sábado, 2 de março de 2013

A PROPÓSITO DE WAYS OF WORLDMAKING


Mais uma do fundo do baú:

"The world is a tale, told by a fool..."
Shakespeare

Não por acaso, a pluralidade dos mundos de Nelson Goodman (GOODMAN, N. Ways of Worldmaking, Harvester Press, 1978) evoca os misteriosos e desconcertantes universos de Borges: labirintos e espelhos, indiscerníveis configurações de realidades, sonho e ficção, reelaboração indefinida (infinita ou circular, não importa) de mundos cuja substância ela própria é onírica e literária.

Quine, descrevendo o conteúdo do livro de Goodman, o qual, segundo ele, em poucas páginas "nos oferece uma filosofia do estilo, uma filosofia da citação, uma filosofia da arte, uma filosofia da ilusão ótica e uma filosofia da natureza" (QUINE, W.v.O. Otherworldly, New York Review of Books, Nov. 25. 1978), pretendeu provocar no leitor o malestar que produz a vertigem do heteróclito. Mas esse malestar se transforma facilmente em seu contrário: na "quase voluptuosa" satisfação que proporcionam as enumerações, devida − provavelmente − à insinuação do eterno, "immediata et lucida fruitio rerum infinitarum"... (BORGES. J.L. História da Eternidade. Porto Alegre/Rio, Globo, 1982, pp. 24.28/29).

O worldmaking seria então algo como uma "instituição imaginária da realidade", à Castoriadis, ou como a "produção desejante" do Anti-Édipo, desterritorializando territorialidades para reconstituí-las noutro lugar? Worldmaking/esquizofrenia: the world as a tale told by a fool?

A idéia de que o mundo possa ser construído já é por si mesma bastante chocante para o senso comum. Goodman lhe acrescenta um duplo pluralismo:o dos mundos construídos e o das modalidades da construção. Os mundos de Goodman não são "mundos possíveis", múltiplas alternativas para o (único) mundo real, nem constituem diferentes versões ou descrições desse (mesmo) mundo. Aos diferentes sistemas simbólicos das ciências, da filosofia, das artes, da percepção ou do discurso quotidianos correspondem diferentes mundos, que mantêm entre si as mais variadas relações. Por que, e como, privilegiar um deles com o o título de mundo real, fundamento comum e substância de todos os demais? Por que conferir a uma dada versão, seja ela a do senso comum ou a de alguma ciência, o caráter de versão canônica à qual todas as outras deveriam ser redutíveis?
Afirmar que há vários mundos reais é apenas reconhecer que "muitas versões de mundo diferentes têm interesse e importância independente, sem nenhuma exigência ou presunção de redutibilidade a uma base única" (GOODMAN, N. op. cit. p.4).

Se a grande preocupação da filosofia moderna, desde Kant, foi a questão da demarcação (encontrar critérios para distinguir o discurso objetivamente válido, capaz de veicular conhecimento do mundo real, dos outros tipos de discurso, sem conteúdo objetivo), o point de Goodman nesta obra é exatamente o inverso.

O que Goodman procura fazer é tirar consequências de algo que para a moderna epistemologia já deveria ser mais do que uma suspeita: as categorias do sujeito transcendental podem não ser precisamente as da geometria euclidiana, da física clássica ou da lógica aristotélica. "A suspeita de que as categorias de Deus podem não ser precisamente as do latim - como lembra Borges - não se admite na escolástica" (BORGES, J.L. op. cit., p. 23/24).

A dedução transcendental de Kant atribuía à estrutura do sujeito transcendental as condições da constituição do conhecimento objetivo; a reconstrução racional do Carnap do Aufbau as remetia à estrutura de uma linguagem canônica capaz de abrigar todas as ciências. O mundo objetivo, real, seria aquele que correspondesse a essa linguagem, a linguagem unificada da ciência.

Goodman não reconhece mais nenhuma linguagem, nenhuma ciência, como capaz de exercer de fato, e muito menos de direito, essa função transcendental. Dentro das ciências, nenhuma pode sustentar tal pretensão ("a própria física é fragmentária e instável" GOODMAN, N. op. cit. p.5); dentro das linguagens, as das ciências não têm porque se impor de forma absoluta sobre as outras ("como é que você faria para reduzir a visão de mundo de Constable ou de James Joyce à física?" (GOODMAN, N. op cit- p.51). Dentre os sistemas simbólicos, não há porque destacar unicamente os linguísticos: música, dança, pintura figurativa ou abstrata, as artes em geral não devem ser tomadas menos a sério do que as ciências como modos de descoberta, criação e ampliação do conhecimento”. (GOODMAN, N. op. cit., p.102 ss).

Não precisamos ter medo diante desse quadro do fim do mundo. Gozemos a liberdade (e assumamos a responsabilidade) que uma tal situação nos abre. Em primeiro lugar, tranquilizemo-nos: o fim do mundo não significa automaticamente o caos. Ao perdermos o apoio em "something stolid underneath", não é necessário que tudo se desfaça em névoa, sonho ou fantasia inconsequente. Construir mundos é sempre uma atividade de "bricolage": partimos do que já existe, e dispomos de um elenco relativamente limitado de instrumentos. Não há perigo de uma desenfreada e alucinante proliferação de "mundos reais", que venha a obstruir qualquer possibilidade de comunicação ou de ação.

Tranquilizados em relação a esse ponto, (e portanto livres do terror do irracionalismo, do relativismo, do subjetivismo, da arbitrariedade, e da obsessão com a verdade e a objetividade), poderemos nos ocupar com coisas mais interessantes.

Desenvolver novos critérios de apreciação para os diferentes tipos de sistemas simbólicos, uma nova compreensão dos processos em jogo na construção de mundos, uma nova sensibilidade para as relações que podem existir entre os diferentes tipos de mundos, serão os objetivos de um novo tipo de análise, que corresponderá a um conceito ampliado de conhecimento. O conhecimento poderá deixar de ser a busca compulsiva do reflexo exato da natureza na mente para se tornar talvez, se soubermos superar a vertigem - um instrutivo "game with shifting mirrors"... (BORGES, J.L. op. cit. p. 100).

O worldmaker é demiurgo e não criador ex-nihilo, é bricoleur e não engenheiro, no sentido de Lévi-Strauss (LEVI-STRAUSS, C. O pensamento selvagem, São Paulo, C.E.N., 1976, pp. 37 ss.). Trabalha com materiais já dados, histórica e culturamente, que condicionam e limitam sua criatividade. Mas embora não alcance o grau de liberdade quase absoluta de que dispõe o engenheiro (o qual pode subordinar à ideia de sua construção a própria produção do material que irá utilizar), ele produz algo novo, cria formas e objetos que não estavam escondidos "na realidade".

Poder-se-ia sustentar que "construir mundos" não é uma pura atividade simbólica, e desejar que Goodman conferisse um lugar mais relevante, em suas preocupações, ao horizonte histórico e prático dentro do qual se dá o worldmaking. O fato de que ele, pessoalmente e nesta obra, não esteja preocupado com isso não quer dizer que sua proposta exclua uma tal dimensão. Pelo contrário: acredito que ela a comporte de forma muito essencial. Mas mostrar isso já seria matéria para outra conversa.


Rejane Xavier

Versão original publicada no Boletim da Pós-Graduação em Filosofia da UFRGS nº2, dezembro de 1982.

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