terça-feira, 17 de maio de 2011

O Demétrio de novo

O artigo que ele (não) menciona abaixo já foi transcrito aqui. O que aparece a seguir é um comentário via e-mail, que achei que valia a pena compartilhar.Quando desapareceu o "gaúcho de verdade"? "O gaúcho é uma figura libertária ou um servil?" - questões que o Demétrio coloca e responde à luz das suas vivências e leituras. (RX)
Vou então jogar umas coisas. Não no ventilador, por supuesto, porque, como se diz no Passo da Tigra, noblesse oblige. Espargindo, para futuro acolheramento, se quadrar. Mais como quem lança... búzios!
Antes de mais tudo, recomendo vivamente um artigo meu, que esgota esse assunto com precisão e estilo invejáveis. Faço-o sem nenhum pudor, por uma razão até simples: nunca o escrevi.
Se intitula (rá; ria...) “Gauchismo: seus detratores, seu gauchismo.”
O Bioy Casares diz um troço muito legal: que, de uma maneira geral, a desaparição ou a derradeira presença do gaúcho “de verdade” (porque sempre se afirma que no presente ele não existe e o que há são representações fantasiosas) se localiza setenta anos antes do discurso que ora se estiver fazendo.
Isso permite um monte de chutes bonitos. O primeiro é que esse lapso coincide com a possibilidade de interlocução pessoal de avô com neto, tanto quanto com a expectativa de vida.
Quanta gente vinha dizendo que o Verdadeiro Gaúcho (doravante chamado neste instrumento VG) morreu na época da Revolução de 30?
...e lá pelos anos 60, 70, se escrevia “gaúcho velho que foste menino nos entreveros de 93...”
E o mais urbano dos pelotenses do início do século XX (que, no entanto, não entrou para a história da literatura como um dos prováveis fatores que engendraram o Guimarães Rosa por causa do que escreveu no jornal contra as mulheres de sociedade que iam ao teatro com chapéus enormes e atrapalhavam a função...); o Simões Lopes Neto – onde viu o VG estertorar? Na revolução Farroupilha, na Guerra do Paraguai...
E os carinhas da Guerra do Paraguai, vendo entrar tanta novidade tecnológica e mercadológica, como em toda guerra (e é aí que se localiza a entrada da bombacha); fósforos, acordeom... o que disseram?
“A gaita matou a viola
O fósfre matou o isqueiro
A bombacha, o chiripá...
E a moda, o uso campeiro”
Acabavam-se os costumes do.... VG!!!! Em 1860 e algo!!!!
O conflito terminou em 70 e em 72 o Hernandez lançou o Fierro... dizendo que o VG não existia mais (na verdade, reclamando de seu extermínio físico, econômico, político e, portanto,  identitário...).
Não sou antropólogo, exata e unicamente para poder usar categorias errado, como bem entender, sem sequer pensa-las como “categorias”. Aqui vai uma: etnia. Perguntem para o cigano - mas para o cigano que não vive em comboio, não toca violino, não usa lenços e roupas tais e não lê carta de baralho -, o que ele é. A resposta provavelmente será “cigano”.
Volvendo: “seus detratores, seu gauchismo”. A identidade gaúcha é motivo de ciúme quase geral – a exceção é a rejeição ofendida e isso me parece muito ser a mesma coisa. Observem em todos nós o argumento (absolutamente legítimo) de que é uma apropriação ridícula e forçada, a que faz esse ou aquele grupo ou manifestação cultural, que nos irrita profundamente – cada um de nós, entretanto (e essa é a continuação quase infalível desse comentário) gosta disso ou daquilo, tem essa ou aquela vivência ou leitura, admira tais ou quais traços de personalidade... Reconhece em si, enfim, o tal do pertencimento. Em definitiva, uma legitimidade. A frasezinha aquela: “o gaúcho não vive sua identidade; a sofre.”
Eu sei de memória 600 letras argentinas e uruguaias. Não foi só pelo fantástico caldo de cultura familiar; quis cantar música gaúcha e teria dificuldade de memorizar 60 daqui, que me satisfizessem do ponto de vista estético, literário e histórico. E nunca deixei de ver a quase polaridade política da representação do gaúcho lá e aqui. 
Não sou tradicionalista, em suma, o que, evidentemente, seria muito mais fácil.
O que acho é que o tempo vai dissolver determinadas questões. Entre elas: o gaúcho é uma figura libertária ou um servil? Ambos, como tanta gente! O cara que dizia “acima de mim, meu chapéu; abaixo de mim, meu cavalo” também sustentou o caudilhismo e a estância autoritária. Quase da mesma forma como um operário anarquista foi anarquista e operário: alguns mais isso, outros mais aquilo, uns quantos presos e mortos... Uns poucos botaram fábrica!
Quem vê uma linda festa na Europa com a recriação de um ambiente medieval não se pergunta “como eles podem celebrar algo que foi tão violento, injusto, excludente...???” A distância e o tempo nos permitem ver com clareza que não é isso o que eles celebram – nem exatamente uma ilusão nascida da literatura cavalheiresca ou romântica.
Volvendo de novo, agora aos búzios: acho sinceramente que aqui, com o tempo, acontecerá o mesmo, pela permanência de algo que, afinal, vem mostrando a tendência de permanecer – sem fugir, é claro, à responsabilidade de definir o que, afinal, é isso e de sofrer essa identidade, definitiva maldição e fado do VG, que somos.

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