, acessado em 22/7/2009.
LOPES, Chico “O encanto do Deserto esmagador: revendo um Berlolucci polêmico” em http://www.verdestrigos.org/sitenovo/site/cronica_ver.asp?id=1084, acessado em 23/07/2009


Bertolucci - Filmografia
1962: La commare seca (A ama-seca)
1964: Prima della rivoluzione (Antes da revolução)
1965/66:La via del petroleo (O caminho do petróleo), documentário.
1966: Il canale (O canal)
1967: Agonia (episódio de 28 min)
1968: Partner
1970: Strategia del ragno (A estratégia da aranha)
1970: Il conformista (O conformista)
1971: La salure è malata (ou I poven muoioni prima), documentário, 35 min.
1972: Ultimo tango a Parigi (O último tango em Paris)
1976: Novecento (1900)
1979: La Luna (A lua)
1981: La tragedia di un uomo ridicolo (A tragédia de um homem ridículo)
1987: Ultimo Imperatore (O último Imperador)
1990: The Sheltering Sky (O céu que nos protege)
1993: Piccolo Buddha (O Pequeno Buda)
1996: Io ballo da sola (Beleza Roubada)
1998: L'assedio (Assédio)
2002: Ten Minutes Older: The Cello (segmento de "Histoire d'eaux")
2003: The Dreamers (Os Sonhadores)

Bernardo Bertolucci nasceu em 1941, filho do poeta e crítico Attilio Bertolucci. Entre os 12 e os 15 anos escreveu poesia e rodou filmes amadores em 16 mm: O Teleférico, Morte de um porco. Foi assistente de direção de Pier Paolo Pasolini (Accatone, 1961).

Bertolucci, como seu pai Attilio, foi militante do PC italiano desde jovem. Seu projeto mais ambicioso, 1900, apresenta um painel de 100 anos da história italiana, em duas partes, em forma de uma verdadeira saga operária. Em O último Imperador revela evidente simpatia pela revolução chinesa. Por outro lado, seus filmes muitas vezes são elaborações de temas literários, como A estratégia da aranha, inspirada no "tema do traidor e do herói" de J.L.Borges, ou O conformista, baseado numa novela de Alberto Moravia. Este é também o caso de O céu que nos protege (1990), onde segue o romance do mesmo nome do escritor americano Paul Bowles.

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