domingo, 20 de março de 2011

O mundo como ele é


A FOTOGRAFIA: descrição, interpretação, realidade ?

 
‘You don’t take a photo, you make it’ – Ansel Adams.

A contraposição entre descrição (fiel, objetiva, “fotográfica”) e interpretação (subjetiva, “distorcida”) da realidade remete a um referente externo, “o mundo tal como ele é”. A este mundo – o mundo real – se atribui a capacidade de medir as diferentes “formas de abordagem” por seu maior ou menor “realismo”, isto é, de fidelidade ou proximidade ao modo como ele é.

Para tentar explicar por que entendo que tanto esta contraposição entre descrição e interpretação, como a noção de realidade que lhes é correlativa são enganadoras,  acredito que seja útil traduzir partes do importante artigo de Nelson GOODMAN, "The Way the World is".

A curiosa inversão proposta por Goodman[1] - não julgarmos "realista" a fotografia medindo seu grau de fidelidade a "o mundo como ele é", mas tentarmos descobrir "o modo como é o mundo" a partir das imagens que consideramos "mais realistas" – mostra claramente que a oposição entre descrição e interpretação da realidade, ou do mundo, é uma falsa alternativa.

Toda descrição, poderíamos dizer, na linguagem da epistemologia dos anos 60, é sempre já "theory-ladden", impregnada de teoria. O que vemos não são as variações de energia das ondas luminosas que impressionam as nossas retinas. Nosso cérebro processa de modo extremamente complexo a estimulação visual que o olho capta através de mecanismos eles próprios seletivos. Somos sensíveis apenas a uma fração do espectro luminoso, e a estímulos que perduram acima de um certo tempo.

Isto não diz respeito "ao mundo como ele é" (se tal conceito faz algum sentido depois que Kant fez a crítica da "coisa em si"), mas à nossa capacidade de captar e processar um certo tipo de informação.

 "A cócega não está na pluma, está na mão", já afirmava Galileu, insistindo na relatividade das qualidades secundárias. Nossa visão tridimensional na verdade é um produto da coordenação, efetuada pelo cérebro, entre o campo visual bidimensional e a informação motora, tátil-cinestésica, que nos dá a dimensão da profundidade. E, além disso, a mesma informação visual, processada pelos mesmos mecanismos fisiológicos, pode dar lugar a diferentes "ver-como", dependendo das condições conceituais, culturais, psicológicas que determinam o enquadramento dessa informação.

É clássico o exemplo de Hanson, que nos convida a imaginar uma visita a um laboratório feita por um físico experiente e por seu filho de dois meses, que ele traz ao colo. "O físico e a criança observam a mesma coisa, quando olham para o tubo de raios X? Sim e não. Sim - têm consciência visual do mesmo objeto. Não - o modo como têm essa consciência é profundamente diverso. Ver não é apenas ter uma experiência visual; é também o modo como se tem essa experiência.”[2]

Por que, apesar de tudo, permanece tão forte a sensação de que a fotografia é a mais objetiva e realista modalidade de reprodução do mundo? Por que julgamos certas fotos "distorcidas" e outras "fiéis"? Ao que tudo indica, isso tem a ver com o fato de que nos acostumamos com certas convenções a tal ponto que nos tornamos inconscientes delas, assumindo-as como uma espécie de "segunda natureza".

Ao falarmos ou lermos em português, a linguagem é uma espécie de meio transparente em que nosso pensamento evolui; ao fazê-lo numa língua estrangeira, temos de lutar com as convenções da sintaxe e da semântica, e nos damos conta das mesmas. Mas se, como sugeriu Pascal, a cultura é uma segunda natureza, a natureza não seria por sua vez apenas uma velha cultura? As convenções visuais que hoje nos parecem "naturais" - a começar pelas regras da perspectiva - foram sendo sedimentadas historicamente na nossa cultura, e a câmera fotográfica nos parece objetiva e fiel exatamente porque se constitui numa materialização dessas mesmas convenções!

Se a fotografia materializa, incorpora, as convenções canônicas da representação visual, ela pode também contribuir, e tem contribuido, para sondar as possibilidades e os limites dessas convenções, ajudando-nos a tomar consciência das mesmas e eventualmente a superá-las.

Um novo modo de olhar foi tornado possível pela fotografia, técnica que popularizou e multiplicou as possibilidades de produção da imagem, que até meados do século XIX eram privilégio das elites sociais. Como objetos, as imagens passam a fazer parte, reflexivamente, da própria realidade. Pode-se encomendar, fazer, retocar, comprar, vender fotografias, como se faz com as roupas, os móveis, as casas.
De modo quase insensível, nosso contato com o mundo vai se tornando cada vez mais dependente da imagem. Quantos lugares, pessoas, obras de arte, "conhecemos" sem nunca os termos visto diretamente, mas apenas através da foto, do cinema, da televisão?

 Nossa relação com a realidade passa a ser mediada, condicionada pela imagem, num processo em que a famosa perda da "aura" da obra de arte, analisada por Walter Benjamin, é apenas uma das facetas. A economia não funciona para satisfazer necessidades: o que a move são os desejos de consumo, e estes, em grande parte, são despertados pelas imagens dos produtos, que a publicidade oferece. As imagens atrozes da guerra do Vietnam revoltaram o mundo; as imagens "clean" da guerra do Golfo tranquilizaram as consciências ocidentais. Somos nós, ainda, quem fazemos as imagens, ou são elas já a nos fazer?

A fotografia como "arte" explora novas possibilidades dessa linguagem que nasceu codificada a partir das proporções da camera obscura, das relações da perspectiva renascentista, da ilusão de uma transposição fiel da realidade como ela é em si mesma. Essa exploração de novas possibilidades de visão, contudo, não deve ser "rebaixada" de seu alcance ontológico revolucionário: não se trata de meras "interpretações" ou "leituras" de uma realidade indiferente em si mesma a essas divagações. É uma nova realidade, são novas realidades o que emerge dessas tentativas, quando bem sucedidas.

Nietzsche diz que um conceito não passa de uma metáfora congelada: "o conceito, ósseo e octogonal como um dado e tão fácil de deslocar quanto este, é somente o resíduo de uma metáfora"...[3]   

O que consideramos realidade são nossas sensações enquadradas por sistemas de tais conceitos, esqueletos congelados de velhas metáforas, parcialmente aquecidos pelo calor da inquietação estética, e permanentemente recobertos por novas camadas de convenções esquecidas. Mas essa solidificação não é, e não precisa ser, definitiva. Pelo menos não para nós, seres humanos. "Tudo o que destaca o homem do animal depende dessa aptidão de liquefazer a imagem intuitiva em um esquema, portanto de dissolver uma imagem em conceito." [4]

Também para Wittgenstein, "a Mitologia pode voltar a um estado de fluxo, o leito do rio onde correm os pensamentos pode se deslocar." [5]

“O mundo como ele é” e “como nós o vemos”, realidade e interpretação, imagens e conceitos se interpenetram de formas variáveis e dinâmicas – e isso longe de nos fazer perder o pé e afogar-nos no mar do relativismo nos abre as portas para a beleza e a plasticidade das múltiplas realidades que podemos tornar habitáveis, sucessiva ou simultaneamente.

Rejane Xavier



[1] em Problems and Projects, New York, Bobbs-Merrill, 1972
[2] N.R.HANSON, "Observação e Interpretação", em MORGENBESSER,S. (org) Filosofia da Ciência, São Paulo, Cultrix, 1967
[3] F.NIETZSCHE "Sobre verdade e mentira", em Os Pensadores, São Paulo, Abril, 1978.
[4] (ibidem) 
[5] L.WITTGENSTEIN On Certainty. New York, Harper and Row, 1972. § 97

Um comentário:

Unknown disse...

è bem nessas, faz todo o sentido. Mas "realista", em fotografia, é uma contraposição a pintura. NA real, uma fato de maça, ou sua pintra, são mesmo duas "não maças", ainda que uma tenha sido captada (a foto) e a outra construida mais demoradamente. A pintura é humana e produzida, a foto é "mecânica", e revelada. E cá entre nós, a foto é muito mais realista que a pintura....Ainda mais com uma canon 7D, show de bola. O maior ou menor realismo de duas versões, não faz a mais realista, real, mas que engana, lá isso sim. Flávio XAvier (vejam meu blog de fotos em (http://br.olhares.com/galeriasprivadas/browse.php?user_id=157703 )