terça-feira, 17 de março de 2009

Por uma ética do gerenciamento dos conflitos

ABSTRACT

Na “condição pós-moderna”, fragmentária e plural, da sociedade contemporânea, a gestão dos recursos em saúde tem de enfrentar conflitos inéditos. O que torna peculiar a situação da nossa época não é a falta de um corpo formal de princípios bioéticos básicos, mas a ausência de um marco comunitário universalmente compartilhado, que proporcione aos mesmos um conteúdo substantivo homogêneo. Pela primeira vez na história aceita-se a oposição, dentro da sociedade, entre pontos de vista que, embora inconciliáveis, são reconhecidos como igualmente legítimos e respeitáveis.
Sugere-se que a abertura para uma ampla participação dos diferentes grupos e agentes sociais nas decisões e na implementação das políticas de alocação de recursos seria a melhor forma de contribuir, neste campo, para recriar uma nova base comunitária, não homogeneizante, capaz de fundar uma ética do gerenciamento do conflito legítimo, única adequada e possível para o nosso tempo.


In the fragmentary and pluralistic “post-modern condition” of contemporary society, the management of resources in the field of health has to face previously unknown conflicts. What is particular to the situation of today is not the lack of a formal body of fundamental bioethical principles, but the absence of a universally acknowledged social framework that provides those principles with a common content. For the first time in history there is within society an acceptance of an opposition of points of view which, although irreconcilable, are recognised as being equally legitimate and respectable.

It is suggested that promoting a wider participation of various social groups and agencies in the decisions and implementation of policies of allocation of resources would be the best way of contributing, in this area, to the creation of a new common experience which would not be of a homogenising nature, but would be capable of founding an ethic of managing legitimate conflict, that is the only one suitable and possible for our times.


POR UMA ÉTICA DO GERENCIAMENTO DOS CONFLITOS

É cada vez mais aguda, para toda a sociedade, a consciência de que, a cada momento, médicos, enfermeiros, administradores hospitalares - mas também políticos, planejadores, economistas, empresários - homens e mulheres com formações especializadas, e com responsabilidades diferentes, estão tomando decisões que significam a vida ou a morte. Vida ou morte para uma pessoa concreta, que procura o sistema de saúde em busca de ajuda para o seu caso, ou vida ou morte para milhares de pessoas, afetadas por uma lei, por uma política, por uma medida administrativa.

Enquanto os recursos públicos forem administrados por uma elite remota, e constituirem aos olhos da sociedade uma caixa preta aparentemente inesgotável, a tendência de todos será reivindicar tudo, e não contentar-se com nada. O que constitui, em cada momento, cuidados básicos de saúde; qual o seu custo coletivo, e como deve incidir sobre os diferentes estratos sociais o seu financiamento? O que fazer diante de tendências como a do aumento mais do que proporcional dos custos das descobertas diagnósticas e terapêuticas, em relação ao poder aquisitivo dos indivíduos e à capacidade de financiamento dos estados? Ou da tendência ao adiamento da idade de entrada das novas gerações no mercado de trabalho, ao mesmo tempo em que a expectativa de vida dos idosos aumenta, lançando sobre a população economicamente ativa uma carga de responsabilidade duplamente acrescida?

O direito à vida que é devido a todo indivíduo implica o direito a ter assegurado pela sociedade todos os recursos médicos sofisticados disponíveis no mundo, a qualquer custo? Deve-se, em termos de eqüidade ou justiça distributiva, “dar a cada um conforme a sua necessidade”, ou “dar a mesma coisa para todos”? Quem define a necessidade de cada um? Diante de recursos escassos, como estabelecer critérios para a seleção de seus beneficiários? Como evitar que as preferências, valores e preconceitos do corpo médico ou dos administradores influam nessas decisões? Deve-se respeitar as prioridades das diferentes clientelas (grupos diferentes aceitam melhor a morte das crianças ou dos adultos, por exemplo), ou devem-se buscar critérios gerais? Que indicadores selecionar para o critério de “expectativa de vida qualitativamente ajustada”(qaly): o que cada grupo considera como tal, ou novamente um conjunto genérico de condições? Em nome da autonomia individual, todos deverão pagar a conta das escolhas de alguns (beber e provocar acidentes, produzir a custos mais baixos aumentando o riscos de doenças profissionais nos trabalhadores, continuar fumando, não se prevenir contra a AIDS, ignorar o planejamento familiar), ou certos comportamentos, embora não proibidos, devem onerar diretamente aqueles que os assumem?

As decisões envolvidas na alocação de recursos em saúde estarão hoje realmente mais difíceis e complicadas de tomar? Por que nos acompanha sempre uma sensação de não estar fazendo a coisa certa?


A origem do malestar
Há um corpo de princípios já bastante fortemente estabelecidos, que configuram uma espécie de received view em bioética. Os princípios da autonomia, da beneficência e da justiça ou eqüidade expressam respectivamente os pontos de vista do paciente, dos provedores de cuidados de saúde, e da sociedade. Entretanto, por menos passível de contestação que nos pareça cada um deles, o seu conjunto não parece funcionar adequadamente para orientar as decisões concretas que precisam ser tomadas. Há conflitos potenciais e reais entre eles, que parecem requerer o apelo a alguma instância superior de decisão para serem arbitrados.

A (bio)ética pode ser abordada como um sistema formal de regras, cuja utilização coloca problemas descendentes (de aplicação aos casos concretos) e ascendentes (de fundamentação em normas mais genéricas ou “de segunda ordem”: normas para escolher entre normas). Pode-se também combinar as considerações de princípio com as teleológicas ou de conseqüências: quando os princípios colidem entre si, busca-se aquela escolha entre eles que proporcione o maior benefício (ou represente o menor custo) em termos de conseqüências (1). Sob a pressão da cobrança individual, social e jurídica, os responsáveis pela alocação dos recursos muitas vezes se voltam para a bioética com a expectativa de encontrar um conjunto de orientações capazes de eliminar, ou pelo menos de reduzir ao mínimo, o elemento prudencial, visto como “subjetivo”, em suas decisões.

Mas há na ética em geral, e isso se torna muito patente na bioética, um elemento que explica porque isso é extremamente difícil, e até mesmo indesejável. Trata-se do fato de que a moralidade pressupõe um marco comunitário (2). A idéia de que a ética envolve uma forma de vida compartilhada nos leva a questionar, de um ponto de vista histórico, a nossa própria sociedade atual, e a indagar até que ponto nossas dificuldades específicas não dependem de características dessa mesma sociedade. Sugerirei que grande parte do malestar ético peculiar à nossa época em relação às políticas de alocação de recursos em saúde reflete a novidade e as contradições próprias do novo marco comunitário que caracteriza a sociedade contemporânea.

O grande problema com as nossas escolhas - no caso que nos interessa, com as decisões que tomamos frente à necessidade de alocar recursos escassos em saúde - não diz respeito à falta de princípios éticos. Tampouco nos faltam instrumentos conceituais ou dados empíricos para realizar os cálculos de benefício/custo necessários para “otimizar” teoricamente as conseqüências dessas decisões. É claro que há muitas situações em que tais considerações são suficientes para orientar as decisões, embora não de forma mecânica ou algorítmica, deixando portanto sempre uma margem para a discussão e para a consciência- e conseqüentemente para a dúvida e a angústia.

Mas os problemas mais profundos surgem sobretudo da ausência de uma instância a quem seja consensualmente conferida a autoridade de arbitrar nos casos onde a aplicação dos princípios contraria os interesses de uma ou mais de uma das partes envolvidas. Não me refiro aos cada vez mais freqüentes apelos ao poder judiciário para garantir direitos ou buscar ressarcimento por danos reais ou supostos resultantes de decisões médicas ou político-sanitárias. Trata-se antes de apontar para a ausência de uma força moral - que em outras épocas foi chamada “o destino”, “a vontade divina”, “a natureza”, ou mesmo “a razão”-, reconhecida consensualmente, que represente a última palavra e diante da qual nenhuma contestação tenha cabimento. Este vazio de autoridade última é uma característica peculiar da nossa época, e talvez seja um dos mais importantes condicionantes do malestar ético-político na área da saúde.

Ética e consenso social
O senso do dever moral pressupõe uma forma de vida comum que inclua um acordo sobre os fins. Na sociedade onde isso ocorre, a autoridade dos conceitos, dos princípios e da linguagem morais - a idéia de obrigação que eles transmitem, a valoração que eles impõem sobre a conduta, “certa”ou “errada”- é expressão e decorrência do mesmo consenso que está na base da relação social. “Nesta sociedade, há uma lista admitida de virtudes, um conjunto estabelecido de regras morais, e uma conexão institucionalizada entre a obediência às regras, a prática das virtudes e a consecução dos fins” (3). A tal ponto que seria impossível, numa sociedade idealmente coesa, permanecer dentro da relação de comunidade e rejeitar a força dos imperativos morais vigentes (embora, é claro, seja sempre possível deixar de obedecer a eles). O acordo sobre os fins se traduz, em tais sociedades, pelo reconhecimento de uma autoridade objetiva das regras morais, que as coloca acima do questionamento a partir dos interesses de indivíduos ou de grupos.

A pólis grega (com certeza bastante idealizada) costuma ser a referência quando se pensa num exemplo histórico que se aproxime do modelo de uma forma de vida caracterizada pelo consenso ético-social. O importante, nesse modelo, não é a ausência de conflitos, de injustiças ou de frustrações. O que importa é que, sejam quais forem as formas de enfrentar tais inconvenientes, essas formas são socialmente aceitas, e não geram, por sua vez, novos conflitos de mesmo nível. Na Grécia antiga, a natureza era a instância a que se remetia em último recurso, e o conhecimento a chave que permitia interpretá-la.

Assim, não era chocante que o doente fosse visto como um “incompetente físico e moral”. A base da ética como da vida social era a idéia de uma “ordem natural”, acessível ao conhecimento, ele próprio privilégio de uma elite intelectual e política. O absolutismo político - a idéia de que o povo não sabe o que é bom para si mesmo, e que o monarca esclarecido deve conduzi-lo, tornava-se moralmente justificado. Correlativamente, o paternalismo médico era aceito como uma autoridade natural, decorrente de uma percepção privilegiada da verdade, e conseqüentemente do bem, a ser imposta ao paciente mesmo contra a vontade do mesmo. O Corpus Hippocraticus contém pérolas como essa:

“De fato, é muito mais verossímil que o doente seja incapaz de obedecer às prescrições do que o médico faça más prescrições. Com efeito, o médico trabalha são de espírito e de corpo, raciocinando sobre o caso presente e, entre os casos passados, sobre aqueles que se parecem ao caso presente, de modo a poder dizer por qual tratamento eles foram superados. Mas o doente, que não conhece nem sua doença, nem as causas de sua doença, nem o que acontece nos casos semelhantes ao seu, recebe as receitas sofrendo no presente, temendo pelo futuro, cheio de seu mal, vazio de alimentos, desejando antes o que a doença lhe torna agradável do que aquilo que convém à sua cura, não desejando sem dúvida morrer, mas incapaz de firmeza. O que é mais verossímil: admitir que o doente assim disposto não executará ou executará mal as ordens do médico, ou admitir que o médico, encontrando-se nas condições descritas acima, dará más receitas?” (4)

A beneficência do médico era decorrência do seu saber, que incluía o “saber o que é bom”: o bem do paciente, com certeza, porém não como indivíduo autônomo, mas sim como parte integrante do bem maior da sociedade. Também não era chocante a idéia de que as diferenças “naturais” entre os homens determinassem uma hierarquia social, e que a esta por sua vez correspondessem diferentes formas de acesso aos cuidados de saúde.

Na sociedade moderna, a autonomia do indivíduo, e o pluralismo religioso, político e moral passaram a ser reconhecidos como ideal de sociabilidade. Através de diversos movimentos e fatores convergentes - da incorporação das idéias judaico-cristãs de dignidade da pessoa e de sentido progressivo da história à ascenção de uma burguesia que valorizava mais a iniciativa individual do que a ordem estabelecida feudal -, assistiu-se ao progressivo descobrimento e afirmação dos direitos humanos. Não se temia que o individualismo provocasse a desintegração da ordem social. Acreditava-se que os inevitáveis conflitos, gerados pela pluralidade de valores e de interesses entre os indivíduos autônomos unidos por um contrato social, seriam no limite passíveis de uma conciliação, na idéia do “bem comum”, reconhecível e aceito por todos. Otimismo fundamental, que via na natureza humana racional o denominador comum capaz de arbitrar entre os interesses legítimos. E esses, ao contrário dos interesses mesquinhos e egoístas, seriam sempre, em princípio, interesses universalizáveis. Acreditava-se, dentro de uma visão liberal do conceito de justiça¸ que, uma vez reconhecida e respeitada a autonomia dos indivíduos e assegurados seus direitos fundamentais (também chamados direitos “negativos”, pois tratava-se basicamente de assegurar que cada um pudesse conduzir seus assuntos sem interferência dos demais) o papel da coletividade, especialmente do Estado, poderia ser mínimo.

Era nesse contexto que se estabelecia o consenso básico justificador da prática médica vigente. Ricos e remediados, cujo status era considerado justa decorrência de seu próprio trabalho e competência, teriam a medicina que pudessem pagar, diretamente ou através de seguros privados. E aos pobres não era reconhecido nenhum direito à assistência médica, a qual, na melhor das hipóteses, lhes poderia ser prestada por caridade.

No século XIX, a evolução das condições da sociedade européia exigiu que fosse dado ao princípio de justiça uma determinação mais substantiva. O predomínio da produção industrial em grande escala, por um lado, esvaziou a verossimilhança da tese de que o trabalho e a iniciativa individual eram a fonte de legitimidade da riqueza. Por outro lado, também a pressão das lutas políticas dos trabalhadores organizados forçou o seu reconhecimento como sujeitos de direitos positivos, aos quais passaram a corresponder deveres por parte da sociedade, e mais especificamente, do Estado.

Diferentes “pontos de equilíbrio” foram procurados e encontrados entre os interesses dos dois grandes protagonistas históricos nesse período, a burguesia ainda fortemente responsável pelo dinamismo econômico, e a classe trabalhadora, cada vez mais consciente de seu próprio peso dentro do sistema. Nenhum dos lados consegue um predomínio nítido na disputa ideológica, e deixa de haver a aderência da sociedade como um todo a um sistema de valores compartilhados. O ideal de uma forma de vida compartilhada permanece: o conservador Augusto Comte fala da “incorporação do proletariado à sociedade industrial”, o revolucionário Marx projeta uma sociedade comunista sem classes como perspectiva da luta vitoriosa do proletariado, “classe universal”. Mas o fato é que o consenso social já não existe.

Não é de surpreender, portanto, que nessa época o campo médico reflita as inquietações, conflitos e tentativas de solução que perpassam toda a vida social. O alcance e os limites dos novos direitos positivos; as fontes de financiamento das instituições exigidas para assegurá-los, e as novas formas de gestão que elas requerem; o alcance e os limites do papel do Estado, e as bases de sua legitimidade; tudo isso são temas que agitam o debate social e se refletem na área da saúde. Comunistas, anarquistas, social-democaratas, conservadores tentam soluções diferentes, a partir de diferentes concepções do que seja o bem-comum. Mas o que ainda não está em questão é a idéia de que existe algo como o bem-comum, ao qual se deve chegar: por bem ou por mal, mais cedo ou mais tarde, a sociedade deve ser conciliada e a coesão restabelecida. Existem diferentes campos dentro da sociedade, mas cada um acredita que a sua visão, a sua ética são universais e deverão acabar predominando. O conflito é portanto entre perspectivas éticas diferentes, que não se reconhecem como eqüivalentes mas sim como rivais. Embora conflituosa, a situação não é dramática, pois dentro de cada campo há coesão suficiente para assegurar a segurança dos juízos éticos.

Por um novo tipo de consenso
Nossa condição atual, que se tornou moda chamar de “pós-moderna”, se caracteriza pelos processos acelerados de urbanização e de globalização, sob a égide do capital financeiro, no bojo de uma revolução tecnológica e gerencial que torna a produção cada vez mais incorporadora de “inteligência” e menos de matérias primas ou de energia humana não-qualificada. A mudança do padrão tecnológico marginaliza os grandes contingentes populacionais que no modelo anterior constituiam as reservas de mão-de-obra não qualificada, agora dispensáveis e indesejadas. O Estado perde sua função econômica de grande acumulador de capital; seu caráter nacional passa a ser um obstáculo à livre circulação financeira; seu papel de compensador das desigualdades sociais um impecilho ao descarte, considerado inevitável, da velha mão-de-obra industrial.

No terreno ideológico, a nossa é uma época marcada pela perda de vigência dos grandes ideais unificadores (a “falência das grandes narrativas”, de que fala F.Lyotard). Nem a Natureza, nem Deus, nem a Razão conseguem mais desempenhar o papel de recurso supremo ao qual apelar para dar um sentido global à história e à ação humanas. O mercado, a nova grande força sobre-humana a que se passou a recorrer, não tem nem de longe o mesmo potencial legitimatório de suas antecessoras.

Não mais existe, no seio das sociedades complexas e avançadas, um sentido comunitário compartilhado por todos, ou por grandes segmentos sociais. A um exacerbado individualismo correspondem identidades sociais múltiplas e flutuantes. O indivíduo transita entre vários grupos, simultânea ou sucessivamente, e sua identificação com os valores de cada um deles dificilmente o absorve de forma total ou definitiva. Proliferam as “tribos”, com experiências, linguagens e interesses tão diversos que seu diálogo se torna não apenas difícil, mas inclusive ocioso, por falta de bases ou de objetivos comuns. As movimentações das populações - do campo para as cidades, dos países pobres para os desenvolvidos - criam guetos culturais, étnicos e linguísticos no seio das grandes metrópoles, enquanto o abismo econômico e cultural se aprofunda entre as classes e as nações. A rapidez da criação de novos conhecimentos e da transmissão das informações, aliadas à especialização crescente em quase todas as áreas, produzem microcomunidades, muitas vezes virtuais, de iniciados cujo jargão é impenetrável mesmo para seus vizinhos mais próximos do espectro científico (ou literário, ou filosófico). Não é de admirar, em tais circunstâncias, que a ética tenha se transformado em um diálogo de surdos (com perdão da expressão, pois é sabido que os surdos desenvolvem sofisticadas formas de comunicação entre si e com os ouvintes, e podem dialogar tão perfeita - ou imperfeitamente - como os demais).

Mas há também fatores animadores nessa situação bastante preocupante. Não existe por parte desses grupos - religiosos fundamentalistas e neoliberais fanáticos à parte - a pretensão de fazer valer para o conjunto da sociedade seus pontos de vistas e objetivos. O pluralismo é a regra, seja por autêntico respeito à autonomia dos demais, seja por indiferença aos problemas e opções alheios. E uma nova consciência de solidariedade faz contraponto à exacerbação do individualismo. Os temas ambientais, a mobilização em torno das mais diversas questões coletivas - característica das ações das ONGs - a solidariedade ativa em relação a grupos desfavorecidos ou discriminados, mostram que se não há uma consciência ética baseada numa experiência comum aos diversos segmentos da sociedade, existem forças capazes de assegurar um novo tipo de coesão inter-grupal não homogeneizante.

O desafio para a nova (bio) ética dos novos tempos está em favorecer essas forças, que apontam para a constituição de um novo tipo de comunidade, onde o consenso não exclui a diferença e nem mesmo o conflito. Reconhecer que nem todos os conflitos legítimos são conciliáveis é renunciar ao ideal (ou ao mito) da verdade, do bem ou da razão supremos, e contentar-se com o difícil e precário equilíbrio possível.

Do ponto de vista da alocação de recursos em saúde isso pode querer dizer, antes de mais nada, a abertura a uma participação pública realmente substantiva nas decisões fundamentais. Destaco a idéia de participação, em oposição ao simples debate público, que já se tornou chavão receitar como saída para toda espécie de impasse. A idéia do debate (mesmo assorti com os adjetivos de livre, informado, racional, etc.) ainda é excessivamente tributária do velho ideal de uma razão universal, capaz de apontar, uma vez eliminados os preconceitos e a ignorância, para o velho objeto do desejo totalizante: o interesse geral, o “bem-comum”. Insisto em que uma nova forma de solidariedade só poderá resultar de uma nova forma de vida, e que isto implica, mais do que debater, em fazer coisas junto uns com os outros. Claro que o debate público é parte disso, e os países nórdicos têm dado o exemplo no sentido de procurar envolver toda a sociedade na discussão dos temas de bioética (5). Mas é tendo a responsabilidade de agir, de dar razões da ação, e de arcar com as conseqüências que se aprende a viver junto. Se isto for possível, estaremos fazendo a nossa parte no esforço de recriar a necessária base comunitária para uma ética do gerenciamento do conflito legítimo, que me parece ser a única adequada e possível para o nosso tempo.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1)Gracia, D. Qué es un sistema justo de servicios de salud? Principios para la asignación de recursos escasos. In: Boletín de la Oficina Sanitaria Panamericana, 1990; 108: 570-585.
2)MacIntyre, A. Historia de la Ética. Barcelona, Paidos, 1981. (p. 257)
3)idem .(p.255)
4)Joly, R. Hippocrate - médecine grecque. Paris, Gallimard, 1964. (p.228-9)
5)B.Andrew Lustig, ed. Bioethics Yearbook, vol 4. Regional Developments in Bioethics, 1991-1993. Kluwer Academic Publishers, Dordrecht, 1995, pp. 301-327

REJANE MARIA DE FREITAS XAVIER
POR UMA ÉTICA DO GERENCIAMENTO DOS CONFLITOS
(publicado na revista BIOÉTICA - Volume 5 - Nº 1 - 1997
do Conselho Federal de Medicina ) http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/370/470

Um comentário:

gianna disse...

apesar da data em que foi escrito - 1997, não é?- este é um texto muito apropriado para a semana que passou, quando as discussões sobre planos de saúde, saúde pública, e médicos grevistas deram o que pensar.
Talvez fosse interessante fazer uma "orelhinha" ao título, para chamar a atenção.
Belo trabalho!