sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

COMO CAIU O MUNDO QUE CARNAP CONSTRUIU EM 1928


Rejane Xavier

RESUMO

Neste artigo[1] proponho uma interpretação não-standard das razões que levaram Carnap a abandonar seu projeto de construção lógica do mundo, formulado no Aufbau[2]. Pretendo acrescentar elementos para uma leitura dessa obra que podem lançar nova luz sobre sua apreciação filosófica. A construção lógica do mundo de Carnap é tratada a partir de três pontos de vista: sua sintonia com a mentalidade da época; seu objetivo de justificar a ciência empírica; e o formalismo com que o comprometem seus pressupostos racionalistas e seu uso do instrumental lógico-matemático. À luz desses três pontos de vista busco explicitar por que o projeto encontrou limites ou conduziu a resultados que levaram o próprio Carnap a rejeitá-lo e abandoná-lo.

ABSTRACT
This text argues for a nonstandard interpretation of Carnap´s reasons to abandon his project of a logical construction of the world, built up in the Aufbau. It is suggested that there are reasons to believe that under new elements the reading of the Aufbau would lead to a different appraisal of it as a philosophical work. Carnap´s logical construction of the world is treated from three points of view: its being in tune with the mindset of his time, its intention to justify empirical science, and the formalism with which it is committed under its rationalist assumptions and its use of the logical-mathematical instruments. In the light of these three viewpoints it is explored the question of explaining why the project found limitations and produced results that led Carnap to the point of rejecting and abandoning it.

Qualquer pessoa que já passou os olhos pelo Aufbau, ou teve alguma notícia do que se trata nessa obra, sabe que Carnap, aí, pretendeu "definir todos os conceitos empíricos sobre uma base fenomenista" (o que é certo) e conclui, provavelmente, que Carnap é portanto um empirista humeano (o que é falso). Mas não era exatamente isso o que sustentava Hume, que todas as nossas ideias são feixes de impressões, e que devíamos procurar, para cada ideia, a impressão ou impressões de que provém? Perfeitamente. O leitor ligeiramente mais sofisticado acrescentará que, por certo, Carnap é um empirista lógico, para quem conceitos não são "feixes" de impressões, mas "complexos lógicos" (classes e extensões de relações de diversos tipos lógicos, construídas a partir de certos elementos básicos), e que a definição que ele busca dos conceitos empíricos em termos de conceitos básicos não é uma tradução termo a termo, mas uma regra que permita transformar enunciados sobre os primeiros em enunciados sobre os últimos.

Se este leitor imaginário acrescentar, ao fim do período anterior, a expressão salva veritate, já podemos começar a conversar seriamente com ele sobre Carnap e o Aufbau. Mas antes, vejamos qual a sua opinião sobre o balanço dessa obra. Se ele nos disser que tudo não passou de um projeto ambicioso e cuidadoso, que entretanto teve de ser abandonado ("pois não é possível definir nem mesmo os conceitos empíricos mais elementares, como mostrou Goodman"; "a construção dos objetos físicos é defeituosa, como mostrou Quine"; "a lógica utilizada tinha limitações que Carnap na época não podia avaliar, como mostraram Godel e Church"), podemos estar certos de que, embora cuidadosa, sua leitura não chegou a questionar a received view a propósito de Aufbau.

A interpretação não-standard que proponho não se contrapõe cabalmente a essa que acaba de ser rapidamente evocada. Quase tudo o que acaba de ser dito é verdadeiro, com exceção da conclusão sobre o "empirismo" de Carnap. e sobre as razões que o levaram a abandonar o projeto. Minha contribuição pretende ser a de acrescentar elementos à versão usual sobre o Aufbau, lançando alguma nova luz sobre sua apreciação filosófica. Entender o objetivo do Aufbau como o de justificar ou legitimar os conceitos empíricos, comuns e científicos, e não simplesmente como o de "definir todos os conceitos empíricos a partir do dado" (o que não passa do meio para chegar àquele objetivo).

É esta a (talvez pequena) mudança de ênfase que proponho, mas que ao final fará toda a diferença. De projeto "empirista", o Aufbau passará a projeto "neotranscendental"; de tentativa fracassada, ele se tornará uma redução ao absurdo dos pressupostos racionalistas e da démarche transcendental a que recorre para dar conta da demanda de justificação, da quaestio juris frente à ciência empírica, da qual quis validar a pretensão de objetividade. "Redução ao absurdo" não por ter vindo a manifestar uma contradição interna dentro do caminho racionalista e formalista que trilhou, mas por levar a resultados inaceitáveis à luz de concepções independentes, essas sim empiristas, sobre "o caráter aberto e a inevitável incerteza de todo o conhecimento factual", cuja revisabilidade precisamente, para Carnap, importava acima de tudo assegurar ao final: mesmo ao preço de abandonar o paradigma de justificação inicialmente adotado.


O título deste trabalho é uma alusão ao artigo de Andres Wedberg, publicado em 1975, How Carnap built the world in 1928[3]. O artigo é ele próprio uma espécie de "reconstrução racional" da construção carnapiana original: Wedberg se propõe a ater-se ao que lhe parece logicamente fundamental na teia de ideias do Aufbau. Como sempre me pareceu haver algo de uma leve ironia no título de Wedberg, minha escolha não quer apenas devolvê-la mas, na medida do possível, dissolvê-la.

O caráter de certa forma quixotesco do empreendimento de Carnap se dissipará se nos dispusermos a não nos atermos ao que nele nos parece "logicamente fundamental". Do ponto de vista estritamente lógico, não há nada de "fundamental", de extraordinariamente importante ou de original no Aufbau. O que pode ser interessante - acredito que o seja - é o uso que Carnap aí faz de uma série de recursos lógicos, com o objetivo de tratar problemas filosóficos relevantes.

Tratarei da construção lógica do mundo de Carnap a partir de tres pontos de vista distintos: sua sintonia com a mentalidade da época, os anos vinte do nosso século; seu objetivo de justificar a ciência empírica; e o formalismo com que o comprometem seus pressupostos racionalistas e seu uso do instrumental lógico-matemático. Procurarei mostrar por que, sob esses três pontos de vista, esse projeto encontrou limites ou levou a resultados que conduziram à sua rejeição e abandono, por parte do próprio Carnap.

"Construir o mundo"

"A suprema máxima da filosofia científica é esta: sempre que possível, construções lógicas devem substituir as entidades inferidas". B.Russell

O Aufbau foi escrito ao longo dos anos 1922-25 – antes da aproximação entre Carnap e o Círculo de Viena – e foi publicado em 1928. A ideia de "construir o mundo", que hoje nos parece extravagante, não era estranha à mentalidade europeia dos anos vinte do nosso século.

Após a primeira guerra mundial, o colapso do modo de vida do século XIX era evidente, e um novo mundo começava de fato a ser gerado, em parte por força de incontroláveis pressões objetivas, econômicas, sociais e históricas, e em parte de modo consciente e deliberado, através da ação de reformadores e revolucionários políticos e da criação de artistas, cientistas e filósofos ávidos por descortinarem novas possibilidades à sensibilidade e à razão humanas, para além da derrocada de uma época que se esgotava.

Nos Anos 20 do século passado um frêmito utópico percorria a Europa, da Rússia pós-revolucionária à Alemanha do pós-guerra. A primeira guerra mundial deixara um rastro de caos e destruição; seu término dá o sinal de um generalizado retorno à ordem. Mas não pura e simplesmente à velha ordem, caduca e superada pelas novas forças produtivas, e sim a uma nova ordem a ser inventada desde os alicerces. "Multiplicam-se as representações visuais da sociedade ideal, tendo como pano de fundo a reconstrução da cidade. Sejam quais forem as formas assumidas pela utopia no curso dos anos 20, o papel atribuído ao arquiteto e ao artista é sempre fundamental." [4]

Na Rússia, os construtivistas de Vladimir Tatlin se voltam para os métodos de produção e os materiais industriais modernos para colocá-los a serviço de uma sociedade revolucionária, enquanto Kazimir Malevitch e os suprematistas buscam um universo da sensação pura, impondo-se um vocabulário de formas geométricas bastante estrito. Na Holanda e na Alemanha, movimentos como o Stijl e o Bauhaus desenvolvem, a partir da união da pintura e da arquitetura, projetos de interiores abstratos, nos quais todos os elementos do espaço, inclusive o mobiliário, são desenhados de acordo com os mesmos princípios. Linhas ortogonais, cores primárias e assimetria são as palavras-chave dos membros do Stijl. Enquanto isso, Walter Gropius aproveita a reconstrução de Berlim para a pesquisa de uma arquitetura racional da habitação.

Mesmo na França vitoriosa, "no caos deixado pelo conflito, as obras de Fernand Léger, Le Corbusier e Amédée Ozenfant desempenham uma função ao mesmo tempo preventiva e curativa, defendendo os valores da ordem, do controle, e sobretudo da pureza." [5]


1921–Oskar Schlemmer–drawing of Man as Dancer
(from “Man and Art Figure)

A reconstrução é um tema artístico em moda, no início do século XX, e a arquitetura constitui a referência maior dos puristas. Oskar Schlemmer, artista ligado à Bauhaus, adota em seus quadros o mesmo sistema de rigorosa construção geométrica, beirando a abstração, e o justifica afirmando: "o fascínio que as máquinas, a técnica e a organização exercem sobre os artistas de hoje, a vontade de substituir formas vagas e diluídas por clareza e precisão nascem do instinto de salvaguardar-se do caos e do profundo desejo de moldar a época em que vivemos" [6].

"Números, medidas e leis são nossa defesa e armadura para não sermos tragados pelo caos". "Frases como essa - comenta Heinrich Goertz - "criticavam os fascistas, os quais, segundo Goebbels, se identificavam com os românticos, exaltando a emotividade germânica no seu combate à razão e ao intelecto" [7].

Não é surpreendente que, em tal contexto de afirmação da razão arquitetônica, o jovem Carnap se lance com entusiasmo ao projeto de "reconstrução racional" de todos os conceitos empíricos, comuns e científicos, projeto cuja realização deveria levar à unificação o edifício das ciências, disperso em especialidades sem comunicação, ao mesmo tempo em que o despojaria dos ornamentos metafísicos supérfluos e espúrios.

Projeto que não é ele próprio inteiramente novo ou original, homólogo em grande parte, por exemplo, aos intentos de Mach ou de Herz de reescrever a mecânica newtoniana, ou aos de Bohm-Bawerk de refundar a economia através da crítica ao marxismo e à economia clássica[8]. Projeto que se concebe a si próprio, inicialmente, como uma espécie de "prolegômenos a toda filosofia futura que pretenda apresentar-se como científica", na medida em que trata de investigar as condições formais requeridas para a aplicação da "suprema máxima da filosofia científica" de Russell, e que se acredita empirista porque sustentará a tese de que "é em princípio possível reduzir todos os conceitos ao imediatamente dado" (Aufbau,vi).

Tampouco é de estranhar que tenha ocorrido a Carnap socorrer-se do instrumental da nova lógica formal fregeana, ela própria instrumento de reconstrução do discurso matemático, envolvendo para isso uma nova linguagem simbólica, radicalmente "normalizada", em substituição à "imperfeita, frouxa e excessivamente flexível" linguagem natural. Essa nova linguagem lógica se prestara com notáveis resultados à redução, recentemente empreendida por Whitehead e Russell, dos conceitos de todos os ramos da matemática a alguns poucos conceitos básicos[9].

Em seu entusiasmo pelo instrumental analítico desenvolvido por Frege e Russell, Carnap não se encontrava sozinho. A teoria dos símbolos incompletos de Russell, que inclui a teoria das descrições definidas, provocou um verdadeiro frisson filosófico, porque fornecia um modelo ao mesmo tempo de como se pode fazer e do que se deve entender por análise. Ramsey chamou a teoria das descrições de Russell "um paradigma da filosofia - um modelo de como a melhor filosofia deveria proceder" [10]. O modelo propunha uma técnica lógica, uma teoria da linguagem e uma ontologia, e acenava com resultados epistemológicos apreciáveis. Por tudo isso, "os filósofos britânicos mais jovens dos anos 1920 e 30 vieram a acreditar que a tarefa da filosofia era a análise” [11], e Carnap os acompanhou nessa convicção.

Se o projeto da "construção lógica do mundo" se encontrava em sintonia com a mentalidade de sua época, não menos forte era sua continuidade com uma tradição filosófica pelo menos tão antiga quanto a crise do pensamento clássico diante da irrupção da moderna ciência da natureza, nos séculos XVII e XVIII.

"Justificar a ciência"

"O sistema positivista corresponde ao ponto de vista epistemológico, porque demonstra a validez de um conhecimento por sua redução ao dado". (Carnap[12])

A reconstrução racional que Carnap se propõe a empreender não é um gratuito exercício formal, mas é concebida a partir do interesse epistemológico central de justificação das pretensões de objetividade do conhecimento empírico. Como sustenta G.-G. Granger[13], “Le Logischer Aufbau pose le problème de jure de la connaissance de ce que nous apellons le monde.(...) Carnap se propose de répondre à des questions dont on peut reconnaitre les formes homologues aussi bien chez Aristote et Kant que chez ses contemporains, Russell et Wittgenstein."

Na sua Autobiografia[14], quase 40 anos depois do Aufbau, Carnap assim descreve seus pontos de vista de então:

"Segundo a concepção original, o sistema do conhecimento, embora se tornando constantemente mais compreensivo, era visto como um sistema fechado, no seguinte sentido. Assumíamos que existia uma base rochosa de conhecimento, o conhecimento do imediatamente dado, que era indubitável. Qualquer outro tipo de conhecimento era suposto estar firmemente apoiado sobre essa base, e ser portanto igualmente decidível com certeza. Esse era o quadro que eu tinha apresentado no Logischer Aufbau."

Antes de permitirmo-nos sorrir com superioridade diante dessa "ingênua confissão de dogmatismo positivista", seria conveniente tentar recolocar a posição de Carnap no contexto do tratamento que a tradição filosófica vinha dispensando à questão do conhecimento científico.

O estatuto das leis da natureza na tradição filosófica

Face ao surgimento da moderna ciência da natureza - representada de forma paradigmática pela física matemática, de Galileu a Newton - a reflexão filosófica reconheceu imediatamente estar em presença de um tipo de conhecimento e de racionalidade sem precedentes na episteme clássica. Como fazer simultaneamente justiça, no quadro dessa última, ao caráter experimental da nova ciência e à pretensão (no mínimo aparente) de suas leis de expressarem necessidades naturais?

Racionalismo e empirismo representam reações diversas frente a esse conhecimento novo, procurando o primeiro colocá-lo de direito no campo da racionalidade (dotando-o da certeza, universalidade e necessidade consideradas características da verdadeira ciência); enquanto o empirismo busca enquadrá-lo como forma nova, mas não essencialmente diferente, de conhecimento comum, simples prolongamento da experiência ordinária.

O empirista considera que, se todo conhecimento factual provém em última análise do que é dado de modo imediato na experiência, não podemos atribuir às leis das ciências empíricas características que não se deixam explicar a partir de tal experiência, tais como a universalidade estrita e a necessidade que o racionalista lhes confere.

O racionalista, argumentando inversamente, considera que, posto que existem leis universais e necessárias nas ciências factuais, estas não podem se justificar com base exclusivamente na experiência, requerendo uma contribuição substantiva da razão, de que a lógica puramente formal não poderia entretanto dar conta.

O empirista, ao não reconhecer às ciências factuais as características de universalidade e necessidade, não só não se sente obrigado, como se recusa a justificar suas leis. Leis naturais são, para Hume, generalizações apoiadas no hábito, e podem ser alteradas à luz de novas circunstâncias: não há porque pretender elevá-las à dignidade do direito. Por isso mesmo, entende ele, "ciências propriamente ditas" serão apenas aquelas que tratam "da quantidade e do número", pois “apenas aí é possível o conhecimento demonstrativo, universal e necessário"; quanto às "matters of fact", serão objeto de "certeza moral", como a maior parte do conhecimento humano.[15]

Para Kant, este veredito humeano não é nem satisfatório, nem irrecorrível. Se Hume não consegue legitimar a pretensão da ciência da natureza de constituir-se em conhecimento no sentido próprio e mais alto de conhecimento universal necessário, isto só mostra, para Kant, que o paradigma de justificação de Hume é deficiente e deve ser revisado, e não que a ciência natural deva ser despojada daquela pretensão.

A derivação empírica que Locke e Hume propõem dos conceitos puros "não pode ser posta de acordo com a realidade dos conhecimentos científicos a priori que possuimos, ou seja, da matemática pura e da ciência universal da natureza, sendo portanto refutada pelo fato"[16]. Para Kant e o racionalismo, que a ciência da natureza - ou pelo menos alguma parte fundamental da mesma - tenha esta validade universal e necessária não é nenhuma exigência nova com a qual tenha sido indevidamente sobrecarregada.

Por mais opostos que sejam os pontos de vista de Hume e de Kant, há entretanto pelo menos dois pontos básicos sobre o qual ambos estão de acordo. Tanto um quanto o outro nada mais fazem, por um lado, do que se inserir na milenar tradição platônico-aristotélica que reserva o nome de ciência ao conhecimento demonstrativo, cuja certeza apodítica tem como condição e como marca a universalidade e a necessidade[17]. Por outro lado, a ideia de que há na ciência empírica pretensões que não são fundadas nem lógica, nem empiricamente (em particular a pretensão de validade universal e necessária das leis fundamentais da ciência da natureza) também é comum aos dois.

Hume conclui daí que há uma pretensão não justificável na ciência empírica, e trata apenas de explicar psicologicamente a possibilidade de leis indutivas (juízos universais a posteriori). Kant, inconformado, sustenta que deve haver uma terceira forma de justificação (nem lógica, nem empírica), e com a determinação de encontrá-la desenvolve sua teoria do transcendental e do sintético a priori.

Comungando com ambos quanto ao ideal de ciência universal necessária, a pretensão de Carnap, no Aufbau, será cortar o segundo problema pela raiz: mostrando que não há nada, na ciência empírica, de que não se possa dar conta por meio da lógica e da experiência.

Mas "a experiência" de que trata, no Aufbau, a ciência empírica não é o material subjetivo das vivências individuais. "A série de experiências é diferente para cada sujeito" (§ 16). A ciência não trata do material (que é subjetivo), mas apenas da estrutura (que é objetiva) (id.). O conhecimento objetivo é essencialmente estrutural, e "certas propriedades estruturais são análogas para todos os fluxos da experiência".(§ 65) "Todos os objetos de conhecimento não são conteúdo, mas forma, e assim podem ser representados como entidades estruturais"(§66). Consequentemente, toda a ciência empírica é justificável, para Carnap; e mais do que toda ciência, todo o conhecimento empírico, no que ele tem de objetivo, isto é, de estrutural, e, por isso mesmo, assimilável pela ciência.

É com esta preocupação epistemológica, com esta tese filosófica de que a ciência empírica é conhecimento no sentido mais alto, universal e necessário, que Carnap está às voltas no Aufbau. É para defendê-la que ele se lança à curiosa tarefa de "construir o mundo": mostrando como todos os objetos empíricos podem ser tratados como constructos lógicos a partir do dado.

Para isso, trata de investigar as condições formais da derivação (construção, constituição), passo a passo, de todos os conceitos empíricos a partir do dado, trajetória essa que, percorrida em sentido inverso, representaria a sua completa redução aos conceitos fundamentais, que lhes transmitiriam sua certeza e legitimidade.

O projeto transcendental conservado: a legitimação pela forma

"A partir desse momento [do "Eu penso" kantiano] é pensável, em filosofia, o conceito da função do Cogito sem sujeito funcionário. O Eu penso kantiano...não impede as tentativas de investigar se a função fundadora, se a legitimação do conteúdo de nossos conhecimentos pela estrutura de suas formas não poderia estar assegurada por funções ou estruturas que a própria ciência descobre na elaboração desses conhecimentos." [18]

Para o Carnap do Aufbau, a ênfase no aspecto estrutural do conhecimento é tão forte que chega a desembocar no que - no meu entender - representa uma verdadeira "extrusão do conteúdo". Segundo o Aufbau, "a ciência trata apenas da descrição das propriedades estruturais dos objetos" (§ 10), o que equivale a afirmar que "os enunciados científicos falam apenas de formas, sem dizer quais são os elementos e as relações dessas formas" (§ 12). É graças ao caráter estrutural das proposições científicas que elas são intersubjetivas e comunicáveis, ao contrário da experiência individual de cada sujeito, dependente "da seleção acidental de suas observações e do curso de suas perambulações através do mundo" (Aufbau, ix). O que o sistema construcional quer mostrar é que "embora a origem subjetiva de todo conhecimento repouse nos conteúdos das experiências e suas conexões ... ainda é possível avançar para um mundo intersubjetivo, objetivo, que pode ser conceitualmente compreendido e que é idêntico para todos os observadores" (§ 2).

Propondo-se a eliminar os objetos do discurso empírico através de um sistema completo de descrições definidas estruturais, e a fazê-los reaparecer como construções lógicas, Carnap não se contenta em atribuir-lhes, neste ponto, o algo decepcionante status de "ficcões lógicas" que lhes conferia Russell. Para caracterizar o tipo mais forte de objetividade desses substitutos dos objetos empíricos, Carnap recorre a uma analogia entre suas descrições puramente estruturais e as definições implícitas de Hilbert, com a vantagem, para as primeiras, de singularizar um objeto determinado, enquanto Hilbert só lograva caracterizar uma classe de objetos (um "objeto indefinido" ou um "conceito impróprio", diz Carnap).

"O sistema completo de todos os conceitos científicos" do Aufbau, à maneira da Geometria axiomatizada hilbertiana, definiria uma estrutura formal: é dela que a ciência trata, ela é o seu objeto. A indeterminação do "objeto" definido pela axiomática hilbertiana decorria da possibilidade de que a mesma estrutura pudesse encontrar modelos ou realizações em diferentes domínios de objetos de nível inferior. Os "pontos, retas e planos" que satisfazem os axiomas de Hilbert poderiam ser substituidos por "mesas, cadeiras e canecas"[19] ou as leis da hereditariedade estudadas na mosca drosófila se revelarem aplicações dos axiomas da congruência linear[20]. Mas a estrutura do sistema completo de todos os conceitos científicos teria uma e só uma realização: o domínio único de todos os objetos científicos. A estrutura formal do sistema de conceitos da ciência unificada seria ao mesmo tempo - teria de ser - a estrutura lógica do mundo objetivo.

O projeto do Aufbau não quer se contentar com uma "correspondência" qualquer, parcial e adventícia, entre o mundo pré-sistemático dos objetos do conhecimento comum e da ciência e o mundo dos objetos definidos sistematicamente. A tese do Aufbau é a tese forte da necessária coincidência desses mundos: o que a construção do sistema pretende fazer é apenas desnudar, explicitar e aplicar os mesmos instrumentos formais ao mesmo dado com que o conhecimento comum trabalha no processo de constituição de "seus" objetos, e que deve portanto chegar aos mesmos resultados.

Por este motivo, ousei chamar "neotranscendental" a estratégia de Carnap: se as condições de possibilidade do conhecimento coincidem com as condições de possibilidade dos objetos do conhecimento, a objetividade deste está eo ipso assegurada, obtendo-se assim a justificação do necessário acordo entre ambos.

O Aufbau primeiro "desmaterializa" os enunciados científicos, esvaziando-os do conteúdo intuitivo em benefício da forma ou estrutura. Depois, procura mostrar como e por que a ciência empírica pode falar de objetos, como efetivamente o faz.

Essa recuperação dos objetos do discurso empírico usual passa por duas etapas. Primeiro, mostra-se que a ciência empírica não tem necessidade de falar de tais objetos; segundo, mostra-se que ela tem o direito de fazê-lo. Para a primeira etapa, Carnap recorre à teoria das descrições definidas de Russell, com seu corolário, a eliminabilidade dos símbolos incompletos. Para a segunda, procura apoio nas definições implícitas da geometria axiomática de Hilbert.

Para Carnap, a Geometria pura é representada "não por um sistema axiomático não interpretado, mas por uma teoria puramente lógica relativa a uma certa estrutura"[21]. Ao referir-se à geometria, no § 107 do Aufbau, Carnap destaca dois aspectos: que os conceitos geométricos são deriváveis a partir dos conceitos lógicos (isto é, uma intuição pura na base da geometria é dispensável); e que a geometria tem um caráter abstrato, como mera forma de teoria ("função doutrinal", na expressão de Keyser). Neste segundo sentido, a geometria abstrata nos parece um bom paradigma do sistema dos conceitos empíricos de Carnap: uma espécie de "função doutrinal", heuristicamente baseada nos conteúdos estabelecidos pelas ciências empíricas, mas logicamente independente dessa gênese.

O sistema formal não pressupõe logicamente o sistema dos conceitos empíricos no qual virá a ser interpretado, mesmo que heuristicamente tenha sido formulado com vistas a ele. Sob esse prisma, as perguntas sobre se o sistema formal substitui o sistema dos conceitos empíricos, se o dispensa, se o reduplica inutilmente, etc., poderiam parecer tão mal concebidas quanto as indagações sobre se a geometria formal dispensa ou reduplica a agrimensura. Mas é o próprio Carnap quem se compromete - pelo afã epistemológico de justificar o conhecimento empírico - com a tese forte de que "a ciência só trata de estruturas", e de que a estrutura lógica do sistema é a estrutura lógica do mundo.

Como para Kant ou Schlick, a objetividade depende da forma; mas, para Carnap, forma é forma lógica. Daí essa obstinada perseguição da formalização completa, e a extrusão do conteúdo que lhe é correlativa.

Por que foi abandonado o projeto do Aufbau?

"Pode-se refutar e matar uma teoria científica; uma filosofia só morre de velhice". (F.Waismann)

Das três pernas do tripé sobre o qual se assentou o projeto do Aufbau - o ideal utópico de reconstruir racionalmente o mundo, o objetivo racionalista clássico de justificar a ciência empírica e o caminho “neotranscendental" de procurar a justificação através da forma - nenhuma resistiu incólume.

Deixemos de lado as críticas como as de Quine e Goodman - procedentes, por certo - que mostram que o projeto de formalização completa do conhecimento empírico não foi realizado pelo Aufbau, ou mesmo que não pode ser realizado, tout court. Suponhamos por hipótese que Carnap tivesse razão, ao afirmar no § 155 que, enfim, "a formalização final do sistema pode ser efetuada"; "agora é possível expressar todos os objetos e enunciados do sistema construcional de modo puramente lógico. Assim, nosso objetivo da completa formalização do sistema construcional é alcançado" (Aufbau; pp. 237-8). Uma pergunta salta imediatamente aos olhos: poderia um tal resultado ser considerado consistente com qualquer coisa ainda passível de ser chamada empirismo?

M. Friedman[22] coloca o impasse em termos perfeitamente claros. "Se conseguimos desvincular significado objetivo e conhecimento da ostensão e alojá-los em vez disso na forma lógica ou estrutura, corremos então o risco de divorciar de um todo o significado objetivo de qualquer relação com a experiência ou o mundo empírico. Isto é, corremos o risco de eliminar completamente a distinção entre conhecimento empírico e conhecimento lógico-matemático." (grifo meu)

Este risco de pitagorização já havia sido apontado por Russell em relação a Poincaré, que também defendia a tese de que a ciência só trata das relações entre as coisas, e não das coisas mesmas. Dizia Russell: "podemos até levar a teoria mais longe, e dizer que em geral as relações são na maior parte desconhecidas, e o que é conhecido são as propriedades das relações, tais como as trata a matemática".

Poincaré não se abala, nem vê por que deveria recuar diante de um tal resultado, e responde: "o senhor Russell não se enganou, esse é exatamente o meu pensamento"[23]. Carnap, que se gabara no Aufbau de ir mais longe do que Poincaré no que diz respeito à premissa (Aufbau, p. 30), certamente não terá a mesma disposição de ir tão longe quanto ele em relação às consequências. O empirismo não pode ser combinado com a lógica formal da maneira como ele gostaria, e ele irá preferir ficar com o empirismo, abandonando um caminho que havia conduzido a resultados incompatíveis com ele.

Quanto ao objetivo de justificar a ciência empírica, Carnap tinha pensado poder romper o impasse da epistemologia, incapaz de acomodar as soluções de Kant à nova realidade das ciências contemporâneas, mas pouco entusiasmada com a perspectiva de uma volta ao ceticismo de Hume.

Ao concluir seu trabalho, Carnap se deu conta de que uma ciência empírica inteiramente justificada estaria naquela situação que Kant atribui (em O único fundamento possível de uma prova da existência de Deus, B, II, 100) às leis do movimento: ao mesmo tempo contingentes no sentido real, e "absolutamente necessárias; a possibilidade da matéria sendo pressuposta, haveria contradição em que ela agisse sob outras leis; e essa é uma necessidade lógica da ordem mais elevada"[24].

Em outras palavras, um edifício do saber inteiramente justificado seria uma prisão sem saída. Carnap se dá conta dessa rigidez, e percebe que é um erro fazer depender a objetividade do conhecimento científico da certeza apodítica, universalidade e necessidade de seus enunciados. É preciso conciliar o caráter contrafactual das leis científicas com sua revisabilidade ("defeasability") em função da experiência: algo que nem o racionalismo nem o empirismo clássico foram capazes de fazer, diga-se de passagem.

Na sua Autobiografia Carnap reconhece que havia uma contradição, não no sistema do conhecimento tal como o concebia na época do Aufbau, mas entre esse sistema assim concebido e certas concepções metodológicas que ele sustentava independentemente. "Olhando para trás para aquela concepção a partir de nossa presente posição, devo admitir que era difícil conciliá-la com outras posições que tínhamos naquele tempo, especialmente na metodologia da ciência. Portanto, o desenvolvimento e clarificação de nossos pontos de vista metodológicos conduziu inevitavelmente a um abandono do quadro rígido em nossa teoria do conhecimento. O traço importante em nossa posição metodológica era a ênfase no caráter hipotético das leis da natureza, em particular das teorias físicas.[25]" (grifo meu)

Inversamente, os traços que o Aufbau pretendia justificar eram precisamente aqueles que - viu-se retrospectivamente - "causavam uma certa rigidez, de modo que fomos compelidos a fazer algumas mudanças radicais afim de fazer justiça ao caráter aberto e à inevitável incerteza de todo o conhecimento factual[26].

O fim de um sonho

Vimos contudo que havia no Aufbau, antes do projeto de justificação e do formalismo através do qual se pretendeu realizá-lo, um sonho de ordem, clareza, pureza e racionalidade, a serem implantadas no mundo e na ciência por homens novos, de uma época nova, munida de novas e mais poderosas técnicas e esperançosa de poder fazer frente aos novos desafios. O que aconteceu a esse "sonho da razão arquitetônica"?


Metropolis

A resposta passa pela experiência histórica da Europa e da humanidade entre os anos vinte e, digamos, o fim da II Grande Guerra, para não falar dos desencantos mais recentes: o desabamento dos resultados da utopia socialista e as crises do Estado de bem estar social no mundo capitalista. Esperava-se da ciência e da técnica a exploração racional das forças da natureza, a libertação da humanidade do trabalho pesado e repetitivo, das doenças, da pobreza e da ignorância; a liberação de energias criativas e espirituais, o fim da sujeição aos dogmas e superstições, o florescimento da cultura e das artes, a abertura da possibilidade de novas formas de comunicação, a organização racional da vida humana. Ora, o que se viu, de fato, foi uma humanidade progressivamente cansada de ser "racionalmente" explorada e controlada, quando não "cientificamente" exterminada num planeta "cientificamente" arrasado. De sonho, a ideia de reconstrução racional da totalidade da vida humana passou a pesadelo totalitário.

O abandono do projeto do Aufbau expressa também - creio eu - esse progressivo desencanto diante das consequências do sonho da razão arquitetônica. "Talvez o horror dessa época se manifeste da maneira mais aparente nas experiências arquiteturais", exclama Hermann Broch[27]. Adepto otimista do mundo moderno e das novas formas racionais da tecnologia e da sociedade industriais (da "concepção científica do mundo"), Carnap é também leitor de Nietzsche (cita-o pelo menos seis vezes no Aufbau, sempre favoravelmente), e poderia estar se mostrando sensível à mudança de mentalidade de toda uma época, ao relutar durante 40 anos, por exemplo, a autorizar a tradução do Aufbau para o inglês, segundo relata Quine[28] (1986: 170).

"Pode-se refutar e matar uma teoria científica", diz F.Waismann; "uma filosofia só morre de velhice". A velhice e a morte do Aufbau têm algo a nos ensinar sobre o fim dos nossos tempos. O desabamento da construção lógica do mundo poderia talvez ser considerado um passo no sentido daquela que Nietzsche considera "a mais difícil das vitórias, a vitória sobre o otimismo que está escondido na essência da lógica e que, por sua vez, é o fundamento da nossa civilização".

Brasília, agosto de 1991.
(revisado em janeiro de 2013)

NOTA: ver também, neste blog: O POSITIVISMO LÓGICO E A “FILOSOFIA CIENTÍFICA” 

[1] Uma primeira versão deste texto foi publicada na Revista Reflexão, PUCCAMP, Campinas, nº 51/ 52, pag. 11-29, set/1991 – abril/1992.

[2] Carnap, Rudolf Der Logische Aufbau der Welt. Leipzig: Felix Meiner Verlag, 1928.
[3] WEDBERG, A. (1975) How Carnap built the World in 1928. Em HINTIKKA, J. (ed.)RudoIf Carnap, Logical empiricist. Dordrecht, Reidel, 1975, 15-53.
[4] CLAIR, J. (org) 1920: The Age of Metropolis. The Montréal Museum of Fine Arts. Montréal, 1991. Também MARSAN, Jean-Claude Catálogo da exposição do Museu de Belas-Artes de Montréal, Os Anos 20 - A Era das Metrópoles. (http://www.erudit.org/culture/va1081917/va1148468/53692ac.pdf)
[5] Idem
[6] GOERTZ, H. Formas para vencer o caos. Tribuna Alemã, nº 367, p.11 - grifos meus.
[7] Ibidem
[8] CACCIARI, M. Krisis. México, Siglo XXI, 1982 (ed.orig. 1976) cap.1 e pp. 96/8
[9] Os resultados (posteriores) dos teoremas de Church e de Gödel não afetam de forma essencial o projeto de Carnap, uma vez que ele trabalha com um universo finito de experiências elementares.
[10] THOMSON, J.J, em WISDOM, J. Logical Constructions. New York, Random House, 1969:35
[11] Idem, p.3.
[12] CARNAP, R. A antiga e a nova lógica, Erkenntnis nº 1, 1930-31
[13] GRANGER,G-G. Le problème de la ‘Construction Logique du Monde’. Revue Internationale de Philosophie 1-2 (1983) 5-36
[14]] CARNAP, R. Autobiography- Replies, em SCHILPP, P. (ed.), The Philosophy of Rudolf Carnap. La SalIe, Open Court, 1963. The Library of Living Philosophers.
[15] HUME, D. Enquiries concerning Human Understanding. Ed. Selby-Bigge. Oxford, Clarendon, 1978. pp.165-5 (Enquiries, 1748)
[16] KANT, E. Crítica da Razão Pura. São Paulo, Abril, 1980. Trad. V.Rohden (exclusivamente da 2' ed.). B 122-24, B 128
[17] GRANGER, G-G. La théorie aristotélicienne de la science. Paris, Aubier, 1976.( 24-5)
[18] CANGUILHEM , G. Muerte del hombre o agotamiento del Cogito? Em BURGELIN, P. et alii, Análisis de Michel Foucault Buenos Aires, Tiempo Contemporáneo, 1970 (art.orig. francês 1967)p. 142 - grifos meus
[19] Weyl, H. David Hilbert and his Mathematical Work. Em Reid, C. Hilbert. Berlin, Springer, 1970. (p. 264)
[20] HILBERT,D. Naturerkennen und Logik, Naturwissenschaften, 1930. Apud WAISMANN, F. Introduction to Mathematical Thinking. Londres, Hafner, 1951 (p.75)
[21] CARNAP, R. Autobiography e Replies, em SCHILPP,P., op.cit.1963. (p. 927, grifos meus)
[22] FRIEDMAN, M. Carnap's Aufbau ReconsIdered. Noûs 21 (1987): 521-545
[23] POINCARÉ, H. (1902) La Science et l'Hypothése. Paris, Flammarion, 1968. (p.14)
[24] KANT, E. 1763 L'unique fondement possible d'une démonstration de l'existence de Dieu. Paris, Pléyade, 1980. (Oeuvres Philosophiques, vol I)
[25] CARNAP,R. (1963) Autobiography (op. cit), (pp.56-7, grifos meus)
[26] Ibidem.
[27] Citado por MOUCHARD,C. Hermann Broch: logique lyrique. Critique 339-340 (1975): 874-883
[28] QUINE, W.v.O. Le combat positiviste de Carnap. Em SEBESTIK,J.e SOULEZ,A Le Cercle de Vienne - doctrines et controverses. Paris, Klincksieck, 1986. (pp.169-179)

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