sábado, 19 de fevereiro de 2011

Movimento antimanicomial: genocídio foucaultiano?

 Encontrei o texto abaixo na internet, e fiquei em dúvida onde postá-lo: no meu blog mais filosófico ou no político? Optei por colocá-lo aqui, pois a despeito de suas óbvias referências ao debate político, acredito que ele suscita uma reflexão mais ampla sobre o pensamento e suas relações com a práxis.


Sr Marcos Rolim; por que não te calas?

 Pensar o mundo em uma polaridade de bem e mal, com contornos claros entre os dois, é uma possibilidade didática, mas que não dá conta da realidade. Um senhor nascido antes da primeira guerra dizia: “no meu tempo só existiam dois tipos de mulheres, as putas e as de família. O problema é que hoje tudo é intermediário”.
 Lamentavelmente, ou felizmente, nos tempos atuais, tudo é mesmo intermediário. Já não podemos mais ignorar todos os matizes do cinza, que está no espectro entre o preto e o branco. Não podemos ignorar que o mais alvo dos gatinhos, de noite se nos configura pardo. Não podemos ignorar a zebra listrada, a vaca malhada e as manchas impuras na biografia de qualquer santo.
 Mas o raciocínio das polaridades – não o das multipolaridades, e sim o das bipolaridades antagônicas e simétricas – ainda é um recurso de estilo muito difundido, em especial por uma esquerda de menos luzes, uma baixa esquerda. Eventualmente por saudosismo do tempo da ditadura militar, onde o mundo era de fato sem matizes, no tempo das canções do Chico Buarque, passados 40 anos, ainda temos muita gente que prefere descrever o mundo em termos polares, ou de dois pólos apenas: o mal e o bem, “eles e nós”, o progresso e o neoliberalismo, ou que polaridade se desejar.
 O pensamento bipolar é muito atraente: por ser didático, é de fácil compreensão pela maioria iletrada. Compor um discurso na base do “nós contra eles” (ou melhor ainda, eles contra nós), é muito apelativo, pois conecta o leitor/eleitor a um universo desejável, onde tudo é claro, reconfortante. É um universo simples, compreensível, um mundo do pré-primário, o mundo dos filmes de Hollywood, onde personagens complexos (movidos pelo bem e ao mesmo tempo pelo egoísmo) não são comercialmente vendáveis. O mundo do pensamento bipolar é o mundo do Tea Party, um mundo simplista e simplório, maniqueísta, mas muito do gosto popular, ainda que um tanto desprovido de inteligência.
 Não encontro outro motivo para a popularidade do presidente Lula, para a reeleição de Dilma, senão o abuso deste recurso estilístico. Retirar Ciro Gomes da disputa era fundamental para manter apenas dois pólos da campanha. O crescimento de 20% de um discurso ecologista, para além do bem e do mal, foi uma surpresa para o petismo, por escapar do desejável universo preto-branco. O ex-presidente FHC inclusive ironizou esta esperta estratégia de Lula de sempre manter a bipolaridade, ao dizer que o PT tinha uma quantidade suficientemente boa de feitos positivos para poder abrir mão da obsessiva comparação do presente com o que veio antes. Lula e a campanha de Dilma contudo sabiam que sem o pensamento bipolar, o apelo do discurso se perderia. O bordão de Lula que ficou, não por outro motivo, foi o “nunca antes na história deste país”.
 Tirado do contexto da política, esse tipo de pensamento deu formato e força de denúncia a um movimento da década de 80 no nosso meio, o chamado movimento antimanicomial, ou movimento da antipsiquiatria. Um teórico da época, o então deputado Marcos Rolim, autor da lei da reforma psiquiátrica aprovada em 1992, eventualmente por ser na época petista, colocava as coisas nesses termos bipolares.
 Na visão do movimento, a doença mental era um construto criado pelos psiquiatras. A simplificação era apelativa, o projeto era claro: fechar o leito psiquiátrico iria reformar a psiquiatria.
Tanto ficou proibida a criação de novos leitos psiquiátricos, quanto determinada uma progressiva desativação dos existentes, no médio prazo. Para o movimento, um projeto de lei poderia decretar o fim de doenças crônicas em psiquiatria. Pela proposta, o leito psiquiátrico seria substituído por tratamentos alternativos, desmedicalizando a doença mental. E obviamente o médico, em particular o psiquiatra, de estudioso e clinico, passou a ser descrito como agente etiológico da doença, se tornou o “eles”, que no campo da política seria o Sarney, ou o Collor, ou o Golbery. Por decorrência, os denunciantes se colocavam como reedições foucaultianas de um novo Pinel, famoso por libertar das correntes os doentes mentais da Salpêtrière, dois séculos atrásO petismo e Rolim libertariam a doença mental de sua irreal base biológica, como dizia Foucault, e mesmo do seu sentido de “doença” (sem falar que libertariam os pacientes dos médicos). Isto seria feito por decreto.
 Ocorre que nestes 20 anos de políticas antimanicomiais os fatos correram longe das teorias. O professor Marcos Pacheco da UNIFESP, dizia ironizando a psicanálise: “as teorias são uma beleza, o diabo são os fatos (quando teimam em não confirmar as teorias)”. Por interesse do estado, que tem o leito psiquiátrico como o mais caro, a desconstrução –agora com idéias “atualizadas” que serviam de bem vinda justificativa – da estrutura manicomial foi rápida. Nenhuma estrutura alternativa, na escala e eficiência 10% adequada à demanda foi criada no lugar. A população de 10 milhões de gaúchos vive o vazio de qualquer assistência a saúde metal, em 20 anos. O conveniente denuncismo de uma psiquiatria que gerava a doença mental esteve a serviço da desconstrução do modelo médico, gerando atordoamento e nenhuma política substitutiva real.
 Seria apenas um exemplo claro de como o pensamento bipolar, aliado da denuncia pós-moderna da loucura como um construto histórico, e portanto uma não realidade biológica, serviu ao conhecido interesses dos formuladores de políticas de saúde pública em economizar. Para ilustração: o governo Lula em 2010 pagou 180 bilhões da riqueza nacional em juros, destinando só R$ 55 bilhões para financiar toda a saúde do povo brasileiro. É natural que o movimento anti-psiquiatria tenha sido uma bandeira da década de 80 dos petistas, que na verdade são anti-saúde como um todo, pois temos claro a que estado o SUS foi relegado nestes últimos 8 anos de petismo real.
 Mas infelizmente o tema da falta de assistência ao doente mental não é apenas uma discussão teórica, não é só uma conversa bizantina, nem ao menos é “apenas” discussão: é uma omissão com decorrências. Uma omissão em ação, com pessoas que morrem de verdade como conseqüência. Não temos apenas uma amena discussão acadêmica, teórica, sobre a natureza da doença mental - se ela é ou não uma entidade biológica, ou social ou psicológica (ou os três ao mesmo tempo). Não se teoriza apenas sobre a institucionalização ( se ela trata ou cria a enfermidade mental), ou acerca do papel dos psiquiatras (coniventes ou combatentes da doença mental). Não podemos esquecer que falamos de políticas públicas – de planos de ação ou inação  e que doença mental mata (por exemplo, 50% dos pacientes bipolares tentam suicídio e 15% conseguem). E que o tratamento médico da doença mental protege da morte (basta ver os recentes dados sobre o uso de lítio na doença do humor). Já a inquisição antimanicomial decretou o fim da biologia na doença mental e negou – por decreto  as evidências do sucesso no tratamento biológico destas enfermidades.  No entanto, como diria Galileu, ela – a biologia  ainda se move: a biologia da doença mental seguiu existindo, indiferente às discussões, opiniões e leis, obrando, impávida, suas ruindades e ceifando vidas.
No campo das discussões teóricas, que internacionalmente são cada vez mais consensuais e evidentes, nestes 20 anos vivemos o triunfo da noção de biologia/patologia das doenças mentais, seja entre os autores, seja no campo das terapêuticas mais eficazes, superando pelo mundo afora o movimento antimanicomial: na medicina, como na guerra, a melhor teoria é a mais eficaz. Hoje os doentes e suas famílias na verdade mais pressionam o estado por uma maior medicalização (remédios, atenção, internações) do que pela “libertação” do modelo médico no tratamento da doença mental. Os doentes crônicos passaram a viver em clínicas geriátricas privadas, não mais públicas. O atendimento médico deu lugar a aulas de corte e costura. O número de não médicos contratados pela estrutura é enorme, a eficiência de suas intervenções nunca foi – e nunca será  medida. Psiquiatra e paciente ficaram sós, o estado sumiu.
 Um autor, que caso não me engane tenha sido Norberto Bobbio, fala que não pode concordar com qualquer idéia (ou ideologia) que esteja a serviço de matar uma vida humana. Qualquer tese rápida de mestrado pode calcular o quanto custou à sociedade gaúcha vinte anos da lei de reforma antimanicomial, em termos de vidas humanas. Além das centenas de mortes por suicídios, abuso de drogas e surtos psicóticos, é bastante simples calcular o quanto um discurso equivocado, maniqueísta e polar como o deste movimento causou também de morbidade: não podemos esquecer que a ausência de leitos psiquiátricos médicos leva a um percentual grande dos doentes para o tráfico, para as prisões e para a vida como morador de rua ou mendigo.
  Encarando-se do ponto de vista de uma idéia a serviço de uma omissão, e de uma omissão a serviço de morbi-mortalidade, todas essas décadas de funcionamento da lei Marcos Rolim implementaram um real genocídio em nosso meio. Podemos comparar o movimento antimanicomial e a lei do então deputado – pelo número de mortes – ao genocídio que levou Slobodan Milosevic ao tribunal de Haia, com o agravante de matar seletivamente doentes mentais (pessoas com menos condição de defesa contra as idéias foucaultianas e polares do movimento). Ainda que seja também um pensamento polar, típico do que estamos comentando, chamar o senhor Rolim de genocida, e sugerir seu julgamento em Haia, ou denominá-lo pela alcunha de “carniceiro foucaultiano”, é seguro que este senhor não entrará para a história como tendo aportado qualificação ou melhorias a assistência a saúde mental em nosso meio.
 Pois precisamente este sujeito, o ex-deputado e atualmente jornalista Rolim, no dia 13 de fevereiro publica uma crônica no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, novamente fazendo uma caricatura irônica sobre os médicos, em um momento preciso em que a categoria médica luta contra a privatização do SUS.  Lá estão os mesmos vícios de 20 anos atrás: o pensamento bipolar, o médico (e não o governo petista) como responsável pela desatenção a saúde da população, o esquematismo, a didática, o simplismo, o bem e mal, o vilão personificado no médico. Lá esta novamente a sugestão do médico como responsável pela doença, neste caso não a mental, mas pelo descalabro do serviço público (“os médicos não trabalham nos postos e cobram bem’). Nem um adendo sobre o petismo no poder por oito anos, nem uma nota sobre verbas, nem uma referência ao petismo real: o médico burguês resiste a ajudar a população revolucionária a implementar a libertação das enfermidades, impede os gestores modernizantes e interessados na população na tarefa de socializar a saúde. Deste ponto até o momento de prender médicos e puni-los por estudar demais, no modelo da grande revolução cultural chinesa, são mais duas gestões na prefeitura, sendo proposto o Sr Rolim como o provável chefete da camarilha dos quatro.
 Curioso que um sujeito que tem as mãos manchadas por centenas de mortes, um sujeito passível de ser denunciado por genocídio ao tribunal de Haia, coautor de uma matança de centenas de doentes mentais sem par em outra parte do mundo tenha ainda, passado vinte anos, não se dado conta de seu papel bárbaro na história. Segue com seu discurso de personificar o mal em médicos, em imputar a fratura ao ortopedista, em se promover com um denuncismo que tanto mal já causou às mães que precisam acorrentar seus filhos no pé da cama por falta de assistência médica.
 Esperaríamos desse sujeito, amadurecido por vinte anos de vida e pela aterradora visão de que ajudou em centenas de mortes e em milhares de morbidades, um discurso de maturidade. Que reconhecesse as precipitações da juventude, as terríveis conseqüências de sua lei, o quadro estarrecedor em que a saúde mental se encontra atualmente, em parte pelas leis que ajudou a promover, em parte pelos governos que integrou. Esperaríamos que escrevesse o óbvio: só deveríamos ter fechado os leitos após a abertura dos novos modelos, uma coisa “condicionada” a outra. Que reconhecesse que sua lei foi um genocídio, mesmo que culposo. Mas não, o foragido de Haia segue descaracterizando os médicos, em especial o que ele ironiza, homem dedicado a décadas de atendimento no HPS, salvando vidas de fato, e não compondo ideologias que justificam matanças de pessoas. O nosso Slobodan dos deprimidos e toxicômanos está solto ainda, o nosso Jiang Qing ainda teoriza que o conhecimento é um decadentismo burguês. Pelo que vemos ele pouco mudou com o inescapável confronto com os fatos, pois o diabo são os fatos! O diabo são os 20 anos após 1992! E ainda mais os fatos intermediários!
 

2 comentários:

Conversa de Músicos disse...

Olá "Rex Cogitans":

Parabéns pelo blog e parabéns por haver postado este artigo sobre o movimento anti-manicomial. Falo isto na condição de irmão de uma pessoa q. foi diagnosticada (por vários psiquiatras) c/ transtorno esquizo-afetivo. Já tentamos tratá-la como uma pessoa "normal", na posse de uma capacidade de raciocínio compatível c/ sua idade (ela está c/ 46 anos), por vários anos a fio, conversando muito c/ ela, expondo os problemas, e não deu certo. Depois tentamos tratá-la como se fosse mesmo uma adolescente (pois o comportamento dela é próprio desta idade), e também não deu certo. Ela só melhora qdo fica um tempo em alguma clínica, mas volta a piorar um tempo depois, após voltar da internação. O problema, é que, graças a este famigerado "movimento anti-manicomial", o máximo de tempo q. conseguimos mantê-la internada foi por uns 3 meses, sendo q. ela precisaria de muito + tempo de tratamento (e ela é resistente a todo e qualquer tratamento). E basta ler os jornais, p/ observar que, após as "conquistas" do movimento anti-manicomial, a única coisa q. está acontecendo é um aumento de casos de violência envolvendo pessoas c/ distúrbios mentais e seus familiares. Eu estava mesmo procurando um artigo como este q. vc postou, e pretendo divulgá-lo o máximo possível. Espero q. os defensores do "movimento anti-manicomial" ainda ponham a mão na cabeça, e percebam o quanto este movimento é irresponsável, e quão nefastas são as consequências do mesmo. Muito obrigado e muito sucesso c/ o seu blog!!

um abraço!

Jean

Marco disse...

De fato um texto excelente! Saberias o nome do autor? Gostaria de citá-lo num futuro artigo sobre o tema, que me interessa muito (os abusos da tal reforma). Parabéns e um abraço,

Marco Albuquerque