quarta-feira, 21 de setembro de 2011

A ética importa, sim

Para Marx, “justiça, liberdade, igualdade, fraternidade, independência” são categorias que " soam bem, é certo, mas não têm nenhum sentido no domínio histórico e político”.


Causam tristeza e preocupação as tentativas canhestras de alguns setores da esquerda de minimizar a gravidade dos desmandos éticos que têm marcado nossa política. Segundo esses defensores da máxima de que “os fins justificam os meios”, vale tudo, desde que seja feito em nome dos excluídos, dos historicamente explorados, dos trabalhadores, enfim, desse amálgama histórico e político comodamente reunido sob o rótulo de “o povo”.

O raciocínio é intelectualmente simplista: a moral seria um conjunto de normas criadas pelas elites ­­– que não acreditam nelas nem as praticam­­ – para melhor manter “o povo” na passividade e na submissão. Portanto, ao chegar ao poder, nada mais justo que “o povo” se desembarace dessas regras e passe a prescindir de qualquer freio ético no projeto de afirmação de seus próprios interesses e de consolidação de sua hegemonia política.

A ética deve valer também para os "amigos do povo"
Acontece que, como toda simplificação, essa passa por cima de aspectos importantes e, neste caso, essenciais para a própria idéia de democracia. Sem os valores éticos que a fundamentam − como os ideais de igualdade, de justiça, de liberdade − o que sustenta ainda a democracia? As instituições sobre as quais ela assenta a sua existência, como o Estado de direito ou a autonomia e o sistema de freios e compensações entre os poderes, pressupõem um princípio ético fundamental: o reconhecimento do outro − qualquer outro − como merecedor do mesmo respeito e da mesma consideração que eu reivindico para mim, para minha família e para os meus amigos.
Essa é, historicamente, a origem dos chamados “direitos humanos”, cuja instituição não visou, diferentemente do que pregam os novos teóricos do imoralismo, consolidar o poder das elites sobre os oprimidos. Ao contrário, esses direitos têm servido para proteger o lado mais fraco nos conflitos sociais, assegurando um mínimo de proteção àqueles que não conseguiram impor pela força sua hegemonia sobre o conjunto da sociedade.
O abandono das considerações éticas, o descarte da moral como entrave ao projeto de poder das massas é, além de tudo, uma ilusão perversa, cujas conseqüências negativas recaem, quase inexoravelmente, sobre elas próprias. 

Num curioso texto de 1849, Marx defendeu, na Nova Gazeta Renana, a invasão e a anexação do Texas, então território mexicano, pelos americanos. Seu principal alvo eram os princípios invocados por Bakunin, que criticava a intervenção. “Justiça, liberdade, igualdade, fraternidade, independência” – afirmava Marx --  “estas categorias mais ou menos morais..., soam bem, é certo, mas não têm nenhum sentido no domínio histórico e político”.

Quem se beneficiou com esse abandono dos princípios éticos? Com certeza não “os preguiçosos mexicanos”, que segundo Marx não sabiam o que fazer com sua rica terra, e sim “os enérgicos yankees, (que) graças à exploração das minas de ouro daquela região, aumentam as vias de comunicação, concentram sobre a costa do Pacífico uma população densa e um comércio em expansão, abrem linhas marítimas, estabelecem uma via férrea de Nova York a São Francisco, abrem pela primeira vez o Pacífico à civilização e pela terceira vez na história dão uma nova orientação ao comércio mundial”.  “A independência de alguns californianos pode sofrer com isso, a justiça e outros princípios morais podem ser feridos”? Isso não conta, “diante de tais realidades que são o domínio da história universal”.

Pace Marx, justiça e liberdade só prevalecerão quando forem respeitadas a ética e a democracia, e quando a mentira, a fraude, a apropriação de bens públicos para o proveito privado ou para a compra das consciências forem sistematicamente denunciadas e coibidas. E que isso valha tanto para as elites quanto para o povo, no exercício do poder ou nas relações privadas.

Ao esquecer essas lições, ao tolerar ou coonestar (dar aparência de honestidade) ao   abandono dos princípios éticos por parte de um movimento político que os apregoou e apresentou-se em nome deles perante a sociedade durante decênios, a sociedade brasileira consagra a fraude e pode estar enveredando pelo perigoso caminho do enfraquecimento da democracia. E o que “a história universal” tem mostrado é que as instituições democráticas – e não o roubo, a mentira ou as manipulações – são o único ambiente que permite avanços sociais e políticos sólidos e sustentáveis.

2 comentários:

Moral e Cívica disse...

A violência da corrupção não é apenas material (como no exemplo do desvio de dinheiro da merenda escolar), é antes de tudo uma violência de expectativas, ou uma violência emocional. Partidos moralistas e pautados pelo discurso da moralidade chegaram ao poder no Brasil praticando um dos governos mais corruptos da história republicana (José Álvaro Moisés, em matéria do Estado de São Paulo). O sentimento de desilusão que esta “quebra de contrato” significou é perigosa, por favorecer um descrédito da democracia como sistema. Mas é perigosa também por retirar a razão de quem critica,já que desmoraliza a oposição (pois o crítico, quando no poder,"fará a mesma coisa"). Também é perigosa porque desmoraliza o novo (novos atores políticos, hoje muito críticos, no futuro farão como os velhos que hoje recriminam). A metamorfose do PT em seus antecessores é o desastre político mais grave que ameaça a nossa democracia, já que está afirmando que devemos desprezar toda a discordância, pois ela é a mesma coisa. Seguramente este é o motivo da hipotrofia crescente das forças de dissenso na política brasileira; se todos são o mesmo, por que trocar de partidos? Paradoxalemente, a desilusão com o PT é a garantia de sua permanência no poder, e a garantia da desmoralização de seus jovens opositores.
O PT no poder não apenas desmoralizou o conceito de oposição; desmoralizou o conceito de juventude, de idealismo, de esquerda, de esperança, de denúncia, de brabeza. Se antes do PT no poder o ícone da juventude era, por exemplo, um revolucionário como Che Guevara, o ícone dos movimentos jovens atuais é um palhaço. A contestação foi portanto desglamurada, e o crítico, de Che que era, virou um palhaço. A figura do palhaço, auto imposta pelos jovens nas marchas de 7 de setembro, é uma síntese do que é ser oposição hoje em dia: ser crítico não é ser sério! Saem os caras pintadas, entram os narizes de bolinha.

Anônimo disse...

Uai, não é que Marx acerta às vezes? Tudo que ele falou sobre a anexação do México certamente aconteceu.