terça-feira, 7 de maio de 2024

O Caim de Saramago: ironia, sátira, heresia

José Saramago, o Nobel português de literatura, usa Caim para atacar Deus, em seu mais recente trabalho. Ou melhor: é com uma certa idéia de Deus – idéia criada e cultivada pelos homens – que ele quer ajustar contas. Confessadamente ateu, por que ele se daria ao trabalho de atacar – algo, alguém – que não existe?

Saramago já tinha reescrito à sua moda o Novo Testamento, em O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991). Em Caim ( Companhia das Letras, 2009) ele revisita o Velho Testamento, convencido de que “o Deus dos cristãos não é esse Jeová”.

Não é o primeiro grande escritor português a fazer isso. Fernando Pessoa usa o menino Jesus para contrapor, à idéia do deus distante, do pai que julga e condena, um deus criança, irmãozinho, travesso, próximo e cúmplice das travessuras humanas:
“Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano, que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso, que eu sei com toda certeza,
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
Pois esse menino Jesus de Pessoa, fugiu do céu, porque lá, explica, “tudo é estúpido como a igreja católica” e “Deus é um velho estúpido e doente”.

Em Caim não há nenhum deus bonzinho para substituir ou contrabalançar o deus terrível, criador e algoz da humanidade, que Ele parece se comprazer em fazer sofrer.
Arbitrário e injusto, Deus recusa as oferendas de Caim, enquanto aceita as de seu irmão, Abel, sem nenhuma razão aparente. Caim mata o irmão, e se torna o contraponto que Saramago escolhe para denunciar os “absurdos” que lhe parecem povoar as atitudes divinas no Velho Testamento.

Com ironia, humor e até alguns momentos picantes, Caim – espécie de dom Quixote, montado em um asno –, se desloca pelos lugares e épocas da velha Terra Santa testemunhando, e às vezes intervindo em conhecidos episódios bíblicos.

Deus manda Abraão sacrificar o próprio filho, Deus se vinga dos homens que queriam chegar até ele construindo uma torre, Deus despeja fogo sobre as cidades pecaminosas de Sodoma e Gomorra, exterminando pecadores e inocentes; Deus se aborrece com a sua criação e manda o dilúvio para destruir (quase) tudo...

As histórias são conhecidas, as idéias de Saramago a respeito delas também. O que torna esse livro tão interessante? A provocação, por um lado: ele nos obriga a pensar, até mesmo para poder refutá-lo, se não concordarmos com ele. Mas sobretudo as qualidades literárias da narrativa, que nos prende do começo ao fim. Caim tem algo da novela picaresca ibérica e algo do realismo mágico latinoamericano, uma pitada de cordel, um tempero on the road, um aroma de relato heróico clássico e até um acento paradoxalmente bíblico. A mistura deu certo, acredito. E recomendo.

Um comentário:

Maria Gontijo disse...

Já que estamos em 2016 e que a raça de Caim está extinta (virou tinta de impressora, quando muito) vale a leitura de Caim do Sal Amargo para recuperarmos o nosso lado revoltado diante deste Deus de Bondade - que felicidade! - que adora o Abel-Puro-Mel e rejeita o Caim-Inteiro-Fim.